Jacqueline Vargas, renomada roteirista e psicanalista, é a autora do romance para jovens adultos A arte de cancelar a si mesmo. Essa obra encantadora não só atrai adultos, especialmente pais que buscam compreender melhor o comportamento dos jovens atuais, mas também oferece uma visão profunda e reflexiva sobre a natureza humana e o mundo em que vivemos. Com habilidade única para tecer a complexidade humana em situações cotidianas, Jacqueline cativa o público com suas tramas envolventes e provoca reflexões importantes. A escritora já deixou sua marca em produções audiovisuais como Sessão de Terapia, Rua Augusta e Maria Magdalena, além de ser autora do intrigante Aquela que não é mãe. Numa conversa urgente, discutimos as gaiolas douradas em que estamos aprisionados e nossa “dama de companhia” moderna: o celular.
FAUSTO — E se perdêssemos tudo o que guardamos na nuvem? Como nos redescobriríamos?
Jacqueline Vargas: Primeiro, seria um momento de caos. Penso que a sociedade ficaria bastante perdida, porque a vida atual se apoia demais no digital. Mesmo que as pessoas não armazenem tudo na nuvem, elas têm a tela como bengala: o joguinho, os sites que visitam, a rede social com perfil real ou falso. Então, a perda dessas informações traria um vazio, uma lacuna que logo poderia gerar certa aflição; afinal, muitos se dariam conta de como perderam tanto tempo.
Excelente ponto!
Pois é, as pessoas perceberiam as fotos maravilhosas que não imprimiram, todos os livros que não leram ou leram apenas a resenha reeditada e tendenciosa, o mundo de informações preciosas acumuladas para depois — quase como para uma outra vida — e como sabem muito pouco do básico que deveriam saber. A redescoberta poderia vir justamente de uma constatação de confiarmos em algo que não é palpável. O espaço da nuvem pode ser indefinido e comprado ad aeternum, mas o nosso tempo de vida não. Isso seria o palpável a ser redescoberto.
Qual é a diversão de mentir descaradamente?
Não sei se é diversão… É uma excelente pergunta. O fato de poder fazer o que não se teria coragem é o ponto número um. Quando se mente com outra identidade — por exemplo, uma personagem do meu livro pega uma foto de outra garota e usa esse rosto como se fosse o dela —, de certa forma, ao cometer esse ‘delito’, ela se autoriza a fazer coisas que, de outra forma, não teria confiança para se autorizar. Ela se diverte, mas também realiza outros desejos. O ponto é que a mentira nas redes não está sendo associada à falta de verdade. Vemos, principalmente as mulheres, independentemente da idade, abusarem dos filtros. É um negócio doido! A mística da mulher não poder envelhecer vem sendo estabelecida por séculos, só que na atualidade adquirimos a possibilidade de negar a realidade. Pelo menos a que não é mais agradável. Quando vou fazer um vídeo, olho para meu pescoço e penso: “Estou parecendo um galo”. Quero congelar um tempo em que eu me achava agradável. Coloco um filtro, edito a imagem, pareço dez anos mais jovem. E nisso concretizamos Oscar Wilde e seu O Retrato de Dorian Gray. Mentir descaradamente é como se fosse uma proteção, é estar sempre num estado de fantasia, naquele estado de devaneio que me protege do que é ruim. É mais do que diversão. Basicamente nos tornamos perversos com filtro de neuróticos.
Beleza é um “mega super poder”, como para a sua personagem?
Acho que, para algumas pessoas, a beleza é um “mega super poder” sim, e para o restante a beleza é importante, apesar de ter toda essa conversa do “body positive”. A contemporaneidade fala tanto de se aceitar, deixar o cabelo ficar branco, natural, abraçar seu corpo, suas origens etc. Fala que todos os tipos de beleza são beleza. Essa fala por si só reproduz a preocupação com o belo. “Se encontre com a sua beleza” — implica a procura de um ideal de beleza, implica que ainda estamos batalhando pela beleza, a beleza ainda é uma preocupação, porque se ela não fosse uma preocupação, não existiriam todos esses tipos de movimentos
Existe o belo inatingível?
Ah, acho que não.
