Atrás do grande Tolstói, havia a grande Sônia. Impossível falar de sua grandeza como escritor sem falar dela, sua mulher. Um dos casamentos mais complexos da História não poderia passar incólume sem a versão dele e dela. E para falar dela, conversamos com exclusividade com a escritora russa Alexandra Popoff, autora não só de Sophia Tolstoy – A Biography como de Tolstoy’s False Disciple, sobre a relação do autor de Guerra e Paz e Chertkov, para o tormento de Sônia – Sofia ou Sophia. A grafia tanto faz uma vez que a história… É mesmo para se tirar a limpo. Parte do Especial Tolstói – 190 anos. Simplesmente imperdível!
FAUSTO – Sônia Tolstói foi heroína ou vilã?
Alexandra Popoff: Claro, ela não foi nem heroína nem vilã. Sônia foi maligna, de acordo com os primeiros biógrafos de Tolstói, porque eles também eram seus discípulos religiosos e a viam como megera, aristocrata e mercenária.
Uma análise superficial…
Na realidade, ela foi uma mulher talentosa e trabalhadora, mãe de 13 filhos, uma editora bem sucedida, além de uma fotógrafa e filantropa. Ela foi completamente diferente de seus retratos biográficos, de ficção e cinematográficos. Anos atrás, quando comecei a pesquisar sua vida, fiquei impressionada com a energia, o intelecto, o talento artístico e o bom senso de Sônia.
O que a motivou a escrever sobre Sônia?
Em 2001, descobri que o seu livro de memórias, My Life, permaneceu inédito. Tive a sorte de ter acesso exclusivo a esses escritos, que estavam guardados no State Museum of Tolstoy, em Moscou. O que aprendi com a correspondência do casal, anteriormente ignorada, além de suas memórias, que apareceram na Rússia apenas em 2011, mudou minha perspectiva sobre essa mulher e seu casamento.
De que forma?
Senti que havia muitas coisas que o público deveria saber sobre Sônia. Ela fez muito mais do que passar a limpo os textos de Tolstói. Ela foi uma mulher forte, à frente de seu tempo, capaz de lidar com assuntos complexos de publicação e de negócios, ao mesmo tempo em que cuidava de uma grande família.
No século XIX era mesmo incomum…
Ela publicou oito edições dos trabalhos completos de Tolstói, ela mesma cuidando de muitas etapas do processo. Ela cuidou da saúde de camponeses gratuitamente. Durante a fome generalizada da Rússia, na década de 1890, ela ajudou Tolstói a organizar uma grande operação de socorro. A atividade independente de Sônia foi pouco conhecida. Escrevi Sophia Tolstoy: A Biography porque fiquei fascinada com essa mulher e queria que ela recebesse crédito por suas muitas contribuições. Sônia teve talento artístico e perspicácia empresarial, uma combinação rara. Ela inspirou a melhor conquista literária de Tolstói, muitas de suas heroínas foram baseadas nela, e ela foi sua primeira editora. Muito do trabalho dela entrou em suas novelas, o que o tornou famoso. Fiquei motivada a escrever sua biografia porque queria tirar isso a limpo e contar a verdadeira história de Sônia.
Vladimir Chertkov destruiu o bom relacionamento de Tolstói com Sônia?
Não é bem assim. No final da década de 1870, depois de completar Anna Kariênina, Tolstói sofreu uma profunda crise espiritual. Anteriormente agnóstico, tornou-se profundamente religioso. Ele trabalhou para retraduzir os Evangelhos e, eventualmente, fez sua própria interpretação dos ensinamentos de Cristo. Suas novas crenças levaram-no a renunciar sua vocação literária e a considerar pecaminosa e inútil sua vida anterior como homem de família e proprietário de terras. Ele tornou-se determinado a praticar suas máximas religiosas enquanto permaneceu com a família.
O que teve consequências…
Pressionou sua esposa e seus filhos a aceitarem suas novas crenças. Essas exigências eram extremas e extraordinárias, e isso fragilizou o casamento antes que Chertkov tivesse se aproximado. Como Sônia explicou em seu diário, Tolstói esperava que ela abandonasse sua fé tradicional, além de seu privilégio de classe e a riqueza que ela e seus filhos possuíam. Sônia, contudo, acreditava na responsabilidade dada por Deus de cuidar de sua família.
E Tolstói…
Tolstói queria seguir literalmente os princípios éticos que ele acreditava que Cristo ensinara. Sônia considerou corretamente suas novas crenças como fanáticas e impossíveis de se praticar. Na verdade, Tolstói não sabia, e não se importava, como seus novos ideais deveriam ser implementados na vida prática.
