Thiago Lacerda: “Talvez, a pedra de Sísifo seja mais potente do que a transformação definitiva do ser humano”

Diante da desatenção generalizada de nosso tempo — digo, a peste de nosso tempo —, Thiago Lacerda no palco é como um vento calmo de sobrenaturalidade. De repente, acalma-se o coração, a atenção volta-se para o presente e o tempo ocupa seu lugar de honra: o que detém todas as dimensões. O repertório do ator é trágico, de tessitura densa, e tem a belíssima estética do inacabado. Tudo a que assisti, ninguém na plateia ousou mexer no celular — sim, a causa da peste de nosso tempo. Numa conversa com a FAUSTO acerca da obra camusiana e seus afins, Lacerda, em sua peculiar característica meditativa — que compreendo como uma concentração de espírito —, discorre também a respeito do otimismo, da maturidade e dos livros que continuamente descrevem o ser humano em busca de suas raízes e de seus sentidos. Para ler e para assistir.

Thiago Lacerda
Thiago Lacerda. Foto: Mônica Côrtes.

FAUSTO — Que tipo de espectador, e leitor, atrai Albert Camus?
Thiago Lacerda: Não saberia dizer… [Meditativo]. Não saberia dizer. As pessoas conhecem pouco o Camus. Se considerarmos que quem vai assistir a uma peça como A Peste é somente quem conhece a obra, teríamos uma perspectiva de público bastante reduzida. Ao mesmo tempo, pessoas que conhecem o Camus, que tipo são? Não saberia dizer [Meditativo]. As pessoas são tão diferentes, heterogêneas, e a experiência do existencialismo, do absurdo, impacta quem quer que seja. Talvez a pergunta seja que tipo de pessoa sai da sala depois de uma peça do Camus?

Excelente pergunta.
A experiência que o Camus proporciona é de revolta, do ponto de vista camusiano. Fico muito ligado na ideia de que o produto da provocação do Camus é o apego à vida, o apego ao ato de resistir, que parece não fazer muito sentido. Voltando, então, à pergunta: creio que pessoas mais silenciosas e revoltadas.

O que o fez chegar em Camus?
Calígula.

De que forma?
O espetáculo Calígula foi um convite de um diretor que admiro muito, o Gabriel Vilella, num momento bastante especial de minha vida, que mudou minha perspectiva sobre meu ofício: a relação do ator com o texto, a profundidade que se deve — ou pelo menos o prazer que eu tenho e que me sugere que devo investigar a fundo um texto. Foi devido a essa peça que embarquei numa viagem sem volta pela obra do Camus.

Como é, hoje, encenar A Peste?
Thiago Lacerda: Estou muito envolvido. E, especialmente, voltar à obra depois de tantos anos, três filhos, guerras, pandemia, aquele autocrata estúpido que testemunhamos. Toda essa experiência faz com que o retorno para o Camus me permita outra perspectiva. Encenei Calígula aos 25 anos. Hoje, aos 46, meu Deus, dá vontade de encená-lo novamente.

Determinados textos “exigem” uma idade “exata” do ator?
Claro que é diferente aos 26 e aos 46, mas não acredito que seja um protocolo. Particularmente, sinto-me muito interessado em quebrar protocolos. O Ron [Daniels, diretor] menos. Ele tem linhas mais definidas por seu gosto, pela estética, e até pela origem e experiência pessoal. Para mim, não. Então, rejeito a ideia de que o ator precise ter certa idade para fazer determinado personagem. Por que não posso fazer o Hamlet? É teatro, bicho! Por que não posso fazer o Otelo? Porque sou branco? O que me convoca é a história, é chegar nas pessoas. Minha profissão tem uma particularidade, ela é acumulativa. Amanhã serei um ator diferente do que sou hoje porque dei esta entrevista, isto é fato. Você está me trazendo reflexões que eu nunca tinha feito — e elas me transformam como contador de história. Aos 46, a qualidade do que é dito em cena muitas vezes pode ser diferente do que foi dito aos 25. É uma lei natural. Aos 46, o ator viveu mais experiências, trilhou por mais caminhos e viveu mais personagens; o ator é mais interessante, possui um pouco mais de perspectiva.

Não é um protocolo, claro, mas uma sutileza…
Sim, por que um ator japonês não pode fazer a Lady Macbeth? Quem é capaz de convencer de que ele não pode se sentar e contar aquela história? As regras, especialmente no espaço mágico do teatro, podem ser subvertidas. E se for de forma consciente, simbólica, torna-se ainda mais interessante.

