Tudo sobre o novo álbum de Leonardo Gonçalves

“Todas as famílias felizes são iguais, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

A célebre frase que abre o romance Anna Kariênina, de Liev Tolstói, também diz sobre a trajetória do cantor religioso Leonardo Gonçalves.

Em nada interessa, porém, em que contexto, interessa unicamente aquilo que desencadeou.

Tolstói entendeu como poucos as nuances sem-fim da tristeza. Como também que nada ela torna perdido.

Não que exista porque é útil, mas a tristeza, como um leque, abre as possibilidades de criação. De tristeza se faz arte. De tristeza se faz música. Os tormentos que levam ao chão qualquer certeza do amanhã torna a música, por exemplo, esse mistério!

Arte com A maiúsculo é como religião com R maiúsculo; como Amor com A maiúsculo. Todos os maiúsculos se encontram. Remetem à mesma coisa. E qualquer coisa que transcenda ao humano não pertence ao artista.”

Leonardo Gonçalves.

Soube bem Tolstói. Sentiu nas emoções Leonardo. Enquanto a alegria afrouxa, a tristeza apura. Refinar, de alguma forma é almejar a perfeição, é tirar os excessos, as impurezas. Quando o processo de refinamento está por fim terminado, encontra-se o sentido.

Sentir a vida. A direção da vida. O significado da vida.

Sentido é então o nome do novo álbum de Leonardo Gonçalves e as razões são essas três.

Se antes eram duas palavras: Poemas e CançõesViver e Cantar e Princípio e Fim – que intitularam os primeiros três álbuns – tudo mudou com Princípio.

Princípio? Melhor seria dizer recomeço.

É uma única palavra agora, mas tão profunda que abarca três definições e o mundo de variações, subjetivas, como tudo na arte, lançada a quem mais quiser nela encontrar o que quer que seja. Tristeza arremata, mas nunca desampara quem tem alma.

A experiência de vida que tenho hoje, com meus quase 40 anos, tenho 38, é que posso falar de certos assuntos como há cinco, dez anos eu não teria capacidade de falar, justamente por não ter vivência o suficiente. A realidade da vida é que não existem respostas fáceis.

O conceito de clássico
Será que posso aplicar a definição de clássico de Ítalo Calvino à música? Em nome da liberdade poética:

Clássico é aquele que nunca terminou de dizer o que tinha para dizer.

Deus sabe, Deus ouve, Deus vê.

O primeiro single desse novo álbum se apresenta em um mercado novo. O clássico e o novo.

Para quem nunca ouviu a canção de 1984, com letra de Valdecir Lima e música de Flávio Santos, uma lição prévia: não ouse imaginar o que essa canção foi capaz de provocar e promover.

E também hoje, possivelmente, e ainda, mais de trinta anos depois de ter sido composta. Porque, claro, é clássica, e nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Leonardo Gonçalves volta às raízes.

“É preciso ter os dois pés fincados em algum lugar. Estou seguindo adiante numa direção que é muito mais universal. Para garantir que não vou me perder, estou fincando meus dois pés no que eu tenho de mais fundamental.”

Em Sentido estarão as músicas mais significativas para o artista.

“Eu queria homenagear os compositores que marcaram a minha vida.” 

Músicas que também devolveram o sentido a milhares ou milhões de pessoas nos anos 1980 e 1990.

“Do ponto de vista sonoro, é uma continuidade do meu trabalho em hebraico só que agora com canções em Português que já passaram pela prova do tempo. É uma oportunidade ímpar e única de apresentar “meus” clássicos à maior parte do meu público que talvez não os conheça. E vou apresentá-las em um formato que é estranho ao mercado atual, mas que não deveria ser novidade. Ao mesmo tempo em que é o álbum sonoramente menos comercial que já fiz, é o assunto mais universal em que já toquei. O assunto desse disco é a condição humana face ao sofrimento e ao silêncio de Deus.”

As canções de Sentido são todas orquestradas, e a orquestra, composta por membros da Orquestra Sinfônica de Praga e Orquestra Filarmônica da República Checa, foi arregimentada e regida por Williams Costa Jr., um dos mais tradicionais nomes da Igreja Adventista do Sétimo Dia, além de tio de Leonardo.

Deus sabe, Deus ouve, Deus vê é mais do que um clássico, é memória social. Quem viveu o tempo, sabe. É o equivalente proporcional à Amazing Grace.

