Quando Like a Virgin, em 1984, estourou em televisões e rádios de todo o mundo, a pergunta que se fazia era: quem é Madonna?
A figura de nome estranho desafiava o status quo da sociedade americana, com trejeitos exagerados e trapos a que chamava novo estilo de se vestir.
Madonna entrou em cena provocando como nenhum outro artista ousou fazer.
A lista de atrevimentos — já nos primeiros anos de carreira — foi longa: seios de fora, cruzes em chamas, santo negro, criança que assiste a uma stripper, mulher interessada apenas em dinheiro, namorada que usa coleira, gravidez na adolescência, simulação de masturbação em público, e tantas outras ousadias simbólicas.
Madonna vestiu-se como homem, vestiu-se como prostituta, sobretudo vestiu-se como mulher, não abrindo mão de nenhum arquétipo que considerou fazer parte desse enigmático gênero.
Ainda hoje, prova ser uma artista ativa, criativa e com vigor admirável.
Tudo começou oficialmente em outubro de 1982 com o single Everybody, produzido por Mark Kamins.
Distribuído pela Warner Music Group para um público restrito, o da dance music, Everybody foi classificada como uma dance e não como pop.
A capa do compacto não exibiu nenhuma fotografia da cantora, o que aumentava o mistério.
Menos de um mês depois, Everybody figurou na parada dance da Billboard, em 6 de novembro de 1982, ainda sem nenhuma fotografia de Madonna, Burning Up, de 1983, veio em seguida.
Produzido por Reggie Lucas, nome respeitado do rhythm and blues, Burning Up ganhou um videoclipe ainda simples – comparando-o às grandes produções de hoje.
É importante lembrar que a carreira de Madonna despontou no mesmo momento do surgimento do videoclipe e da MTV.
E mesmo na ausência de técnica de produção aprimorada Burning Up é muito rico de símbolos que podem ser estudados pelo feminismo não militante sobre o campo das relações amorosas.
Foi o vídeo de Burning Up que apresentou o rosto de Madonna e a cantora tornou-se então conhecida pelos que já haviam abraçado sua música dançante.
Depois desse segundo single emplacado, o selo Sire, dono desses primeiros dois singles, decidiu arriscar um álbum completo. Madonna foi lançado em julho de 1983.
A grande estrela da pueril pop music, nesse início dos anos 1980, era Michael Jackson.
Se o título de Rei do Pop foi dado a ele, estaria desocupado então o título de Rainha do Pop, posto que Madonna trabalharia incansavelmente para ocupar. E foi esse disco de estreia, Madonna, que colocou a cantora na escalada do sucesso.
Com apropriações artísticas inovadoras para a época, Madonna chegou à posição em que hoje — pouco mais de três décadas depois — se mantém inalterada como um exemplo de artista inigualável, mas também de mulher independente.
No início dos anos 1980, esse potencial iminente de uma artista que alcançaria notoriedade mundial pela originalidade, era algo que estava apenas na mente da Madonna. E algo irremediavelmente ligado à ambição da artista de querer, a qualquer custo, ser celebridade.
Poucos foram os executivos do mercado do entretenimento, nesse início, que viram Madonna como uma figura longeva. Mas para ela pouco importava como alcançaria a fama, ela só sabia que alcançaria.
Nesse contexto, é difícil dissociar o sucesso de Madonna da própria época em que viveu. Os anos 1980 foram perfeitos para a ambição da artista.
Como bem colocou Randy Taraborrelli, um de seus biógrafos:
“A noção de “celebridade” nunca teve muito a ver com as habilidades pessoais de alguém nem com o que ela possa ter realizado em termos artísticos. Sempre tem a ver com o marketing pessoal – e isso nunca foi mais verdade do que na década de 1980. Com o crescimento da tevê a cabo, dos videoclipes, das revistas, da publicidade de rua e outdoors, da propaganda em rádios e filmes, uma celebridade podia ser explorada 24 horas por dia: nas salas das pessoas, em clubes, em supermercados e nas ruas, a mesma imagem projetada de todas as direções, de onde quer que se olhasse. Madonna foi uma das primeiras artistas a entender essa reviravolta cultural; Michael Jackson também percebeu. No início de sua carreira como cantora nos anos 80, ela se certificara de sempre contar com a cobertura completa da mídia. Iria aparecer de bom grado em todo show de televisão, capa de revista, videoclipe chamativo, custasse o que custasse.”
Seria apenas uma imagem despojada e o frescor de uma sensualidade nova, marcada pelo ordinário, pelo puído, que comporia o desejo das wannabes?
Wannabe foi um termo criado pela mídia americana para designar as garotas que queriam ser como Madonna. E havia muitas. Difícil, na verdade, é encontrar mulheres na faixa dos 35 a 60 anos, que não tenha desejado em algum momento ser Madonna.