A beleza não está justamente na vulnerabilidade…
Eliana…Acho que não tem belo inatingível [Risos]
Talvez seja uma conclusão que chegamos somente quando estamos mais velhos, mas a beleza não é justamente a vulnerabilidade?
Acho que não tem o belo inatingível, porque, como todo ideal de perfeição, isto está no campo da ideia. Além de ser muito particular e subjetivo, o meu belo não é o seu belo. Beleza é ideal, então é inconsciente, é sonho, é imemorável. Existe para se desejar, almejar, fantasiar. Não será alcançado. Se alcançamos, acabou; voltamos para o momento de estase inicial — é meio que a morte. Acho que o belo inatingível é a morte, é o nada, é o acabou: cumpriu-se tudo.
Os comandos que nos dão nas redes sociais nos deixam sem tempo para pensar em quem realmente somos?
Essa questão é explorada de maneira provocativa em A arte de cancelar a si mesmo. Não se trata apenas de cancelar alguém por um deslize ou por um posicionamento controverso. É sobre perder a conexão consigo mesmo a ponto de se autocancelar. É uma atitude que parece ser inclusiva, ‘normal’, esperada. A toada de hoje é de que precisamos nos ambientar, sociabilizar, interagir, consumir e, principalmente, deixarmo-nos consumir. São tantas concessões para estar encaixado na ‘indústria’ que não dá tempo de ser quanto mais refletir sobre isso. Tudo é feito para ser tão compartilhado e fragmentado justamente para não existir a introspecção. O marketing aproveita essa velocidade frenética. As pessoas seguem as tendências sem questionar se realmente se alinham a elas, se são benéficas ou se as interessam genuinamente.
O que provoca esses comportamentos?
Parece que vivemos numa sociedade carente de figuras parentais, todos parecem um pouco órfãos, esperando por alguém que os oriente: “Levante, você precisa ir para a escola”, “Já se banhou? Escovou os dentes?”, “Coma tudo o que está no prato”, “Brócolis é bom para a saúde, você precisa comer”. Muitos aplicativos ditam como devemos comer, cuidar da saúde, estudar, fazer exercícios. E as pessoas seguem essas orientações cegamente. Algumas pessoas têm aplicativos que monitoram o sono, como se precisássemos de uma figura paterna ou materna ao nosso lado para garantir que estamos fazendo tudo certo. São tantas demandas que as pessoas se sentem perdidas. É nesse contexto que vemos a proliferação de coaches, que se tornam ídolos, quase gurus espirituais. A própria palavra “influenciador” é emblemática: “Estou aqui para influenciar você a fazer o que é melhor para sua vida, porque minha vida é melhor do que a sua. Eu sei mais do que você.” É uma situação louca e surreal.
É possível ser autêntico tendo redes sociais?
Acredito que ninguém consegue ser autêntico 100%. Quando nos expomos ao mundo, inevitavelmente filtramos o que dizemos. O superego entra em ação e fazemos uma seleção do que compartilhamos. Claro, às vezes, em momentos de desinibição, tudo pode mudar. No entanto, acredito que podemos nos aproximar da autenticidade mesmo estando nas redes sociais. Isso não implica necessariamente em sucesso, monetização ou popularidade. Muitas vezes associamos as redes sociais a número de seguidores, interações e imagem positiva. É possível ser autêntico e enfrentar cancelamentos, ódio e críticas severas. A personagem Majô escreve poemas e tem um caderno com desenhos e poesias que ela gostaria de compartilhar. Enquanto escrevia o livro eu fiz o caderno da personagem, fui colocando os poemas e desenhos. Um dos desenhos dela retrata várias gaiolas douradas, cada uma representando um feed do Instagram. É como se estivéssemos em viveiros de gaiolas douradas, cada um achando a sua a mais bonita. No entanto, no fundo, todas são iguais. Ao entrar nas redes sociais, acabamos nos encaixando nesse sistema de gaiolas.
E quem prefere manter um perfil mais reservado? É possível continuar sendo assim?
Nos dias de hoje se o sujeito consegue, ótimo. Maravilha. Agora, se existe a dúvida sobre como proceder, é importante fazer uma pausa. Isso pode ser especialmente desafiador dependendo da sua idade e experiência de vida. Se bem que a nova geração já está no modo reservado. Até tem um perfil, mas não publicam nada.