Nosso ponto, aqui, tem a ver com bagagem existencial mesmo…
É, tem uma brincadeira sobre Shakespeare que diz que há dois personagens impossíveis de se interpretar: a Julieta e o Rei Lear.

Por quê?
A Julieta porque trata-se de uma menina de 14, 15 anos que precisa ter a maturidade de uma mulher de 50. O Lear porque é um homem de 90, 95 que precisa da vitalidade de um rapaz de 30. Óbvio que é uma piada. Agora, não deixa de traçar a perspectiva de uma maturidade necessária para interpretar personagens como esses. Para mim, o ponto é a maneira como o texto é dito, o alcance da fala, se o ator parte de uma base sólida ou de uma mais frágil. Se ele parte de uma base sólida, o texto se propaga de outra forma.

A genialidade do Camus está em usar o absurdo para calar o absurdo?
Thiago Lacerda: Ah, ele não cala. Ele não conseguiu. Nem penso que tenha sido uma expectativa dele. Creio ter sido mais uma necessidade de dividir essa reflexão. A genialidade do Camus está na coragem de investigar a precariedade, a coragem de entrar em conflito com uma estrutura religiosa, por exemplo; entrar num embate com o próprio Sartre. Está, também, na resistência ao horror, no caso do que houve com a União Soviética. A genialidade do Camus me pega nas analogias, nas associações, na qualidade literária, na escrita! É uma escrita… [Meditativo]. A condição humana está para além da nossa capacidade física. Creio que fica muito mais na ideia de que é preciso sorrir empurrando aquela pedra.

Falo para o meu marido que O Mito de Sísifo deveria ser um livro obrigatório na escola.
Meu filho de 18 anos deveria estar lendo.

Não sei se é demais para um jovem, mas o considero um livro de formação…
Isso do “é demais” que você colocou é interessante. Dizem que temos que dar o que as pessoas querem ver, mas o Gil tem razão: as pessoas querem o que não sabem [Canção Rep]. Não podemos subestimar, temos que acreditar na capacidade das pessoas. Coloca o livro na grade, se é difícil ou não, é preciso perseverar. Daqui a três gerações não será mais. Então, concordo totalmente.

Se Sísifo estivesse em nossa formação, lidaríamos muito mais facilmente…
Com a nossa precariedade.

Exatamente, com nossas angústias… Certos assuntos não seriam tão tabus… 

O otimismo é pueril?
Thiago Lacerda: O otimismo é essencial como exercício, mas quem está otimista está perdendo alguma coisa. Creio que como exercício é essencial; mas como expectativa, pode ser um desastre.

Consegue diferenciar o otimismo da esperança? Porque são coisas muito diferentes.
São. A esperança é algo mais factível. A esperança é algo mais concreto, mais potente do que o otimismo. O otimismo é algo mais frívolo, fugaz, etéreo… A esperança é essencial. O otimismo passa por um lugar mais frágil.

Como descreve o indivíduo resistente?
Eu o leio na ideia de revolta [Meditativo].

Enquanto pensa, deixa eu encontrar uma frase que postei no Instagram esses dias… “O que se chama resignação é desespero crônico”, do Thoreau.
Uau. É, então, a resignação do caminho. O indivíduo resistente é capaz de suportar as adversidades com inquietação e esperança. A ideia de esperança ficou aqui comigo. Do ponto de vista existencialista, a resignação do Camus é uma forma de encarar tudo, mas posso escolher a luta. Ele aponta para a resignação, concordo… [Meditativo] Ah, mas eu não nasci para me resignar.

Você vai à luta?
Ah, eu vou para a minha vida. A certeza de todo dia. O trabalho, a luta [Meditativo].

Tudo é contingência, consequência ou propósito?
Consequência e propósito.

Por que as pessoas acreditam que o ser humano sai melhor de uma catástrofe, de uma peste?
Thiago Lacerda: Porque me parece que, diante do horror, a precariedade encontra um caminho. A dureza das coisas obriga o animal maravilhoso que é o ser humano a encontrar um caminho. E, vez ou outra, ele consegue.

Você acredita mesmo que o ser humano sai melhor de uma catástrofe?
Acredito.

Enquanto coletivo?
Enquanto coletivo.

Jura?
Não… [Meditativo]. Você me provocou a reflexão, agora estou repensando. Passamos por uma pandemia e logo depois a Ucrânia foi invadida. Talvez, a pedra de Sísifo seja mais potente do que a transformação definitiva do ser humano. Mas, pensando por essa lógica, empurrar a pedra é mais poderoso do que achar uma forma de escapar dela. Agora, ao mesmo tempo, fico achando que sim, que a dureza faz com que a precariedade encontre uma solução, uma espécie de circunstância.

