Como não se render? Como ser indiferente ao seu estilo decadente-arrojado? Amy, a que tornou pop o jazz, simplificando a coisa toda, mas deixando ali, no cantinho, a profundidade que escapou às divas do início dos anos 2000, foi também a última romântica. Sua natureza perturbada, tempero de suas canções, fez do próprio vazio melodias. E já se foram mais de dez anos desde Back to Black…
Para ver e rever, o documentário AMY, de Asif Kapadia, apresenta a doce e perdida Amy. E também um a um de seus demônios. Pesado, comovente e às vezes belo, a produção de pouco mais de duas horas parece interminável pela agonia que causa entre o morre e não morre, as idas e vindas ao fundo do poço, sozinha ou ao lado de Blake Fielder-Civil, o chefe da legião.
Hoje distante, pelos anos desde sua morte, o espectador acompanha mais a moça frágil e menos a cantora, embora todo o tempo ela esteja ali, montada com seu cabelão e forte delineador, a la Brigitte Bardot: a versão londrina sex-kitten, morena e tatuada.
Como bem pontua um dos depoentes, Amy Winehouse tinha alma de velho em um corpo de jovem. Suas referências visuais 50’s e 60’s refletiam isso. Não era apenas sua música. A jazzwoman foi o presente dos deuses aos sedentos por algo consistente, o caminho que se abriu para que outros nomes interessantíssimos brilhassem hoje como Adele.
No início de 2006, falava-se tanto de Amy Winehouse – aquele alvoroço comum quando se trata do “ídolo da vez” – que um quê de preguiça espontaneamente atribuído nestes casos pode ter levado a muitos a serem injustos com a artista. Mas passada a euforia causada por Rehab, Amy se mostrava cada vez mais atraente artisticamente. Redescobrir Frank, de 2003, seu primeiro álbum, era se perguntar: “como não ouvi isso antes?”
O negócio de Amy Winehouse era fazer música. Seu jeito simples, em poses não afetadas, frente ao sem-fim de fotógrafos, mostrava isso. E o documentário prova a quem algum dia se perguntou: “qual é dessa garota?” Em uma entrevista, ainda no início da carreira, um apresentador de TV pergunta à Amy sobre o assédio da mídia. Ela ingenuamente responde: “Eles vão perder o interesse por mim quando descobrirem que só sei fazer música.” Era assim que se via. Vazia, a não ser pela música. Mas é mentira.
Uma das facetas de Amy Winehouse mais destacadas por Asif Kapadia é a da menina, à vontade apenas cercada pelos seus. Livre do estilo glamouroso de outras estrelas, feliz em caminhar de sapatilhas e shorts curtos, de mãos dadas com quem amava. Em outros momentos, Amy aparece com as amigas mais próximas, dos tempos de infância, que se revelaram sempre, inclusive, as mais preocupadas com o seu vício. Não uma vez, mas diversas vezes elas pedem ajuda ao pai de Amy e aos companheiros músicos, assim como tentam impedi-la de seguir turnê ou continuar o ritmo de compromissos.
O burburinho que percorre o mundo sobre o perfil explorador de Mitchell Winehouse, pai da cantora, não é sem razão. AMY exibe momentos desumanos em que a moça, por exemplo, era levada desmaiada para o jatinho, para acordar em outra cidade e não faltar em compromissos que rendiam dinheiro. Enquanto o documentário vai sendo exibido, não é difícil se perguntar: “como eles gravaram isso?” As cenas revelam tanta decadência que parece mentira que a Amy não atuou para alimentar os abutres da mídia. Kapadia exibe alguns programas de TV que fizeram piadas sobre o estado da cantora, provando como ninguém se importava com o seu declínio físico e mental.
Em determinada cena, a câmera que nunca ficava desligada, a incomoda: “Pai, você tem que filmar o tempo todo? Se você quer dinheiro eu dou”. O apelo é, no entanto, sem forças. E como o roteirista arremata a seguir: “Amy venerava o pai”. Um paradoxo. A garota carente, antes da fama, só conseguia reclamar da ausência do pai, que se separou da mãe quando Amy tinha apenas nove anos. Depois da fama, com Mitchell ao lado a maior parte do tempo, parte de seus problemas inomináveis estava solucionada. Ou assim pensava.
Todas as pessoas que nossa última romântica mais amou queriam um pedaço rentável dela. Não ela, mas o que dela era possível monetizar. Um dos depoimentos mais tristes de AMY é do próprio Blake. O rapaz conclui um pensamento sobre o relacionamento que manteve com ela – e é tão assombroso – e dá um sorriso; um sorriso típico de alguém que nunca se importou.
Blake e Mitchell são os grandes vilões para a equipe de Kapadia. Impossível sair do cinema indiferente aos pais de Amy Winehouse e ao esposo destruidor. A mãe, Janis Winehouse, pouco aparece. Apática, sem voz, assume que não deu atenção quando a filha deu indícios de estar com bulimia, o que também viria a tomar seu corpo. Janis narra certo episódio sem grandes evidências de arrependimento. À mãe, um dia, Amy pediu que lhe dissesse mais “nãos”. Nenhuma voz embarga, a não ser as das amigas de infância. Fato curioso.
A indústria da música, como bem foi relatado, não ensina ninguém a lidar com esse nível de fama ao qual Amy Winehouse teve acesso. Poucos saíram ilesos como Madonna – que sempre soube usar a mídia a seu favor. Muitos sucumbiram como Michael Jackson, Whitney Houston e Lady Di, com consequências variadas, frutos do desespero.
Apesar de triste, AMY tem passagens lindas como quando a cantora ganhou o Grammy anunciado por Tony Bennett, um de seus grandes ídolos. A expressão de Amy Winehouse quando o ícone aparece ao lado de Natalie Cole é simplesmente deliciosa. Quando anunciam ser vencedora, é fácil deixar cair uma lágrima por sua felicidade. Esse momento feliz, entretanto, não demora a passar. Logo a seguir, ainda na mesma cena, vem uma das frases mais tristes do documentário. Amy conta a uma das melhores amigas como se sente com tudo aquilo.
O vazio existencial que gritava de maneira ensurdecedora em Amy não foi consequência da fama. Tampouco do relacionamento dependente com Blake. Amy seria essencialmente a mesma Amy sem fama ou dinheiro. Os dois fatos, contudo, não são menos graves por eles mesmos, é claro. Acontece que, quando Rehab a cansou, Amy não encontrou em nada o que pudesse religá-la ao pulsar da vida. Essa sensação sutilíssima, porém vital para pessoas com esse tipo de natureza. Um espírito romântico pode viver boiando para lá e para cá, esperando que o corpo pese e afunde sozinho se não possui entusiasmo para desbravar o mar imenso em si mesmo. Amy tinha muito que dizer, muito que propor, com ousadia, beleza. Transformar, pela própria natureza de haver nascido para transformar. Amy apenas nunca encontrou onde poderia existir além da música. Ou em quem. Assim, nas drogas achou a porta de saída. Uma saída romântica, diga-se, apesar de ser triste dizer.
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