Há um silêncio insular na Rua Conselheiro Nébias, localizada no bairro Campos Elíseos, centro de São Paulo.
O espaço arquitetônico inteiramente em preto fosco remete àquelas antigas caixas de música, simples de tudo, mas com um toque de mistério — o que convida a desvendar seu interior.
O número é 891. O nome, Teatro Estúdio.
As portas de vidro, habitualmente adesivadas com o cartaz da peça da vez, reduzem a visibilidade do café-bar logo na entrada.
Ao abrir a porta, miro nos azulejos igualmente pretos, porém agora brilhantes, que criam uma atmosfera atemporal. Eu não sabia ainda, porque o ambiente é intimista, mas o Teatro Estúdio é o mais completo espaço de artes cênicas de São Paulo — quiçá do Brasil.
Seus gestores — os atores Alexandre Galindo e Daniel Marano —, são, indubitavelmente, quixotescos. Não seria, portanto, inconveniente uma escultura dos personagens de Cervantes em ferro fundido, enfeitando lá a calçada.
Nos horários dos espetáculos, mesas altas do lado de fora permitem imaginar entusiastas discutindo se Nelson Rodrigues ainda merece estar na berlinda das montagens contemporâneas.
Aproveitando a deixa, foi neste mesmo espaço — redundantemente espetacular — que encenaram Álbum de Família. O senso estético imaculado do diretor Jorge Farjalla combinou perfeitamente com o recinto que, em cada detalhe, exibe a paixão de seus líderes pelo fazer teatro.
Esmiuçando: teatro é mais do que palco e plateia, são salas apropriadas para a leitura de textos, ensaios, reuniões, gravações de propagandas, ensaios fotográficos, camarins, cozinha, banheiros, tudo sinalizado com esmero em seus recortes e acabamentos. Eu, que sonhei ser estrela — qual garota não? —, admiro as centenas de lâmpadas em volta dos espelhos.
Numa das salas, reconheço o retrato de Cristo, parte do cenário de Álbum de Família. Não deixam de ser mágicos os artefatos amontoados no escuro. Como tudo que contém uma história.
Em Álbum de Família, estavam em cena Galindo e Marano. A direção de Farjalla não permitia sequer um tremor nos olhos na hora errada. A terra que cobriu o chão — de uma beleza incapaz de passar despercebida — tinha que ter o tom perfeito.
É da busca pela perfeição que se faz teatro. Ou melhor, é da busca pela perfeição, através da imaginação, que se faz indivíduos mais humanos por meio do teatro.
Repenso, ironicamente, a palavra “imaculado”. Talvez, porque ela soe inadequada para falar de peças de Nelson Rodrigues. No entanto, para os de repertório, faz sentido: o Teatro Estúdio mostrou a que veio.
Hoje, é praticamente um selo. Dificilmente algo entra em cartaz que não seja uma grande experiência. O que vai determinar se é bom ou não, é o gosto — esse subjetivo que determinou Nelson Rodrigues por toda a vida.
Em outras palavras, os curadores são criteriosos na escolha das pautas. É assim que se fala no meio teatral.
O espaço cênico é multiconfiguracional. Ou seja, cada espetáculo permite que a plateia se posicione de um jeito.
Tudo é elegante e moderno. As cadeiras são confortáveis, a escuridão alerta com sutileza que é para aquietar o falatório, algo que, em outros espaços, não acontece. Nem depois dos três sinais.
Espaços teatrais deveriam ser — agora sim — imaculados.
O silêncio deveria ser prerrogativa. Tudo para que, antes da encenação, seja possível observar: pisos, paredes, texturas, formatos, efeitos como o aroma da defumação de alecrim, ritual de Farjalla, que confronta as blasfêmias rodriguianas.
O Teatro Estúdio tem personalidade.
Surgiu do anseio de proporcionar ao circuito cultural paulistano um lugar totalmente dedicado à criação e à apresentação de projetos artísticos e culturais.