Por exemplo?
Ele queria que a família renunciasse a todas as suas propriedades, mas não se preocupava em como e a quem seriam distribuídas. Havia também suas contradições insondáveis. Embora ele tenha renunciado às propriedades e ao dinheiro, ele continuou a viver em sua propriedade. Mais tarde, Vladimir Chertkov, um homem dogmático e o principal discípulo religioso de Tolstói, começou a se intrometer no casamento. Essa intromissão exacerbou a discórdia.
Como era a troca de cartas entre Sônia e Tolstói? Muito mais gentil e amorosa do que se sabe?
Durante as duas primeiras décadas do casamento, eles se escreveram diariamente quando estavam separados. Havia um profundo vínculo emocional entre eles. Sônia adorava Tolstói, assim como sua literatura, e ajudou-o em seu trabalho. Seu apoio moral era indispensável para Tolstói. Em 1864, com dois anos de casamento, Tolstói escreveu a Sônia, que tinha apenas 19 anos na época: “Perdendo meu equilíbrio sem você.” Isso ocorreu durante seu trabalho em Guerra e Paz, quando perdeu o equilíbrio mental e a confiança. Ele constantemente lutou contra a depressão e Sônia conseguia tranquilizá-lo. Tolstói admitiu que suas cartas o afetavam “como boa música”.
Que bonito…
Em 1867, ele escreveu para ela de Moscou: “Estou sentado sozinho no meu quarto, no andar de cima, acabando de ler sua carta… Por Deus, não deixe de escrever diariamente para mim… Eu sou um homem morto sem você.” Já em 1869, depois de completar Guerra e Paz, ele novamente entrou na depressão. Tolstói estava viajando e escreveu para Sônia no caminho: “É tão difícil viver no mundo sem você… Tudo parece tão superficial sem a melhor parte, e o melhor – é você, só você, somente você, sempre.”
Os laços eram mesmo muito fortes…
A troca de cartas do casal revela que eles se amaram e que era um casamento excepcionalmente sólido. Eles compartilharam o mesmo interesse no trabalho criativo de Tolstói. As cartas e os diários de Sônia ajudaram Tolstói a penetrar no mundo emocional de uma mulher. Ele usou muitas de suas experiências em suas heroínas de Guerra e Paz e Anna Kariênina. Depois de 35 anos juntos, ele reconheceu suas contribuições em uma carta para ela: “Você me deu e ao mundo o que você conseguiu dar; você deu muito amor materno e auto sacrifício, e é impossível não apreciá-la por isso.” Na verdade, Sônia foi fundamental para a vida e a criatividade de Tolstói, e as trocas do casal revelam isso.
O que tanto amarrou Tolstói a Chertkov?
Tolstói ficou ligado a Chertkov pelo amor e pela busca conjunta de um ideal religioso. Eles se conheceram em 1883, durante a fase religiosa do escritor. Tolstói tinha 55 anos; Chertkov, 29, uma geração a menos. Um homem bonito, aristocrata, ex-oficial dos guardas, Chertkov causou forte impressão. Já no primeiro encontro, ele ganhou a confiança de Tolstói. Chertkov expressou interesse ávido na religião de Tolstói e tornou-se seu primeiro seguidor sério. Como Tolstói admitiu, seu relacionamento se estendeu além do amor fraterno cristão. Era uma união íntima e secreta. Tolstói pediu a Chertkov para destruir algumas de suas cartas e teve que devolver as cartas de Chertkov. Como aponta a correspondência que restou, o relacionamento era homoerótico. O insignificante Chertkov tornou-se o maior correspondente de Tolstói: toda a troca compreende mais de duas mil cartas. A parte da troca de Chertkov foi suprimida pelos arquivos russos. A partir dessas cartas, Chertkov surge como manipulador e corrupto. Ele exigiu privilégios e promoções, que recebeu porque Tolstói jamais poderia recusar.
Você escreveu sobre isso também…
Meu livro, Tolstoy’s False Disciple, é uma história da união paradoxal de Tolstói com seu oposto moral. Dogmático e dominador, além de provocador, Chertkov tornou-se o companheiro mais próximo e confidente do escritor. Esse relacionamento durou três décadas. Segundo os contemporâneos, Tolstói adorava Chertkov incondicional e cegamente. Essa intimidade explica a promoção de Chertkov como editor associado de Tolstói. Nos últimos anos, Tolstói entregou todos os assuntos referente à publicação a Chertkov, nomeando-o também seu único representante no exterior. Essa relação surgiu durante o último ano de Tolstói. Quando Chertkov assumiu o controle total do escritor, já idoso.
Que história!
