Contratada pela Rocco, em 2003, para responder as cartinhas dos fãs de Harry Potter, Anna Buarque dedicou-se por sete anos à saga de J. K. Rowling. Além do contato direto com os leitores, Anna também produzia conteúdo para o hotsite da série até que assumiu como uma das editoras da própria Rocco, intermediando os contatos com os agentes da escritora inglesa. Atualmente, Anna trabalha para agências literárias e como coach de autores, e com a FAUSTO gentilmente bate um papo delicioso sobre a febre Harry Potter que parece jamais acabar.
Fausto – Depois de sete anos respondendo às cartas dos fãs de Harry Potter, qual é a visão que você tem do papel da literatura?
Anna Buarque: Além do papel da literatura que eu já conhecia – o de formação de caráter, o educativo, e o de inspirar sonhos e grandes aventuras –, depois de trabalhar a um computador de distância dos leitores da saga Harry Potter, descobri que a literatura também pode transformar leitores em donos ou coautores e tradutores das histórias que leem. Brincadeiras à parte, o envolvimento de crianças e jovens com os livros protagonizados pelo bruxinho órfão era tão grande e intenso que eles se sentiam tão autores quanto a J.K. Rowling, e tão bons ou melhores tradutores do que a brilhante Lia Wyler, que traduziu a série aqui no Brasil. Eram e-mails e cartas indignados quando um personagem morria, quando eles desgostavam de uma tradução deste ou daquele termo. Pelo o que a gente podia observar pelos e-mails que chegavam, grande parte dos leitores lia o original e a tradução. Eles não se contentavam com uma leitura só. Este, além do inquestionável legado que a saga deixou na vida de muitas crianças, que começaram a se interessar por literatura por causa dos livros Harry Potter, para mim é um dos diferenciais dos livros escritos pela J.K. Rowling. Nenhuma outra série literária provocou tanta paixão e entusiasmo de tantos leitores diferentes. O fandom de Harry Potter é inigualável. Eu me lembro, depois que assisti ao último filme da saga, de ter pensado que tive a oportunidade de testemunhar algo extraordinário na história da humanidade em termos culturais. Foi uma honra ter feito parte dessa franquia, tanto em termos profissionais, quanto do ponto de vista de leitora e expectadora.
Qual é a importância da imaginação?
Na hora de ler um livro, por exemplo, diria que a imaginação é o que torna uma história possivelmente interessante ou aterrorizante ou apaixonante. A imaginação, combinada às referências literárias que a J.K. Rowling devia ter – Oliver Twist, de Charles Dickens, A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, entre outras –, fizeram dela a mulher mais rica da Inglaterra e uma das escritoras mais bem-sucedidas do mundo. E estamos falando de uma mulher que teve uma depressão tão severa que chegou a contemplar o suicídio. Parafraseando Einstein, “a imaginação é mais importante que o conhecimento“. Se alguém consegue juntar os dois, coisas potencialmente mágicas acontecem.
Há algum caso de fã que te impressionou enormemente?
Foram tantos e-mails e cartas inspiradores ao longo dos anos. As mensagens iam desde “Qual é o monstro mais assustador do mundo bruxo?” a “Eu queria tanto encontrar alguém como Harry Potter na minha vida. Alguém corajoso, leal…“, passando por “Eu queria tanto que existisse magia de verdade no mundo” e “Mas como a autora foi matar o Fulano de Tal?!” Tudo bem que bilhões de pessoas já leram os livros e viram os filmes, mas escolhi usar “Fulano de Tal” porque a gente não precisa dar spoilers aqui para os que ainda vão se aventurar pelas histórias. Por falar em spoiler, teve uma leitora que acabou comigo no quinto livro.
O que aconteceu?
Quando estávamos trabalhando no Harry Potter e a Ordem da Fênix, eu, que ainda não tinha lido a obra, havia conseguido que meus colegas na editora não me contassem quem era o personagem que morria, mas uma leitora colocou abaixo minha barreira anti-estraga prazer. Que ódio que me deu. Nem foi ódio dela, pobrezinha da leitora, que não teve culpa de nada, fiquei com ódio de mim por não suspeitar que isso poderia acontecer. Aprendi a lição. Quando se trabalha com literatura e leitores, ou você corre para ler o livro junto com eles, ou antes deles, ou aprende a sublimar os spoilers.