Movida pela curiosidade, entrei pela porta de canto, em dia sem evento. O senhor Ângelo limpava a calçada cantando Deslizes, do Fagner.
Não poderia ter conquistado meu coração de outra forma! Fã do Fagner e das belezas cotidianas, essa arte de unir o doméstico com o sublime, soube que foi o senhor Ângelo que limpou, durante toda a temporada de Álbum de Família, a terra alaranjada que gruda até na alma de quem sabe o poder da terra.
Logo acima, subindo o lance de escadas, um corredor considerável com mais mesas para uma bebida. Imagino que a discussão aumenta! “É imperdoável encenar Álbum de Família!”, “Que obra-prima, excepcional!”.
Sim, Álbum de Família foi a obra-prima que inaugurou o Teatro Estúdio — substantivo que dispensa adjetivos.
Tudo isso estou imaginando ao visitar as primeiras salas. A maior, possui marcações no chão, talvez sejam da última equipe que a usou para se apresentar em outros teatros. Algo comum. O Teatro Estúdio virou referência para ensaios de produções de outros teatros.
Na verdade, quando abriu suas portas, em fevereiro de 2023, o teatro funcionava apenas como espaço para ensaios.
Álbum de Família mudou o rumo da história do estabelecimento em grandíssimo estilo, estreando em julho de 2024, quase um ano e meio depois.
A montagem possui um dos cartazes mais lindos do teatro contemporâneo. Renderia como souvenir, envidraçado, com moldura provençal clássica trabalhada em dourado envelhecido. Combinaria perfeitamente com o meu Cristo pendurado logo acima da mesa de madeira maciça de onde escrevo.
Ao todo, são 700 m² de área total, composta por duas salas multiuso, além de salas de produção, sala audiovisual para realização de videocasts, gravações sonoras e leituras de mesa. Sobe-se escada, desce-se escada e muitas histórias vão sendo contadas acerca de como é feito, hoje, teatro no Brasil. Em tempo: ser empreendedor das artes.
Quem dera eu pudesse mesmo encomendar uma escultura de Dom Quixote, Sancho Pança e seu cavalo para presenteá-los. Ser uma mecenas capaz de deixar Álbum de Família um ano inteiro em cartaz!
O senhor Ângelo me ouve sonhar e se intromete: “Eu vou querer um salário três vezes maior!”. Porque, lembrando, era ele que limpava toda a terra… Sendo assim, faço a promessa de que o salário dele será maior do que o do diretor.
A terra alaranjada, os papéis de parede amarelo… Sou uma Joan Didion pitoresca, sem vício em coca-cola e cigarro. Quis saber o que não tem muita importância: “Como o Nonô corria ao redor de todo esse espaço no escuro?”
O Teatro Estúdio recebeu espetáculos de primeira como Cão Vadio e Dom Casmurro, ambos indicados a Melhor Espetáculo pelo APCA. Também apresentou Irineu, com Genézio de Barros, e O Papel de Parede Amarelo e Eu, com Gabriela Duarte. Com Veneno, estrelado por Galindo e Cleo de Páris, alcança-se o clímax.
Percorrendo as salas vazias, apreciando cada detalhe desligado, minha imaginação me faz ocupar cada cadeira: a de diretor de luz, operador de som…
Eu, ali, coordenando a entrada dos visitantes, causando a mesma impressão de um Farjalla trajado inteiramente de preto, imponente, entre a porta do café-bar e o espaço cênico, em minha mente formou-se a imagem de um mago.
Ah, se eu fosse o senhor Ângelo, me divertiria deveras…
O teatro é um lugar de formação humana, onde se produz conhecimento histórico, filosófico, literário, banal — ou seja, lugar da existência.
Em longo prazo, idas ao teatro educam nossas fragilidades. Penso, em cada peça que assisto sobre casamentos em crise, como somos patéticos ao estragar convivências.
