Fernando Schüler: “Tentar submeter a linguagem à regra da maioria não passa de tolice orwelliana”

A série antológica Black Mirror é, no mínimo, chocante. Alguns episódios exibem apenas a realidade. Outros, perspectivas aterrorizantes do que podemos nos tornar enquanto sociedade, ou mesmo como sujeitos, isolados, alheios, condenados. Criada pelo inglês Charlie Brooker, Black Mirror diz sobre os riscos não calculados das novas tecnologias e, nós, FAUSTO, com exclusividade, damos início à Série Black Mirror – Tecnologia como antiêxtase. Para discutir o episódio Nosedive, convidamos Fernando Schüler, doutor em Filosofia e professor do Insper, titular da cátedra Insper Palavra Aberta. Antes, porém, uma pergunta: os nobilíssimos têm medo da impopularidade?

Episódio Nosedive, de Black Mirror, comentado por Fernando Schüler.

FAUSTO – O que perdemos de maneira irreversível com um aplicativo como o Peeple, que classifica pessoas sem consentimento?
Fernando Schüler:
Não creio que o Peeple irá colar. Não que eu subestime a capacidade humana de produzir estupidez, mas há ali um problema de escala.

Qual?
O programa não permite que se mantenha um perfil público não autorizado de cada pessoa, capaz de receber avaliações anônimas. Isto seria uma real agressão contra a liberdade e a dignidade individual. Submeter cada pessoa, o tempo todo, ao escrutínio da multidão. A mesma multidão que votou em massa em Hitler, na Áustria, e que hoje entope o mundo digital de bullshit e fake news. Todos nós vimos o que aconteceu no episódio do Willian Waak e sua frase infeliz. Um jornalista impecável, com quatro décadas de profissão, é julgado – e escrachado – por uma única frase preconceituosa e – com certeza – condenável. A liberdade individual supõe o direito ao silêncio e à invisibilidade, quando desejados.

Há quem ganhe com esse “modo de viver” tão radical?
No limite, ninguém ganha. A irracionalidade da multidão produz um custo que, mais cedo ou mais tarde, será distribuído entre todos. É algo próximo ao fenômeno descrito por Garrett Hardin como a “tragédia dos comuns”.

A que se refere?
Você e muitas pessoas compartilham o mesmo espaço comum. Cada um tem o incentivo de “aproveitar um pouco mais” do espaço, agindo de um modo tal que, se fosse seguido por todos, tornaria a vida de cada um insuportável. Este é o risco que corremos nesta época de superconexão. Tornarmos o espaço público insuportável pelo excesso. Pela ausência de responsabilidade no trato com a opinião e o juízo. Na história da filosofia, temos a imagem do estado natural hobbesiano, um caso extremo de tragédia dos comuns. Um estado insuportável, fundado no medo e na indução constante à violência.

Na lógica de Nosedive seremos punidos sempre que não formos agradáveis. Isso já acontece, por exemplo, nas conversas das redes sociais…
A lógica de Nosedive funciona da seguinte maneira: o sistema atribui a você um custo por agir de modo desagradável. Tempos atrás li que a China estuda colocar em funcionamento um sistema como este, em 2020. Espero sinceramente que isto não seja verdade. Não tenho certeza, inclusive, se seria técnica ou socialmente viável. De qualquer modo, a ideia existe. Você é pontuado pelo seu comportamento e pelas suas opiniões, nas redes sociais e no mundo real. Quem define o critério? A multidão. Teríamos um estado simultaneamente popular e totalitário. Garanto que muita gente deve gostar dessas ideias.

Essa lógica é o nível avançado do politicamente correto?
Sem dúvida. O politicamente correto é o assalto da lógica democrática sobre a cultura. Se todos, continuamente, têm o poder de disciplinar o pensamento individual, destrói-se aquilo que define de modo mais radical a liberdade. O não impedimento externo. A insubmissão ao padrão retórico, a divergência, no limite, de um diante de todos. A civilização moderna se define essencialmente em função do desacordo moral. O único acordo possível, nas grandes sociedades, se dá no plano político. No âmbito das regras do jogo democrático. Não há, por definição, a possibilidade de um acordo no plano da retórica cultural ou ética. Sobre os limites do humor, por exemplo, ou sobre o sentido da arte. Nas sociedades abertas, é preciso aprender a respeitar aquilo que por vezes consideramos intolerável. Não há outra saída. Tentar submeter a linguagem à regra da maioria não passa de uma tolice orwelliana. Lembro de minhas leituras de Roland Barthes: a língua é fascista não quando proíbe, mas quando obriga a dizer.

Treinar feições felizes é algo que já fazemos há tempos, e os que dominam a arte do autorretrato também há tempos levam vantagem em negociações. Esse modo de viver “falso” almeja apenas status ou há outro desejo aí que pouco percebemos?
Agir com falsidade, no mundo dos sentimentos, é um direito individual. Uma amizade fingida, umas férias maravilhosas no Facebook, citações inteligentes do Twitter, qualquer dessas coisas. Seria estúpido imaginar um mundo moldado apenas pela “verdade”. Almejar o status quo também é legítimo, tanto quanto a busca pela felicidade. É evidente que há um preço a pagar por isso tudo.

Por exemplo?
O suicídio de Hemingway. Observada a certa distância, a vida de Hemingway era perfeita. Touradas, safaris, pesca em alto mar, mulheres e literatura. Na vida real havia um sujeito genial imensamente problemático, com transtornos de personalidade, alcoolismo e depressão. Em que lugar encontrar a “verdade” sobre a vida de Hemingway?

Esse hábito da “alta performance” já alcançou os relacionamentos íntimos?
Intuo que sim. Somos estimulados a isso o tempo todo pela simples observação do sucesso dos outros. As redes sociais são isso: um desfile de gente bem sucedida. Amigos passeando em Lisboa, surfando na Austrália, comemorando um novo emprego ou uma noite romântica no aniversário de casamento. É evidente que a vida real não é assim, mas não importa. Tempos atrás li um artigo sobre o impacto psicológico negativo das comédias românticas. Diante de um romance tórrido e um amor infinito, na tela do cinema, as pessoas passam a imaginar que estão devendo algo a si mesmas. As redes sociais repetem este fenômeno, de algum modo. Daí a obrigação da performance. Usando uma expressão da economia, diria que nosso “custo oportunidade” existencial aumentou. Para cada decisão que tomamos, deixamos muita coisa interessante para trás. Isto é, por óbvio, uma permanente fonte de angústia.

Qual é o antídoto para não cair em hábitos como esse? Ou não há antídoto?
Há muitos antídotos. A meditação é um deles. Reservar, todos os dias, um tempo para desconectar do fluxo dos acontecimentos, ouvir a respiração e o próprio corpo. Desligar celulares e computadores, da mesma forma. Saber escolher aquelas coisas que são essenciais, na vida, e das quais você decide não abrir mão. E recusar as coisas desimportantes. Por outro lado, gosto muito de uma lição de Richard Sennett: cultivar o hábito de uma diplomacia da fala e do debate público. Cultivar mais o modo subjuntivo. Duvidar mais da própria opinião sobre as coisas. Recusar a ideia de que você é um poço de virtude e o resto dos mortais não passa de um erro. E por último, cultivar o bom humor. De preferência recusando o politicamente correto, que é uma chatice.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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