A reclusão é um sintoma?
Hoje em dia, há uma forte tendência à reclusão devido à influência das telas. Se bem que o fenômeno “Hikikomori” vem acontecendo no Japão há bem mais do que duas décadas. Só que o ambiente virtual proporciona um espaço que nos mantém engajados de forma compulsiva. Esse vício foi cuidadosamente planejado, não é algo por acaso. O fenômeno do TikTok é um exemplo notável. Os vídeos curtos são projetados para manter o espectador preso, pois logo após um, começa outro, automaticamente. É fácil cair na armadilha de pensar “só mais um”, repetidamente, sem perceber quanto tempo se passou. Às vezes, cinco horas podem se esvaecer sem que tenhamos absorvido muito, pois tudo é breve e muitas vezes superficial. E como a grama do vizinho parece sempre mais verde, a vida na pequena tela é sempre grandiosa. Nada do que o jovem — principalmente o jovem — faça será mais interessante do que aquilo que ele tem ali, ao alcance da sua mão. E nisso a reclusão é alimentada.
E nisso vamos perdendo tempo e nos perdendo…
As pessoas estão se perdendo porque há uma avalanche de informações, mas sem foco. Os jovens de hoje têm uma tela que, em teoria, é mágica — um espelho mágico que oferece acesso ao Google, jogos, redes sociais, conexões virtuais de todos os tipos. Mas e o contato físico, o olho no olho? A presença física faz uma enorme diferença. Estar fisicamente presente cria uma conexão que não pode ser digitalmente replicada. Compreendo que muitas vezes recorremos ao mundo virtual por insegurança, medo da reprovação, para escapar das expectativas dos outros. Existe um desejo de estar sozinho para poder ser genuinamente quem se é, sem o peso do julgamento externo. Essa ideia de só poder ser você em isolamento é o grande equívoco e o grande desafio da geração atual, em que muitos sentem que só podem ser verdadeiramente autênticos quando estão ocultos, atrás de um avatar, onde ninguém realmente sabe quem são.
A partir de que ponto a reclusão é preocupante?
Parece-me que seria a partir do momento em que ser visto fora do quarto/casa ou das redes se torna um sofrimento.
E não tem saída, tem?
Tem, com certeza. Não sei qual, mas tem.
Por que temos que conversar com pai, mãe, irmão ou cônjuge? Parece uma pergunta óbvia, mas não é…
Nunca é. Cada vez eu me convenço mais disso. O que pensamos que é óbvio provavelmente só é para nós. O outro precisa saber. Precisamos verbalizar. Nomear. Se você vive numa família, é crucial poder conversar abertamente com as pessoas ao seu redor. Se você não tem essa liberdade, isso pode gerar uma hesitação em se abrir com qualquer outra pessoa fora desse círculo. Afinal, se você não pode confiar em sua base familiar, como poderia confiar em qualquer outra pessoa? Isso pode fazer com que você se torne arisco, desconfiado e cauteloso em suas interações.
Quais são os benefícios de uma troca familiar?
A troca familiar ajuda a moldar seus valores e princípios, desde cedo. A família pode se estruturar de diversas formas, com diferentes arranjos, mas o convívio próximo com aqueles que o criam ou criaram, seja com pais, irmãos ou primos, é essencial. Crescer ao lado dessas pessoas implica compartilhar experiências e aprendizados, especialmente quando se é mais jovem e está explorando o mundo. Num ambiente familiar saudável, sobretudo para os mais novos, é importante ter a confiança de poder consultar aqueles que têm mais experiência, para aprender e entender melhor como as coisas funcionam.
Ser anônimo é sinônimo de ser único?
Ser anônimo é, de certa forma, interessante, porque poucas pessoas almejam o anonimato. Algumas buscam o anonimato para poder agir sem ser identificadas, evitando punições e responsabilidades. Ser anônimo é um bicho raro, um ser à parte. Há quem decida não ter redes sociais, usar um celular antigo que só faz chamadas, ou um computador que nunca se conecta à internet. Essas escolhas podem ser orientadas por um desejo de evitar se tornar mais um algoritmo, ou mais uma gaiola dourada, como diz a personagem Majô.
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