Em 1910, Tolstói assinou um documento secreto, que Chertkov elaborou e que o nomeava como o único detentor de sua propriedade literária. Chertkov desempenhou um papel sinistro na vida de Tolstói, também se tornando responsável pela fuga do escritor de sua propriedade aos 82 anos. Chertkov fez Tolstói se tornar um exemplo de renúncia material completa, o que validaria suas crenças aos olhos de seus discípulos. Poucos dias depois de fugir de casa, Tolstói morreu numa pequena estação ferroviária, em Astapovo. Chertkov ficou com ele o tempo todo enquanto à Sônia não permitiam sequer ver o marido. Em sua carta final aos filhos, Tolstói lembrou-lhes de que Chertkov ocupava “uma posição especial em relação a mim.” Essas palavras descrevem o relacionamento mais estranho da vida de Tolstói.
Você acredita que Chertkov teve conexões com o governo e queria apenas manter o controle sobre os textos subversivos de Tolstói?
As obras de Tolstói contra a Igreja Ortodoxa e o estado autoritário tornaram-se o dissidente mais proeminente da Rússia. Em 1882, um ano antes de conhecer Chertkov, Tolstói foi colocado sob vigilância secreta permanente. A insistência de Chertkov em copiar toda a correspondência de Tolstói e diários pessoais deve ser vista nesse contexto. Chertkov era um homem conivente. Suas relações com a polícia secreta são evidentes pelos documentos que publico em Tolstoy’s False Disciple. Ele usou sua influência com Tolstói para suavizar sua mensagem anti-governo. Mas havia mais para Chertkov ganhar com essa estreita relação. A reputação de Chertkov como amigo, seguidor e colaborador das publicações de Tolstói abriu portas na Rússia e no exterior. Ele cuidava dos assuntos Tolstói sem ter que explicar o dinheiro gasto. Chertkov também estava coletando os manuscritos originais de Tolstói, bem percebendo seu valor financeiro. A história de Chertkov é intrigante.
Sem dúvida!
Sua família aristocrática estava perto dos czaristas. Acredita-se que ele seja filho ilegítimo de Alexandre II. O amigo de longa data de Chertkov, o general Dmitry Trepov, era chefe dos gendarmes [soldados especiais] e ministro assistente. Nessa função, supervisionou a polícia secreta. Uma figura obscura na história russa, Trepov é mais conhecido por suprimir brutalmente a oposição política. Em dada ocasião, Chertkov depositou documentos de Tolstói na residência privada do general Trepov. Chertkov enganou Tolstói muitas vezes. Ele deu força às causas do escritor, mas também traiu alguns tolstoianos entregando-os para a polícia secreta. Ele pagou salários aos secretários de Tolstói para além de ajudá-lo também espioná-lo.
Quando assisti ao filme Mãe!, de Aronofsky, pensei curiosamente em Sônia. Ela sofreu muito com a fama de Tolstói?
O papel de Sônia ao lado de Tolstói foi extraordinariamente complexo. Ela foi casada com um escritor de gênio que se tornou líder religioso e fundador de sua própria marca de cristianismo. Como tal, Tolstói distanciou-se de todos os assuntos práticos. Em 1883, ele concedeu à Sônia o poder de administrar seus imóveis. Ela sozinha cuidava da grande família com os ganhos das publicações. Ao mesmo tempo, Tolstói criticou sua atividade editorial porque o faz parecer contraditório. Ele havia renunciado à propriedade e ao dinheiro, no entanto, ela estava lucrando vendendo seus livros. Tolstói foi hipócrita porque também pediu a Sônia que contribuísse com seus lucros para suas causas. Ele criticou publicamente Sônia por não cumprir suas crenças. Sua crítica, dada sua fama e autoridade moral, prejudicou sua reputação na sociedade e em sua própria família. Durante a última década do casamento, ela enfrentou a desaprovação de Tolstói e de seus seguidores religiosos por tudo o que fez – como editora, mãe e administradora dos imóveis. A posição de Tolstói também foi difícil. Ele enfrentou a pressão de seus discípulos que queriam que ele praticasse o que ele pregava. Então, culpar Sônia por sua própria falha em viver de acordo com suas crenças se tornou conveniente. Sônia estava orgulhosa da fama literária que ela ajudara Tolstói alcançar. Ela gostava da companhia de artistas, de escritores e músicos famosos em sua casa. Só que durante os últimos anos de casamento, sua casa foi sitiada pelos seguidores religiosos de Tolstói. Ela se rebelou contra, e viu isso como o insaciável amor de Tolstói pela fama, sua necessidade de ser também conhecido como um homem santo e um profeta.