Flannery O’Connor é uma das mais distintas escritoras americanas do século XX. Singular em todos os aspectos, explorou em suas ficções e narrativas toda a extensão da natureza humana, além, claro, de tratar de um assunto que também a define: o catolicismo. Nosso convidado da vez é William Campos Cruz, tradutor do irrepreensível livro Mistério e Costumes, lançado pela É Realizações. A obra é primorosa, dessas impossíveis de parar de ler, sobretudo para os apaixonados por literatura. Além de tradutor, Campos Cruz é editor e revisor, tendo vertido para o português autores como Andrew Lang, Fulton Sheen, Hans Rookmaaker, Karen Prior e Carl Trueman. Acerca desse ícone da literatura “grotesca” — e só é prazeroso escrever isso pela provocação aos que não a conhece —, o também professor no perfil Gramática na Vida e autor do livro Tudo converge para o texto conversa com a FAUSTO de forma inflamada — e não poderia ser diferente, afinal, estamos falando de uma acrônica irresistível.
FAUSTO — Por que Flannery O’Connor desperta paixões tão extremas? Ou se ama ou se odeia. Ou é uma percepção equivocada?
William Campos Cruz: Antes do amor ou do ódio, Flannery O’Connor desperta em nós uma verdadeira perplexidade. Nada em O’Connor é óbvio.
A começar pelas personagens…
Sim! Um assassino foragido aponta uma arma para uma velha teimosa, um vendedor de Bíblias seduz uma jovem aleijada e intelectualmente pretensiosa, um pregador itinerante funda a Igreja sem Cristo. Lemos essas histórias e demoramos para entender o que está acontecendo. A experiência é ainda mais chocante para o público religioso que chega a ela sem aviso prévio. Aqui e ali, ouvimos dizer que Flannery O’Connor é uma escritora cristã, católica, que se autointitulava “tomista caipira” e imaginamos uma obra meio idílica, repleta de bons sentimentos.
Então a impressão depende do meio pelo qual se chega a ela…
Se, como aconteceu comigo, o contato vier depois da leitura de autores como C. S. Lewis e G. K. Chesterton, o choque será imenso. A obra de Flannery O’Connor é semelhante àquela pessoa de comportamento arredio, que demora para mostrar-se plenamente. Só quem convive com ela por tempo suficiente consegue reconhecer o que há de bom ali. O’Connor não admite leitores apressados. Tenho a impressão de que ao menos parte das reações apaixonadas à sua obra se dá apenas no momento da perplexidade inicial. Como ela mesma diz, o que se espera é que os leitores façam o esforço que lhes cabe para elevar-se à altura da obra de arte.
Por que a palavra “grotesco” define sua obra?
Em primeiro lugar, convém dizer que O’Connor não adere a um movimento literário nem se filia a uma escola literária dita grotesca. Acredito que a publicação de Mistério e Costumes ajuda a lançar luzes nessa discussão. Ela não nega que haja elementos grotescos em suas histórias, mas não sei se aceitaria de bom grado este qualificativo como definidor de sua obra. Como ela diz, em nosso tempo, “os escritores que veem o mundo à luz de sua fé cristã terão os olhos mais agudos para o grotesco, para o perverso e para o inaceitável. […] Com frequência, a razão para esta atenção ao perverso é a diferença entre as crenças do autor e a crença de seu público. A redenção é sem sentido a menos que ela tenha uma causa na vida real que vivemos, e nos últimos séculos tem agido em nossa cultura a crença secular de que essa causa não existe”.
Bom ponto…
O’Connor insiste no contraste entre a visão de mundo do escritor cristão e do leitor contemporâneo; ela assume o desafio de mostrar a um público sem balizas morais claras que algo odioso é odioso mesmo. Nas palavras dela: “O romancista com preocupações cristãs encontrará na vida moderna distorções que lhe são repugnantes, e seu problema será fazê-las parecerem distorções a um público que está acostumado a vê-las como naturais; e ele bem pode ser forçado a empregar meios ainda mais violentos para comunicar sua visão a este público hostil. Quando pode presumir que seu público e você comungam das mesmas crenças, você pode relaxar um pouco e usar meios mais normais de falar com ele; quando você tem de presumir que ele não compartilha delas, então tem de tornar sua visão visível pelo choque — aos duros de ouvido você grita, e aos quase cegos você desenha figuras grandes e surpreendentes”. Dito de outro modo, a crueza, a violência e o grotesco na obra de Flannery O’Connor são uma reação à falta de sensibilidade do mundo contemporâneo.
Que bem faria aos escritores contemporâneos mergulhar na obra completa de Flannery O’Connor?
Uma das coisas que mais me agrada na obra de Flannery O’Connor é que ela é uma contadora de histórias. Seus contos são contos de pleno direito. Nenhum deles pode ser convertido em linguagem propositiva. Não há didatismo nem ensaísmo travestido de ficção. Tanto as emoções quanto as reflexões que seus contos suscitam em nós surgem naturalmente, a partir do próprio enredo da história. Como vimos recentemente no filme Ficção Americana, dirigido por Cord Jefferson, vivemos numa época em que a causa defendida pelo escritor muitas vezes é mais relevante do que sua capacidade literária e, mais do que isso, compromissos ideológicos podem até favorecer a publicação de uma obra de qualidade duvidosa; nesse contexto, a obra de Flannery O’Connor é um chamado à sinceridade. Curiosamente, o ponto de partida do filme é uma discussão entre um professor de literatura e uma aluna a respeito do conto “O negro artificial”, de O’Connor.
