G. K. Chesterton: “As coisas mais normais são altamente complicadas”

Um dos mais importantes pensadores ingleses, Gilbert Keith Chesterton foi, literalmente, um grande homem. Seus 1,93 metros de altura e 140 quilos guardaram um erudito desde as vísceras. G. K. Chesterton, como assinou por toda a trajetória, nasceu em Londres, em 29 de maio de 1874. De humor inigualável, inquestionavelmente afetuoso, escreveu ensaios filosóficos, poesia e ficção policial. Morreu em 14 de junho de 1936, aos 62 anos, em sua casa. A seguir, o autor de Ortodoxia concedeu-me uma entrevista magnífica para a Série Além – Entrevistas do outro mundo. Acolhida em sua benquerença e insolência, deleitei-me em cada frase. Desejo aos nobres leitores a mesma experiência sobrenatural.

G. K. Chesterton.

FAUSTO – Apesar de ser eu uma “romântica aguda”, como nomeou-me meu mestre Luiz Felipe Pondé — iria gostar de conhecê-lo, pois é tão engraçado quanto o senhor —, eu adoro sua expressão “romance prático”. Poderia explicá-la?
G. K. Chesterton: Trata-se da combinação de alguma coisa que é estranha com alguma coisa que é segura. Precisamos ver o mundo de tal modo que nele se combine uma ideia de deslumbramento com uma ideia de acolhimento.

A propósito, o senhor não se leva a sério, certo?
Eu sou o homem que com a máxima ousadia descobriu o que já fora descoberto antes. Como todos os outros menininhos pomposos, tentei colocar-me à frente de meu tempo; e descobri que estava 1800 anos atrás. Forcei minha voz com penoso exagero juvenil ao proferir minhas verdades. E fui punido da maneira mais adequada e engraçada, pois mantive as verdades: mas descobri, não que não eram verdades, mas simplesmente que não eram minhas.

O que pensa da literatura de seu tempo? Aqui, no meu… Embora eu esteja lançando um romance e penso que posso ir para o mesmo balaio…
Os novos romances desaparecem tão rapidamente, ao passo que os velhos contos de fada duram para sempre. Os velhos contos de fada fazem do herói um ser humano normal; suas aventuras é que são surpreendentes. Elas o surpreendem porque ele é normal. Mas no romance psicológico moderno o herói é anormal; o centro não é central. Consequentemente, as mais loucas aventuras não conseguem afetá-lo de forma adequada, e o livro é monótono. Pode-se criar uma história a partir de um herói entre dragões, mas não a partir de um dragão entre dragões. O conto de fadas discute o que o homem sensato fará num mundo de loucura. O romance realista sóbrio de hoje discute o que um completo lunático fará num mundo sem graça.

Para o senhor, a poesia mantém a sanidade?
A poesia mantém a sanidade porque flutua facilmente num mar infinito; a razão procura atravessar o mar infinito, e assim torná-lo finito. O resultado é a exaustão mental.

Há uma frase famosa do senhor: “O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo exceto a razão”. Por que diz isso?
Se você discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora.

Qual é a melhor maneira de debater um assunto?
Quem quer que se disponha a discutir o que quer que seja deveria sempre começar dizendo o que não está em discussão. Além de declarar o que se quer provar é preciso declarar o que não se quer provar.

Teríamos muito o que aprender estudando a pré-história?
No que se refere a essas coisas pré-históricas, a ciência é fraca de uma forma que quase passou despercebida. A ciência cujas maravilhas modernas todos nós admiramos obtém seu sucesso mediante o crescimento incessante de seus dados. Em todas as invenções práticas, na maioria das descobertas naturais, ela sempre pode aumentar as provas pela experimentação. Mas ela não pode fazer o experimento de criar homens; nem mesmo de observar para ver o que os primeiros homens criam. Um inventor pode avançar passo a passo na construção de um aeroplano, mesmo que esteja fazendo suas experiências com paus e peças metálicas no fundo do quintal. Mas no fundo do quintal ele não consegue observar a evolução do Elo Perdido. Se ele houver cometido um erro em seus cálculos, o avião sempre o corrigirá espatifando-se no chão. Mas se ele houver cometido um erro sobre o hábitat arbóreo de seu ancestral, ele não poderá ver seu ancestral arbóreo despencando da árvore. Ele não pode manter o homem das cavernas como um gato no quintal e observá-lo para ver se ele realmente pratica o canibalismo ou se abduz a companheira segundo os princípios do casamento por captura. Ele não pode manter uma tribo de homens primitivos como uma matilha de cães e observar até que ponto eles são influenciados pelo instinto de rebanho. Se vir uma ave particular comportando-se de modo particular, ele pode pegar outras aves e observar se elas se comportam daquele modo; mas se encontrar um crânio, ou um pedaço de crânio num buraco de uma colina, não pode multiplicá-lo transformando-o numa visão do vale de ossos. Lidando com um passado que desapareceu quase por inteiro, ele pode apenas orientar-se pela evidência e não por experimentos. E praticamente não há evidência, nem que seja apenas comprobatória. Assim, embora a maior parte da ciência se mova numa espécie de curva, sofrendo constantes correções por novas provas, essa ciência lança-se no espaço numa linha reta que não é corrigida por nada. Mas o hábito de formular conclusões, como de fato podem ser formuladas em campos mais frutíferos, está tão arraigado na mentalidade científica que a ciência não consegue deixar de falar desse jeito.

