O Camisa de Vênus nasceu num contexto em que o termo que dá nome à banda era considerado impropério, insulto, além do uso do objeto ser deveras incômodo.
Todavia, com o passar dos anos, a expressão foi substituída por outra mais “suave” e aceitável, e a usabilidade do item melhorou.
Contudo, a banda, que seguiu inconvenientemente com seu nome, permanece incomodando os puritanos com um rock’n’roll potente, com letras que vão do vitupério ao realismo trágico.
Ao vislumbrar o futuro e constatar que ele era passado, o Camisa de Vênus, fundado em 1980 por Marcelo Nova e Robério Santana, em Salvador, seguiu sua essência a despeito de todas as desvantagens que isso poderia, à época, acarretar.
Liderados por Marcelo Nova, o conjunto, que passou por algumas formações e hiatos, viu que, na verdade, a vanguarda era a sua essência.
Mais de quatro décadas depois, o Camisa continua proporcionando um rock’n’roll visceroso.
Além dos fundadores Marcelo Nova e Robério Santana, a atual formação da banda conta com a dupla indomável de guitarristas Drake Nova e Leandro Dalle. A composição do conjunto é complementada pelo baterista Célio Glouster.
O Teatro Bradesco, na capital paulista, quase veio a baixo na noite de sábado, catorze de dezembro, quando os primeiros riffs de “Hoje”, do segundo álbum da banda, Batalhões de Estranhos, de 1985, foram executados.
A euforia foi intensificada quando Marcelo Nova, aos 73 anos, entrou no palco, indo logo depois para o meio do público. Com energia arrebatadora, o show começou nessa catarse.
A banda engatou a música cujo título é o grito de guerra dos fãs: “Bota pra fudê”.
“Se você correu tantas vezes atrás de fantasmas, tão covardes não souberam nem ao menos lhe assustar, já andou encurralado no meio de tanta chuva, nenhuma gota foi capaz de lhe molhar.”
“Deus me dê grana”, do disco Correndo o Risco (1986), foi a terceira da noite. A balada “Rosto e Aeroportos”, de Batalhões de Estranhos, foi executada na sequência.
“Vou vestir a minha sombra, preciso me proteger. Eu sempre manejei bem as palavras, mas agora não sei o que dizer.”
A música de Jards Macalé e José Carlos Capinam, “Gotham City”, ganhou, como de praxe, uma atração à parte com o entrosamento das guitarras de Drake Nova e Leandro Dalle. Originalmente, a faixa também consta em Batalhões de Estranhos.
Em seguida foi a vez de “O lado errado do trilho do trem”, que consta no álbum solo de Marcelo Nova As cartas que eu nunca enviei, de 2023.
A extensa letra é uma obra-prima que condensa o já citado realismo trágico, presente na obra do Camisa, mas intensificado no trabalho de Marcelo Nova.
“Meu cérebro anda triste, até parece um coração
Batendo fora do compasso, filho de uma maldição
É que eu nasci do lado errado do trilho do trem
Assim como Dylan, Raulzito e Seu Zé do armazém.”
Do disco A Panela do Diabo (1989), gravado conjuntamente com Raul Seixas, foi apresentado “Pastor João e a Igreja Invisível”. E, por mais incrível que pareça, não se ouviu nenhum grito de “Toca Raul” durante o show. Marcelo parece ter educado bem o seu público.
O hino nacional “A raça mansa”, do álbum Dançando na Lua (2016), foi executado logo depois.
“Nós dançamos a dança
Nós cancelamos a luta
A nossa raça é mansa
A nossa massa é bruta
Nós vivemos de esperança
Nós pagamos as putas.”
A banda deu continuidade ao show com as três seguintes canções: “Não sou passageiro”, do disco Quem é você? (1996); o clássico “Simca Chambord”, de Correndo o Risco (1986) e, para surpresa deste que vos escreve, “Controle Total”, de um compacto de 1982, uma crítica ácida a Salvador, “a cidade do axé, a cidade do horror”.
Logo após, mais uma parceria com Raul seixas. “Muita estrela, pouca constelação”, do álbum Duplo Sentido (1987). Um parecer sobre o rock nacional dos anos oitenta ao melhor estilo Camisa de Vênus.
“Tem uma banda que eles já vão contratar
Que não cria nada mas é boa em copiar
A crítica gostou vai ser sucesso ela não erra
Afinal lembra o que se faz na Inglaterra.”
Na sequência, “Bete morreu”, do primeiro disco, homônimo (1983), e a pedrada “Agulha no Palheiro”, que dá nome ao último álbum da banda, lançado em 2021. O cover de Frank Sinatra, “My way”, e a divertidíssima “Sílvia” vieram em seguida.
Os clássicos “O adventista”, do disco Camisa de Vênus; “Só o fim”, do Correndo o risco, e “Eu não matei Joana D’Arc”, de Batalhões de Estranhos, fecharam o show catártico do Teatro Bradesco, o ritual de fim de ano.
Nenhum conceito ou elucubração intelectual pode definir melhor o que é o Camisa de Vênus do que o grito de guerra “bota pra fudê”. São mais de quatro décadas de pura iconoclastia, atitude e, claro, muito rock’n’roll.
A apresentação do Teatro Bradesco mostrou uma banda à vontade, com Drake Nova exibindo cada vez mais seu virtuosismo na guitarra, complementado pela técnica e maturidade de Leandro Dalle, dupla que está marcando história no rock brasileiro.
À frente disso tudo o “anarquista conservador” Marcelo Nova, que está em sua melhor fase — que me perdoem os saudosistas. Irrequieto, eloquente e provocador, o frontman tem ainda muita lenha para queimar.
O rock está mais vivo do que nunca. Vida longa ao Camisa!