“O coração do mentiroso é duplo”, escreveu Santo Agostinho, “pensa uma coisa, mas diz outra”.
Tom na Fazenda, indiscutivelmente é a montagem mais interessante da temporada. Joga luz sobre as nuances da mentira, para além da mais óbvia de ser ela um mal moral.
Principalmente pela sujeira, real e metafórica.
A mentira sempre foi suja, desde o Éden. É típica dos que desejam tirar proveito, como descobre Tom ao longo de sua estadia na fazenda na qual nasceu seu companheiro, recém-falecido.
As mentiras que Tom passa a contar são para levar paz ao coração da mãe enlutada, mas não sem pagar um alto preço. A mãe é Agatha, vivida por Soraya Ravenle.
São raros os que mentem para evitar a dor de alguém. Sobre isso, também, é Tom na Fazenda, peça criada e traduzida por Armando Babaioff, que interpreta o próprio Tom, um publicitário requintado que vê sua vida derrubada e reerguida na lama da mentira.
Dirigida por Rodrigo Portella, a versão original, Tom à la Ferme, é do autor canadense Michel Marc Bouchard. Os louros dos inúmeros prêmios em diversos países e ingressos esgotados, no entanto, é de Babaioff.
Tendo passado pelo Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Montreal, Avignon, Paris e agora em São Paulo, mais de 45 mil pessoas já aplaudiram de pé, longamente, o espetáculo sobre a paradoxal realidade da mentira.
Santo Agostinho escreve sobre a mentira em duas obras: Sobre a Mentira e Contra a Mentira.
Para o pensador de Hipona, como ponto de partida, toda mentira tem o propósito de enganar, mas Agostinho sabe que há mentiras com “fins nobres”, embora não hesite em concluir que todas elas sempre se encerram em outros males.
O autor basilar classifica a mentira em oito tipos, que não nos interessa passar um a um, somente um detalhe que pode vir a permear todos eles: a intenção.
Brilhantemente, com Armando Babaioff contracena Gustavo Rodrigues, que dá vida a Francis, irmão do morto.
Homem do campo, sem modos refinados e construído por preconceitos, nunca aceitou a homossexualidade do irmão, tendo-a escondido da mãe, também por um alto preço.
Armando Babaioff e Gustavo Rodrigues são dois lados de uma mesma moeda; um duelo intenso, violento e tocante de concepções e alteridade.
Podemos até dizer — pois há um determinado momento do espetáculo, cume de virtuosa beleza —, que a dupla compõe uma dança intensa, violenta e tocante de concepções e alteridade.
O responsável por esse momento é o coreógrafo Toni Rodrigues.
Além da alteridade — que nada mais é do que reconhecer o outro diferente, sem julgá-lo menor ou maior, muito menos comparável —, Tom na Fazenda permite refletir acerca de outro tema importante numa trama de mentiras: o consentimento.
Ao consentirmos com a mentira, devemos ser julgados, ainda que a ideia dessa mentira, ou sua execução, não seja nossa. Tom descobre isso na pele, ipsis litteris.
Quase sempre, todavia, se a mentira não é problema de caráter, é só uma forma de não sofrer um mal maior. No enredo, nenhuma mentira é superficial ou banal, por isso o “peso” nas emoções do espectador quando as cortinas se fecham.
Evita-se praticar a injustiça, praticando injustiças; tenta-se expiar uma culpa com atitudes sádicas que visam encontrar, desesperadamente, similaridades.
Na fazenda, a única pessoa que tem o prazer de mentir por mentir — que Santo Agostinho chama de “mendaz” — não está em cena.
Também é quase sempre assim na vida real, quando nos percebemos enredados pela subestimação que o outro fez de nós, e não somos capazes — por habilidade ou oportunidade — de escapar das consequências.
Mesmo com toda a sujeira, real e metafórica, Tom na Fazenda é um espetáculo, real e metafórico, de arroubamento, de visceralidade e — dificílimo de aceitar — de realidade.
O toque de leveza fica por conta da personagem Sara, vivida com fino talento por Camila Nhary. Com seu inglês escorregadio como a lama, é ela quem acaba dizendo todas as verdades.
Todos agradecemos. E aplaudimos.
“For nothing“.