A solidão é maior em pestes coletivas ou pestes particulares?
Particulares.

Certeza?
Espere, deixe eu pensar… Acho que sim. A solidão particular é maior. Ela é contínua, né?

Touché.

Por que é urgente trazer A Peste à luz?
Thiago Lacerda: Para não sermos aqueles que se calam. Para prestar uma homenagem, ainda que com reservas, às vítimas da peste. Para deixar ao menos uma lembrança da violência e da injustiça que lhes foram feitas. A vontade de levantar esse espetáculo tem a ver com o fato de que não podemos nos esquecer. A peste está à espreita. A condição humana está sendo testada o tempo inteiro. E, por fim, para dizer que simplesmente se descobre, no meio dos flagelos, que há nos homens mais coisas a admirar que a desprezar. Essa é uma frase da peça, mas é também uma frase que conclui.

Você é um bom leitor!
Sou um bom leitor se comparado à média, mas não diria que sou, perto do que eu gostaria de ser. Todavia, sim, leio bastante. Meu ofício me obriga a ler bastante, há muitos anos já. Tive muita sorte, porque passei por autores maravilhosos. Lidei com Saramago, com Camus, lidei com Shakespeare. Uma parte do meu conhecimento aconteceu de forma absolutamente natural, independentemente da minha atenção, consciência ou do meu movimento. Entretanto, muito do que me aconteceu é dedicação minha, é labuta minha, são prazer e amor meus.

Isso vale outra entrevista: como chegou a esses autores?
Thiago Lacerda: Um personagem me levou a outro. Eu era um menino, atleta, que caiu de paraquedas na televisão, numa coisa completamente juvenil, sem nenhuma consciência do que aquilo significava, mas me apaixonei, em cena, pelo meu ofício — e tive que aprender esse ofício com a bola rolando. A maneira que encontrei de fazer isso na época, intuitivamente, foi procurando grandes autores, grandes livros, grandes parceiros, atores, diretores, pessoas que me interessavam por qualquer razão.

A busca faz parte de sua natureza…
Sempre tive apreço pelo histórico, pelo épico, pelo clássico, por personagens biográficos, e, ao mesmo tempo, eles foram entrando em minha vida. Quando fui fazer meu quarto trabalho na televisão, descobri o prazer da pesquisa e do aprofundamento. Logo depois, veio um personagem histórico, o Garibaldi [A Casa das Sete Mulheres]. O Garibaldi surgiu em minha vida no período da escola, mas aos 20 anos, quando fui estudar para fazer um trabalho na TV, me deparei com esse personagem, e me lembrei: “Garibaldi, Anitta!” Fui atrás. Ao mergulhar na pesquisa, pensei: “Caralho, que porra é essa? Que personagem! Que biografia! E me envolvi. Durante três anos, essa pesquisa acerca da trajetória do Garibaldi virou meu hobby. Com 23, eu sabia tudo sobre ele e todo o contexto. Quando me convidaram para fazê-lo — e ninguém sabia dessa minha pesquisa, porque era pessoal —, falei: “Abra a porta porque estou chegando!”.

O personagem o encontrou…
Existe uma força que organiza e que está para além da nossa compreensão. Há um propósito em tudo. E há uma consequência, que é o envolvimento — ou não. O resto é indecifrável.

Divago, às vezes, se meus autores prediletos me escolheram ou eu fui encaminhada até eles, naturalmente, na medida em que eu ia me conhecendo…
Descobri, aos 23 anos, o prazer do processo de investigação, de construção, de pesquisa, o que me levou para a literatura, que por sua vez me levou a fazer O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Saí do Saramago e fui para o Camus, saí do Camus e fui para o Shakespeare. Quero fazer os russos ainda. Os russos… Quando toda essa viagem acabar, quero fazer um dos russos.

Qual? Fiz o mestrado em Anna Kariênina, do Tolstói…
Do Tolstói tenho os três volumes de contos. Mas o Dostoiévski… Dostoiévski… Dostoiévski… [Meditativo]. O Camus vai me levar de volta para o Dostoiévski. Já estou vendo tudo [Contemplativo].

Concede-me outra entrevista quando chegar em Dostoiévski? É o tempo de pensar também em como chegou a esses autores ou se foi convocado por eles.
Claro, porra. Claro. Eu quero ser… Raskólnikov… Raskólnikov… Raskólnikov!
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.