Imagino que eram tipos muito variados de leitores…
Havia os mais românticos e exaltados, para os quais nós servíamos como terapeutas. Havia aqueles que só viram os filmes e assumiam isto, e sempre rebatíamos explicando que os livros ofereciam muito mais detalhes importantes e interessantes sobre personagens e tramas e que não podiam deixar de ser lidos. E havia também os que questionavam a tradução, estes eram os mais difíceis e mais gostosos de conquistar. Ao final, eles acabavam mudando de ideia depois que explicávamos os motivos que levaram Lia Wyler a fazer aquelas escolhas. Eles saíam de nossas “conversas” apaixonados por tradução e, principalmente, pela Lia.
Os editores tinham ideia da mina de ouro que tinham na mãos?
Tive a honra de trabalhar por mais de dez anos ao lado de Vivian Wyler, a editora responsável pelo Departamento Editorial da Rocco e pela compra dos direitos de tradução da série Harry Potter para o Brasil. Tanto ela quanto o Paulo Rocco, o fundador e presidente da editora, sabiam que estavam diante de um belo livro para jovens. Bem escrito, inspirador, apaixonante e com potencial para ser um sucesso entre as crianças. Conversamos sobre isto várias vezes. No entanto, ninguém, nem mesmo o editor Barry Cunningham, da editora inglesa Bloomsbury, quem primeiro “descobriu” a J.K. Rowling, poderia ter ideia do sucesso que Harry Potter e a Pedra Filosofal e os outros livros da série seriam capazes de alcançar. Harry Potter é a franquia mais bem-sucedida da história. A inspiração dos editores que resolveram apostar na autora foi um ato de magia, não tenho a menor dúvida.
Coragem, perseverança, respeito, altruísmo e lealdade. Escolhi este último porque um elemento que norteia todos os livros é amizade entre Harry, Hermione e Rony, os três personagens principais. Harry não encontra na família que lhe restou o amor e o apoio incondicionais que deveria receber, mas tem tudo isso e muito mais na relação com os amigos e os professores de Hogwarts. Um dos pontos mais interessantes nesta saga, para mim, é que a família que escolhemos ter pode ser tão ou mais importante do que a família na qual nascemos.
O terceiro livro, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, foi o livro que mais me impressionou. Até hoje, tantos anos depois, às vezes me sinto como Harry quando os “dementadores” da vida real se alimentam da minha felicidade. O engraçado – e acho isso muito poderoso – é que faço exatamente como foi ensinado ao Harry: passo o dia lembrando de coisas boas. Há muito mais soluções “mágicas” que podemos aplicar no dia a dia, não acha?
Sem dúvida. Essa que você aplica na sua vida, por exemplo, deve ter sido a mesma que a autora das obras usou para superar a depressão pela qual passou. Acredito que, mais do que soluções mágicas, o livro é cheio de bons exemplos de conduta que deveríamos seguir. Respeito ao próximo, lutar pelo que você acredita, ainda que você precise enfrentar seus amigos. A autora aborda temas como preconceito e discriminação ao longo de todas as obras, sempre colocando seus heróis – e não estou falando apenas dos personagens principais, não, os coadjuvantes são sensacionais também neste ponto – em defesa das vítimas desses ataques. Até de escravidão a Rowling falou, quando colocou a Hermione advogando contra o abuso sofrido pelos elfos domésticos no segundo livro. A resignação de Harry em relação à cruz que ele precisa carregar, digamos assim, em sua missão de derrotar o grande vilão da saga, Lorde Voldemort, é outro exemplo de conduta que muito me toca. Harry se revolta muitas vezes, é verdade, mas, no final, ele está disposto a se sacrificar se isso significar salvar aqueles que ama. Muito antes disso, no segundo livro, o professor Dumbledore diz a seguinte frase: “São nossas escolhas, Harry, que revelam o que realmente somos, muito mais do que nossas qualidades“. Dumbledore é, em especial, um grande exemplo a seguir. O que faz dele um bruxo tão poderoso, na minha opinião, é a generosidade, a mente aberta e o altruísmo dele.
Embora, obviamente, sejam “soluções” pequenas, que se encaixam em algumas coisas do dia a dia, e a Literatura tem esse papel interessantíssimo de nos ajudar a nos compreender, é preciso que não se confunda ficção com realidade porque a vida, afinal, é muito mais complexa…
Segundo o escritor Neil Gaiman, a vida vai ser sempre mais interessante do que a ficção, porque a ficção precisa ser crível, a vida, não. Acho que os autores talentosos de ficção têm uma agudeza de espírito que faz justamente o que você disse: nos ajuda em nossa busca por autoconhecimento ou por entender melhor as atitudes daqueles nos cercam. Não vejo problema em querer que a vida real tenha os finais felizes da maioria dos livros, só acho problemático quando alguém deposita no outro a responsabilidade pela própria felicidade. Sejamos sempre os protagonistas de nossas histórias é a lição que precisa ficar da literatura.