Torná-la, hoje, conhecida aos seus milhões de ouvintes no mundo inteiro, é sem dúvida um presente a quem o aprecia sinceramente, assim como à própria cultura que o artista valoriza com inteligência. Religião que abre mão do diálogo presta desserviço. Verdade não é um dogma, porque dogma tiraniza. Verdade liberta e alcança por sua capacidade de maravilhar. Sentido não é, então, uma reconciliação, mas uma constatação.

Serão lançados os quatro primeiros singles já nos próximos meses. A expectativa de Leonardo Gonçalves é que o álbum todo tenha sido lançado até agosto de 2018.

Sentido também nascerá com imagens. Será um projeto audiovisual assinado por Hugo Pessoa:

Não dá para chamar de DVD porque não é uma apresentação. Não dá para chamar de filme porque não tem um enredo, um script. Essa parte não está definida ainda e o luxo do mercado de hoje é justamente poder alterar o processo no meio do processo.

Sagrado e Profano?
Neste novo álbum Leonardo Gonçalves romperá ainda mais barreiras de gênero musical e de qualquer ideia sobre sagrado e profano. Conterá, além dos clássicos de sua religião de formação, compostas por Mario Jorge Lima, Williams Costa Jr., Raimundo Martins, Jader Santos, Lineu Soares, Stênio Marcius, etc., duas canções clássicas da música enquanto patrimônio cultural, além de duas canções de música erudita contemporânea. Tudo isso, dentro do mesmo assunto, do mesmo contexto: o da condição humana, do sofrimento humano e de como lidar com o indizível.

 “Tudo que é do inefável, não pertence a ninguém. Quando vejo artistas grandes, talvez até demonizados pelo meio cristão –o que tem muitas vezes mais a ver com orientação política do que com espiritualidade, propriamente dito– enxergo claramente que as obras deles não pertencem a eles e nem estão sob seu controle. A obra, por exemplo, de Chico Buarque não pertence a ele. Não pertence à sua ideologia. Transcende. É maior do que o Chico. É maior do que suas opiniões. Passa por ele. E sabe o que é o mais interessante? Muitos desses artistas que não são do meio religioso parecem ter mais consciência disso do que muitos artistas que são religiosos. Eles parecem entender mais que a arte no máximo passa por eles.”

O gigante
Se me sinto pequeno, dirijo meus olhos a Deus, porque Ele me ouve sem que eu precise dizer qualquer coisa. Ele me vê ainda que eu me esconda ou finja que Ele não é absoluto. Ele sabe de mim quando não sei nada sobre mim e no vazio de sentido que não suporto invento qualquer coisa.

Sentido é uma volta às raízes e uma reação ao que vivemos hoje.

A sociedade do espetáculo não admite o sofrimento. E ao não admitir o sofrimento, não lida e não elabora o sofrimento. Esconde. Mas isso não o elimina.

Há faixas em Sentido em que não há letra. Porque é assim quando o sofrimento chega ao cume. Fogem as palavras. E até desnecessárias se tornam porque não alcançam.

“Nada do que eu não possa dizer através da arte vale a pena ser dito.”

Tolstói
Talvez seja justo encerrar com Tolstói, e curiosamente com o fim de Anna Kariênina, quando o personagem Liévin, na tentativa de entender o que constantemente o perturba se questiona sobre esse ser que é Deus e se deveria ser tomado por algum grande êxtase, até que chega à conclusão de que a única certeza que tem são as “leis do bem”.

“Seja isto é fé ou não, e ignoro o que possa ser, o fato é que esse sentimento penetrou imperceptivelmente na alma, por meio dos sofrimentos, e se instalou aí com firmeza.”

Liévin, porém, sabe que continuará o mesmo que se irrita, o mesmo que discute às vezes, tudo nele continuará como sempre foi:

“Continuará a existir um muro entre as coisas mais sagradas da minha alma e as outras pessoas”

Só um detalhe muda. Exatamente o sentido, em termos de significado e de direção, principalmente; mas também sobre as sensações:

“Continuarei a não entender por meio da razão por que eu rezo, e rezarei, mas minha vida, agora, toda a minha vida, a despeito de tudo o que possa vir a me acontecer, e cada minuto seu, não só não será absurda, como era antes, como terá também o incontestável sentimento do bem, que cabe a mim infundir a ela!”

Aceitação.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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