Ao longo de sua trajetória, a cantora vendeu mais de 300 milhões de discos.
Os números espantosos vieram de um legado que não deixou ninguém de fora: homossexuais, travestis, pobres, ricos, crianças, mulheres e homens comuns. Sim, as minorias.
Considerada uma ameaça à família, à mulher decente, mãe e esposa impecável, principalmente depois do livro SEX, de 1992, Madonna fez ensaios polêmicos e apropriou-se da liberdade, que a libertinagem por definição permite, para reunir os vários universos considerados subversivos. Provocando um dos maiores escândalos de sua trajetória, o livro foi considerado um ataque ao pudor, uma ameaça para a sociedade, pelo caráter obsceno. Todo o ensaio foi filmado e parte dele tornou-se, logo depois, o videoclipe da música-tema Erotica, também de 1992.
Anos 2000. Pela primeira vez, em toda a sua trajetória, Madonna divide os holofotes com outras artistas mulheres.
Nos anos 1980, a cantora Cindy Lauper também fez parte do cenário pop com Madonna, mas de nenhuma forma a “disputa” aconteceu no campo da imagem. Cindy Lauper nunca exalou a mesma energia sexual de Madonna.
Ao contrário, mesmo que o despojado também compusesse o seu estilo, cheio de peças baratas de brechós — como Madonna também se apropriaria dessa composição mais ordinária, e quanto mais ordinária melhor —, Lauper estava mais para o excêntrico, com seus cabelos ora azuis ora amarelos, distante do platinado a la Marilyn Monroe de Madonna.
Então, nos anos 2000, Britney Spears e Christina Aguilera seriam as novas “modelos”.
Ambas pegaram carona no conceito estreado por Madonna: diva pop sex-kitten. O termo sex-kitten foi criado para Brigitte Bardot, que dizia sobre esse tipo de sensualidade menos femme fatale e mais amigável, algo mais próximo das pin-ups.
Em brevíssimo retrospecto, o primeiro grande tema de Madonna em um videoclipe foi o das relações amorosas inter-raciais, visto em Borderline, de 1984.
A emancipação da mulher e seu poder são temas centrais em Express Yourself, 1989. Já em Material Girl, de 1985, vimos um pastiche da interpretação de Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras, filme de 1953, o dinheiro e o poder do homem que seduzem a mulher.
Se a diversão infantil é tema de Cherish, de 1989, a vaidade e a disputa de poder pautam Vogue, de 1990. Nem a violência fica de fora. O vídeo de What It Feels Like for a Girl, de 2001, foi compreendido pelo público como violento.
Os dois fenômenos da música pop, Michael Jackson e Madonna, caminhariam, ano após ano, por estradas muito distintas.
A música de Michael Jackson só cresceria em qualidade sonora, enquanto sua voz política se perderia em um abismo emocional. Já Madonna, em determinado dia teve o insight de num trecho de seu show simular o ato de se masturbar.
Intitulá-la heroína seria exagero. Todavia, parece inegável que sua rebeldia tenha dado a seu público algum motivo para não mais esconder suas fantasias — e as sexuais seriam apenas algumas delas, uma vez que sua fama não declinou depois de Erotica. Viriam ainda muitas outras facetas: a feminista, a conservadora, a hedonista, a aristocrática. E cada disco refletiria cada bandeira ou faceta.
Seria Madonna o próprio Satã pelo abuso imagético de símbolos religiosos? Ou porque jogou luz sobre a escuridão de uma vida afetiva e sexual cômoda — burguesa ou não?
Ela mesma deslizou o tempo todo pelos extremos dessa relação desejo-puro-e-imoral e tradições-imutáveis-arquetípicas.
Sua vida sexual, com homens e mulheres, foi exibida ao mundo, mas quando casou, no modelo mais aristocrático, não se recusou ser fotografada junto com a família trajada num recatado vestido floral.
Suas expressões artísticas enquanto esteve “apaixonada” não escondiam seus desejos de ser consumida pelo objeto de sua paixão e até de viver um modelo moralmente superior, o da esposa perfeita.
Ela, traidora da religião de sua infância, voltara-se às questões existenciais primordiais com a cabala.
Toda a obra de Madonna contempla treze álbuns, três coletâneas, quatorze DVDs, entre turnês e filmes, oito álbuns fotográficos, cinco livros infantis e artigos de moda lançados pela marca Material Girl, criada em 2010.
Parte do mundo rejeita a imagem de uma senhora que expõe seu corpo de maneira tão explicita.
Outra parte, contudo, passou a ver seus próprios corpos de outra maneira, libertando-os das imposições sociais — ainda — devido à idade.
Seja como for, santa ou prostituta, superficial ou consistente, ainda há muito o que falar sobre Madonna.