Há quem passe a vida inteira sem encontrar o sentido da vida. Os sortudos encontram os livros.
Se não são os livros o próprio sentido da vida, ao menos encaminham a outras possibilidades de felicidade. Livros são portais sagrados. Em prosa ou poesia, são rezas. Levam a encontros íntimos, com outros, conosco, com Deus.
Como parte desse segundo grupo, encontrei no Romantismo minha identidade. Desenhei, através da História, minha árvore genealógica. Depois que descobri esse universo de referências e sentimentos, aquela sensação que havia em mim, como se fosse um desencaixe do mundo, tornou-se orgulho imensurável: minha origem é trágica, impulsiva, inquieta.
Foi assim que assumi que tenho uma forma peculiar de olhar o mundo. E foi com esse olhar que me dediquei, sem peias, a reapresentar Anna Kariênina, a mais famosa personagem de Liev Tolstói, à luz do Romantismo. Precisamente, à luz do amor romântico.
A verdade é que eu não aceitava que o gigante Tolstói, o imortal Tolstói, para mim o maior prosador da literatura, tivesse cometido erro tão grave. Anna não é simplesmente uma adúltera. Como se “ser adúltero” fosse capaz de sustentar a imensidão interior de terror e êxtase, de culpa e altivez, que irrompe dentro de quem ama errado. Eu precisava, portanto, descobrir as razões de Tolstói. Cisma do coração.
Para enriquecer essa experiência do pensamento, coloquei como em contraste o cristianismo ortodoxo. Não sem razão, evidentemente. Tolstói em sua literatura nunca escondeu suas ambições apologéticas.
Isto posto, Ensaios sobre Anna é esse jogo de percepções. Enquanto um conceito condena, o outro absolve. Enquanto um constrói sua base com dedicação diária, o outro pode levar embora como vento os graus de areia.
O que é O pecado do desejo? O meu primeiro livro.
Quando levamos em consideração a pedra angular do cristianismo em Tolstói, a moralidade, é no mínimo intrigante que o autor tenha feito de Anna Kariênina uma heroína de seu tempo. Principalmente porque o romance não deixa de ser uma crítica à emancipação feminina. Tolstói, contudo, parece ter separado, ao longo da narrativa, “o pecado do pecador”. Vladimir Nabokov usa sabiamente essa expressão em suas lições de literatura russa.
Sim, Tolstói é magistral em Anna Kariênina. Talvez mais do que em qualquer outro romance. Ele entrega à personagem tamanho poder de identidade que é impossível não se compadecer de sua desgraça. Contudo, ainda que permeado de compaixão, Tolstói não deixa de sinalizar as consequências de sucumbir ao amor romântico; para ele, uma maldição.
O duelo da natureza humana está o tempo todo em ação em Anna Kariênina e é possível reparar o fluxo de emoções, desde as cambiantes até as paradoxais. Há luta e resistência, reflexão e impulsividade, embate e entrega, sofrimento e perdão, egoísmo e contrição. Não seriam essas as questões mais humanas, que facilmente saem das páginas de um livro e aplicam-se à vida cotidiana? E a religião não estaria a postos justamente para mediar tudo isso?
Absolver ou condenar Anna é o ato final, sentença que o leitor homologará quando folhear a última página. Contudo, creio ser impossível julgá-la sem antes se ver ali, em cena, ao canto, observando atuar cada um dos personagens, e tentando compreender cada um, ainda que inconscientemente, ainda que com ideias prejulgadas, ainda que sem alteridade.
O pecado do desejo é, portanto, uma reflexão sobre a experiência dessa mulher que depois de nascer na mente de Tolstói nasceu em tantas outras mulheres mundo afora, e nos quase dois séculos seguintes até nós. Anna Kariênina à luz do Romantismo e do cristianismo ortodoxo é uma proposta de comparar duas formas distintas de entender o amor: não o amor por Deus, não o amor pelos amigos, mas o amor de um homem por uma mulher – e de uma mulher por um homem. São duas vias nebulosas essa do amor; que como a vida, é uma estrada que não permite prever o perigo iminente.
Amor. Que já foi chamado de amor cortês pelos medievais; de Eros, pelos gregos; e, por fim, sua forma mais conhecida: amor romântico, termo herdado dos românticos históricos. É esse o tipo de amor que uso em contraponto com o amor que deve transcender, voltar à sua condição angelical assexuada, desejo de Tolstói em seu cerne literário.
Se para o Romantismo o amor é uma força sem igual, altiva, potente, transformadora – para o bem e para o mal –, sempre entregue às vontades espontâneas do homem; para o cristianismo ortodoxo o amor tem um valor espiritual. Uma vez colocado em prática com o cônjuge, forma as bases do sacerdócio matrimonial. Em que parte desse espectro Tolstói está situado? Essa é a proposta do livro.
De antemão, advirto que não realizo um estudo de crítica literária. O que faço, de maneira livre, é uma reflexão mais detida acerca da paradoxal condição humana e do olhar tantas vezes bravio de Tolstói sobre a mulher e sobre o desejo sexual.
Creio ser imprescindível que todo grande autor seja compreendido em seu próprio contexto: social, cultural, religioso. Elejo Anna Kariênina a heroína de meu tempo emocional e espiritual e a ela dedico minha primeira experiência de um pensamento mais demorado.
George Steiner cita que Matthew Arnald, renomado crítico literário britânico, escreveu certa vez que “não devemos tomar Anna Kariênina como uma obra de arte”, mas que “devemos tomá-la como um pedaço de vida.” Ela então é esse pedaço de vida que a mim também concedeu o privilégio do amor espiritual.
Ainda que haja o reconhecimento tácito de que esse livro configura apenas um exercício pueril de pensar e escrever, descanso na certeza de que não sou mais a mesma que há tempos leu pela primeira vez: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”