Um complexo como o Teatro Estúdio deve ser apreciado, cuidado e divulgado, como algo que pertence a uma comunidade. Não uma comunidade de artistas, mas de indivíduos em estado de emergência. Porque é uma fonte de enriquecimento das humanidades nesta contemporaneidade vazia.
Na calmaria do dia em que apenas o senhor Ângelo canta enquanto passa a vassoura e o café, a exploração de cada sala é uma experiência de disciplina para os meus sonhos guardados.
Cada objeto é um objeto sem sentido até que damos a ele um sentido dentro de uma história. Todos somos atores nos palcos cotidianos de empresas ou das telas brilhantes. A única diferença é que neles não falamos de tragédias.
Por isso minha obsessão por Álbum de Família. Alguém precisa dizer que a vida não tem lógica, nem na maldade, tampouco na bondade. Todavia, é divertido assistir a nós mesmos tentando esconder os nossos segredos.
Na calmaria do dia, os deuses cuidam das tralhas que ganham alma como a plateia que se renova a cada temporada. Toda plateia está em busca de uma alma. O teatro é terra, é chuva, é lama, é grito, gemido. É silêncio.
Seja alugando as salas para ensaios ou estando em cartaz, o complexo inteiro oferece todos os itens necessários para o conforto da equipe que faz a mágica acontecer.
Os espelhos, as cortinas, o rider de luz, as caixas de som, o linóleo, o ar-condicionado — graças a Deus —, além dos depósitos de material cênico e dos equipamentos. Não poderia, claro, faltar o Wi-Fi para o compartilhamento imediato dos ensaios e pré-produções nas redes sociais.
Redes sociais…
“Por favor, desliguem os seus celulares. A luz dos aparelhos atrapalha a concentração dos artistas e incomoda quem está ao seu lado.”
O insuperável boca a boca agora é virtual. Divulguemos o teatro, mas depois dos aplausos, por favor.
Na sala menor, sinto vontade de me sentar no chão carpetado e ler um livro em voz alta. As cortinas pretas funcionam como um “entre”: entre nós e o mundo, entre os textos e o mundo, entre as deixas e o mundo.
Alguns dos musicais que ensaiaram nessas salas foram Elvis, Tom Jobim, Priscilla – A Rainha do Deserto, Cantando na Chuva e Kiss me, Kate.
Já foram mais de 1 mil artistas, contabilizando cerca de 7 mil horas de processo criativo.
Entre os renomados diretores, frequentaram o Teatro Estúdio John Stefaniuk, Mariano Detry, Felipe Hirsch, Georgette Fadel, Zé Henrique de Paula, Miguel Falabella, Ulysses Cruz, Jé Oliveira, Cláudio Botelho, João Fonseca, Luh Mazza, Elias Andreato, Cibelle Forjaz, Johanna Albuquerque, Victor Garcia Peralta, Ricardo Grasson e Marco Antonio Rodrigues.
Na calmaria do dia, foi difícil ir embora. Na imensa televisão do café-bar, assisti algumas imagens do documentário Companhias do Teatro Brasileiro, cuja pesquisa monumental é de Daniel Marano.
A propósito, para um rapaz tão jovem, quanta dedicação, quanto apuro pela arte de encenar, quanto cuidado em preservar os nomes daqueles que, antes de nós, contaram as mesmas histórias. Porque somos os mesmos, só baixamos mais a régua.
Alexandre Galindo é dono da produtora Gênese, que montou nove espetáculos, entre eles A Tropa, que ainda leva Otávio Augusto para os palcos a fim de nos emocionar numa atuação devastadora. A montagem assisti antes de saber de Galindo, de Marano, do Teatro Estúdio e de tudo o que pretendo ser, escrevendo.
A São Paulo da garoa faz cenário para esse dia em que, como criança, aprendi como se faz teatro, do começo ao fim.
A volta para casa é com olhos marejados, porque a arte é isso: o que o olhar é incapaz de esconder.
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