O que pensa da democracia?
É muito mais provável que uma sociedade primitiva tenha sido algo parecido com uma democracia pura. Até hoje as comunidades agrícolas comparativamente simples são de longe as democracias mais puras. A democracia é uma coisa que está sempre se esfacelando em virtude da complexidade da civilização. Quem quiser pode armar isso dizendo que a democracia é o inimigo da civilização. Mas essa pessoa precisa se lembrar de que alguns dentre nós preferem a democracia à civilização, no sentido de preferir a democracia à complexidade. Seja como for, os camponeses que cultivam pequenos pedaços de sua própria terra em tosca igualdade e se reúnem sob a árvore da aldeia para expressar seu voto direto são realmente os homens que mais se autogovernam.

Acredita que damos pouco valor ao compromisso?
O princípio é o seguinte: que em todas as coisas que valem a pena, incluindo os prazeres, há um momento de dor e de tédio a que é necessário resistir, para que o prazer possa reviver e durar. A alegria da batalha vem depois do primeiro medo da morte; a alegria de ler Virgílio vem depois do enfado de o ler; a radiância do banhista ocorre depois do primeiro choque gelado do banho de mar; e o êxito no casamento ocorre depois do fracasso da lua-de-mel. Os votos, as leis e os contratos dos seres humanos são outras tantas maneiras de sobreviver a este ponto de viragem, a este instante de potencial rendição.

E o compromisso do amor?
Duas pessoas têm de estar ligadas para fazerem justiça a si mesmas: durante vinte minutos, quando se trata de uma dança, ou durante vinte anos, quando se trata de um casamento. Em ambos os casos, se um homem se entedia nos primeiros cinco minutos, tem de prosseguir e de se obrigar a ser feliz. Os cônjuges têm de ser manter unidos para fazerem justiça um ao outro. Tenho conhecido muitos casamentos felizes, mas não conheço nenhum casamento compatível. O objetivo do casamento é precisamente combater e sobreviver ao instante em que a incompatibilidade se torna inquestionável. Porque um homem e uma mulher, enquanto tais, são incompatíveis.

Quais são os dois grandes momentos do ser humano?
O pensamento da morte e do primeiro amor, embora aconteçam a toda a gente, conseguem fazer-nos parar a respiração. Mas, embora tudo isto seja patente, há outras coisas que o não são tanto. Com efeito, é verdade que estas coisas universais são estranhas; mas é também verdade que são coisas sutis. Em última análise, acabamos por descobrir que as coisas mais normais são altamente complicadas.

A magia do cotidiano está em ter sensibilidade para tirar dele um pouco de humor?
É um enorme erro supor que, pelo fato de ser vulgar, uma coisa não é refinada; ou seja, sutil e difícil de definir. Quando eu era novo, havia uma cançoneta de salão bastante ordinária que falava do lusco-fusco e de uma mulher; mas a combinação da paixão humana com o crepúsculo não deixa de ser uma coisa extremamente delicada, e mesmo imperscrutável. Outro exemplo óbvio: as piadas acerca da sogra raramente são delicadas, mas o problema da sogra é um problema extremamente delicado. A sogra é sutil porque se assemelha ao crepúsculo; a sogra é uma combinação mística de duas coisas inconsistentes: a mãe e a família legal. As caricaturas desvirtuam-na; mas as caricaturas resultam de um verdadeiro enigma humano.

Gostaria de encerrar dizendo que achei muito interessante uma colocação do senhor sobre a “anarquia da mulher”. Achei de uma sensibilidade e astúcia ímpares!
A sabedoria feminina representa em parte, não só uma saudável hesitação acerca da aplicação de castigos, mas também uma saudável hesitação acerca do caráter absoluto das regras. Havia um componente feminino e de verdade perversa na frase de Wilde segundo a qual as pessoas não deviam ser tratadas como regras, mas como exceções. Feita por um homem, essa observação seria ligeiramente efeminada; porque faltaria a Wilde a força masculina do dogma e da cooperação democrática. Mas, se tivesse sido uma mulher a dizê-lo, seria uma simples verdade; porque é um fato que as mulheres tratam cada pessoa como uma pessoa peculiar. Por outras palavras, as mulheres são defensoras da anarquia, que é uma filosofia muito antiga e defensável; não se trata da anarquia no sentido de não se ter costumes de vida (pois isso é inconcebível), mas da anarquia no sentido de não se ter regras de espírito.

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Fontes:

Ortodoxia, G. K. Chesterton.
Disparates do Mundo, G. K. Chesterton.
O Homem Eterno, G. K. Chesterton.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.