Fora as características que definem cada gênero, quais são as diferenças entre a Flannery romancista e a contista? Se é que há…
Flannery O’Connor escreveu dois romances, Sangue Sábio e O Céu é dos Violentos, e deixou um terceiro inacabado. Destes, só li Sangue Sábio, que não é longo e no qual, por assim dizer, encontro a mesma Flannery dos contos. Eu não saberia traçar uma distinção rígida entre essas facetas de sua produção. No ensaio “A natureza e o objetivo da ficção”, em que O’Connor se permite falar da própria obra, a autora opta pelo emprego do termo ficção ou narrativa justamente por sua abrangência, por ser capaz de abarcar tanto romances quanto contos.
Faz diferença se o escritor contemporâneo é conservador ou progressista? Se é ateu ou religioso?
Sinto a tentação de citar, mais uma vez, Mistério e Costumes. Ali, a autora revela os seus pressupostos, seu entendimento da atividade literária e muito de sua visão de mundo. Quando lhe perguntaram se a crença num dogma religioso tolhia sua liberdade criativa, ela respondeu de maneira absolutamente admirável: “o dogma não impede o escritor de enxergar o mundo ao seu redor; ao contrário, a crença no dogma possibilita o acesso a mais dados — e não menos — do que vê o escritor materialista”. O modo como a autora de Sangue Sábio trata da visão de mundo é suficiente para abarcar questões morais, religiosas, cognitivas e, consequentemente, também políticas. Segundo ela, o romancista cristão reconhece o pecado como pecado; não o vê como doença ou acidente do ambiente, mas como a escolha responsável da ofensa contra Deus que envolve seu futuro eterno. E ela é enfática neste ponto: “Ou se leva a sério a salvação ou não. E é bom perceber que a maior medida de seriedade admite a maior medida de comédia. Somente se estivermos seguros de nossas crenças poderemos ver o lado cômico do universo. Uma das razões por que boa parte de nossa ficção contemporânea é mal-humorada é que muitos desses escritores são relativistas e continuamente têm de justificar as ações de suas personagens numa escala móvel de valores”.
O que ela quis dizer, em Mistério e Costumes, com a frase: “Na ficção, dois mais dois sempre são mais do que quatro”?
Como “tomista caipira”, Flannery O’Connor tem como pano de fundo a ideia medieval de que os textos têm diferentes níveis de significação: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico. A frase citada foi dita numa conferência para aspirantes a escritor. Nessa conferência, O’Connor apresenta a noção de “hábito da arte”, que ela colhe em Jacques Maritain. Preciso fazer uma breve digressão: umas das coisas mais admiráveis no texto de Maritain é a densidade de sua linguagem. Não há palavras ocas. Cada palavra é carregada de significado. Diz Maritain que “a arte é a virtude do intelecto prático”. Em seguida, passa a explicar o que é virtude, o que é intelecto, o que é intelecto prático e, então, chegamos ao entendimento do que é arte. O’Connor diz que o hábito da arte está enraizado na personalidade inteira do escritor de ficção e que esse hábito inclui “um modo de olhar para o mundo criado e de usar os sentidos de maneira a fazê-los encontrar tanto significado quanto possível nas coisas”. Deste modo, “dois mais dois são mais do que quatro” porque tudo é visto e compreendido simultaneamente nos diferentes níveis de significação.
Qual é a diferença entre explorar na ficção o senso moral ao máximo e usá-lo de forma ridicularizada?
Podemos depreender a resposta a essa pergunta da resposta anterior. O bom escritor, que adquiriu o hábito da arte, trabalha nos diferentes níveis de significação simultaneamente. Como O’Connor diz repetidas vezes em Mistério e Costumes, o senso moral do escritor deve coincidir com seu senso dramático. O problema está na cisão entre uma coisa e outra. Moralismo, sentimentalismo e proselitismo, em literatura, são problemas análogos ao da arte engajada, no sentido de que rebaixam a arte a uma peça de propaganda. A verdadeira literatura pode tratar de questões morais, mas não pode fazer delas o seu fim.
Uma ficção pode ser de qualidade sem ironia e sem inteligência realista?
Pessoalmente, tenho receio de fazer afirmações categóricas a respeito de literatura porque, a qualquer momento, pode surgir um contraexemplo e torná-las sem sentido. O que posso dizer é que ironia e inteligência realista costumam ser ingredientes de grandes obras — mas dizer isso é bem diferente de afirmar que basta a presença de ironia ou de realismo para que uma obra alcance um padrão elevado de qualidade.
Li recentemente — e lamento ter esquecido o autor — que não há texto que não revele seu tempo. Fazendo apenas um exercício de elaboração, considerando a óbvia impossibilidade da proposta, se hoje vivesse, como O’ Connor retrataria a “esterilidade espiritual” de nosso tempo?
Não creio que a obra de O’Connor esteja vencida. A crítica que ela faz permanece válida por uma razão muito simples: o pecado continua sendo pecado, e o homem continua sendo caído; para salvar-nos de nossa culpa, não precisamos de justificativas, de explicações, de razão, mas de perdão e de um redentor. Olhar para o grotesco na obra de O’Connor e reconhecê-lo com grotesco pode servir como preâmbulo a um exame de consciência ou a uma reflexão sobre a nossa própria condição. Antes de especular a respeito do que ela diria sobre nosso tempo, acho que vale mais a pena meditar um pouco a respeito do que ela efetivamente disse, seja em sua ficção, seja em seus ensaios.
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