Exercício das Crianças: espetáculo para gente grande

O espetáculo Exercício das Crianças propõe um jogo entre o público e as atrizes Nicole Cordery e Fernanda Viacava.

Porém, não há nada de pueril na peça, a despeito do nome. O barulho de goteira, feito onomatopeicamente, disfarça o desconforto de uma história familiar que deixaria até mesmo Nelson Rodrigues boquiaberto.

A máxima é: esqueça de uma vez por todas as aparências, ninguém conhece a batalha íntima de ninguém.

O verdadeiro eu, por trás de uma máscara social, pode esconder feridas inimagináveis. E quase sempre essas feridas começam no começo, isto é, no seio familiar.

Entretanto, de início, o texto de Bruno Cavalcanti dá a entender que será uma atuação lúdica, mais para o experimentalismo — o que não deixa de ser, mas falaremos disso adiante. 

Claramente, Exercício das Crianças é muito mais do que isso. É espetáculo para gente grande, em seu mais alto grau de experiência existencial.

Em cartaz no Espaço de Provocação Cultural, localizado na Vila Romana, a montagem conta com direção da lenda Noemi Marinho.

O formato, no mínimo, foge à regra das montagens tradicionais em teatros convencionais — Exercício das Crianças é também uma provocação.

É um projeto que não provoca apenas os limites do público, mas dos atores, da produção e do próprio teatro e seu modus operandi.

Fernanda Viacava e Nicole Cordery propõem ao público uma antiga dinâmica que, de acordo com as atrizes, entrou em desuso: quem faz a peça entrar em cartaz é o público.

Em outras palavras, a equipe inteira se movimentou — sobretudo nas redes sociais — para divulgar a peça e sua proposta a fim de levantar verba para a sua viabilização.

De forma explícita e incitadora — inclusive porque é o rosto à frente da plataforma Platore —, Cordery, coprodutora de Exercício das Crianças, quer provar que há diversas formas de se fazer teatro, sem depender de nenhum tipo de fomento, edital ou lei de incentivo.

Os ingressos viabilizam tudo: no espaço em que a peça acontecerá às quartas e quintas, a lotação é de 35 pessoas. 

Uma proposta tão intimista e minimalista pretende levar o público aos primórdios: “Um ser humano diante de outro”, como pontua Cordery. E não se arrependerá quem comprar o ingresso antecipadamente.

Nicole e Fernanda são estupendas! Diante de suas feições, ora dissimuladas, ora saudosas de um tempo de infância sem marcas, levam a plateia ao máximo da imaginação.

Em curtíssima temporada, Exercício das Crianças ficará em cartaz apenas neste mês de novembro. Os ingressos custam somente R$ 50,00 e podem ser comprados diretamente com a produção por meio de uma chave PIX: exerciciodascrianas@gmail.com — e é imprescindível o envio do comprovante para esse e-mail, informando também a data que deseja assistir à peça.

Sem iluminação, sem cenário, sem figurino, Exercício das Crianças é teatro para quem gosta de teatro. Teatro para quem gosta de texto de teatro. Teatro para quem gosta de atuação. 

É claro que não rejeitamos apetrechos, mas, comprovadamente, quando não há mais nada além do ator, enxergamos a força do talento com mais nitidez. E neste quesito, como não se apaixonar por Nicole Cordery e Fernanda Viacava.

A respeito da trama, duas irmãs se reencontram depois de muitos anos e, inevitavelmente, surgem os acertos de conta. Quem fica quase sempre guarda mágoas de quem vai e quem vai paga o preço do que fica e passa a deixar de ser seu, como um laço desfeito.

Tramas familiares não são novidade no teatro, mas é sempre a forma de se contar uma história, sem luz, sem cenário, sem figurino. São as palavras que marcam e todo indivíduo tem sua lista a tiracolo que o intitula um ser único, tragicamente.

Nós e nossas tragédias, essas que nos levam também ao limite.

Nós e nossa forma de fugir delas, essas que também desafiam a forma de contar quem somos.

O que é família para o nobre leitor?

Para mim, um escuro desconhecido em minha mente, inconscientemente. O que resgato em lembranças são desconexões, partes de mim que não me dizem respeito. Dizem que há o tal laço de sangue.

Interpelei Nicole Cordey a respeito. Mesmo com o arsenal vastíssimo de palavras, foge-me a compreensão desse “correr”. Ela diz: “Família é o lugar para onde corro quando preciso de ajuda, não só financeira, mas de apoio emocional. São as pessoas com quem posso contar, meu pai e minha mãe.”

Claro que laços de sangue são quebrantados, as duas irmãs ficcionais provam isso, e que bom que achei alento em seus dramas, ainda que na infelicidade de ser mulher.

Nicole, no entanto, diz algo que me inquieta: “Laços de sangue são inquebrantáveis, mesmo que você passe a vida inteira negando o parentesco, a negativa já deflagra que é uma coisa que você não consegue quebrar. É sempre uma tentativa de você não ser parente daquela pessoa”.

Quem não me deixa em paz quanto ao inquebrantável é a religião. 

Na base de qualquer religião, há um elo inquebrável entre pais e filhos, e não quero dissertar sobre os propósitos desses elos. Como as duas irmãs ficcionais não dissertam, elas apenas narram.

“Não somente a religião católica reafirma os laços de sangue. Espírita, Candomblé, Umbanda também têm seus significados e significantes. Acredito muito na família teatral, tenho várias. Todos que já fizeram alguma peça comigo têm algum vínculo familiar comigo, sabe? Já me viram chorar, suar, sangrar, embora nem todos sejam meus irmãos. A peça também fala sobre laços de família no fazer teatral.”

Fernanda Viacava veio de uma família tradicional: pai, mãe, cinco filhos, pais casados até hoje, mais de cinquenta anos. Vez ou outra, todos se reúnem. Como Nicole, crê que família é um conceito que pode ir além. 

“Acredito que família são pessoas que convivem, que se ajudam mutuamente, independentemente do laço de sangue.”

Acerca dos laços inquebrantáveis, Viacava diz algo que me perfura: “Não acho que são inquebrantáveis, mas com certeza você tem muito mais perdões.” 

Se família é um limite claro para mim, e talvez para muitos que enxugam as lágrimas discretamente em Exercício das Crianças, para os artistas é um limite do fazer teatro. Se o formato vai funcionar? Elas apostam e torcem para que sim. Quem assistiu à peça, também.

Do que dependem então?

Arrisco: que falem sobre a peça como um adultíssimo exercício de criança, para revisitar o que só o teatro permite com leveza.

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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.