Raiva do quê?
De tudo. De todos.
Para falar a verdade, não fazemos uma ideia de onde vem essa raiva — não sem terapia.
Comecei a fazer terapia aos 19 anos. A angústia que eu sentia não podia ser normal, era um desencaixe do mundo impossível de descrever, uma absurda sensação de inadequação. E uma raiva — só que contida.
Procurei atendimentos gratuitos e fui parar na Faculdade de Psicologia do Mackenzie. Fiz alguns desenhos e não tive um retorno claro. Durou pouco, óbvio. Eu já era exigente nas trocas. Entretanto, retomei assim que pude.
Dois conselhos em um: faça terapia e corra dos modismos referentes à cura emocional.
Quando retomei, acho que aos 20, o psicólogo era muito qualificado. Sua voz doce e seus gestos gentis me acolheram na penumbra de uma realidade brutal.
Não, não foi apenas minha mãe, mas decorreu dela todo o resto.
Minha mãe foi doméstica por toda a vida. Ainda nos meus 19, por uma temporada ela conseguiu que eu trabalhasse como secretária para sua “patroa”. O escritório ficava na edícula do casarão no qual ela lavava, passava e cuidava de duas meninas. Foi a primeira vez que vi seu rosto sem rancor.
A forma como ela cuidava daquelas meninas ampliou o abismo que havia em mim. Ela ria, cantava, ninava. Cozinhava com prazer. Não sei a percepção do meu irmão acerca de nossa mãe cozinhando, mas porque eu cozinho, e sei de seus poderes mágicos, essa é uma percepção muitíssimo importante a respeito dos afetos.
Nesse mesmo ano, ingressei na faculdade de Jornalismo. Meu amor pela moda sempre foi uma salvação, bote salva-vidas, bengala, sabe Deus quais outros nomes posso dar — hoje, obviamente, reconheço como uma inclinação espiritual para a Beleza.
A beleza me escondia da vergonha de não ser amada por ela. Diariamente, eu ia para a faculdade como se estivesse indo para a semana de moda de Milão.
Nos quatro anos de faculdade, nunca me sentei numa mesa de bar com colegas, não “peguei” ninguém e não fiz amigos. Só assistia aulas teóricas — História da Arte, Antropologia — e o restante do tempo eu passava na biblioteca, lendo vorazmente. Érico Veríssimo foi o meu primeiro amor na literatura. Li toda a sua obra.
Diferentemente do choro, a raiva é uma cilada.
Não percebemos que estamos — ou somos — raivosos até que alguém que nos ame de verdade nos chame de canto e abra os nossos olhos. Eu tive sorte. Nos meus vinte anos, três mulheres maravilhosas fizeram isso.
Tenho uma visão um tanto nebulosa acerca de “amigos”: raríssimos estão dispostos a nos libertar, quando podem. Quase todos julgam pelas nossas costas.
Outra verdade que experimentei na pele lidando com raivosos: todo mundo, até que “chegue lá”, nutre um fascínio pela raiva.
Os homens tornam-se determinados; as mulheres, precipitadas. Calma, chegarei lá…
Não quero dizer que devemos ser “serenos”’. Mantenho uma distância saudável de pessoas “leves”. Se assim são, certamente não estão percebendo algo em si mesmas ou no entorno. Diferentemente de quem nutre esperança — meta de gente grande.
Um sinal claro de raiva? Ouvir música num volume que nada mais é do que uma metáfora do desejo de explodir.
A mente do raivoso está o tempo todo no passado ou futuro.
Está claro que toda essa raiva precisa se transformar em outra coisa — e contarei que coisa é essa.
Segundo conselho: crie um universo paralelo, um caminho em seu cérebro para o qual os seus pensamentos possam ir em segurança.
Refiro-me a um espaço mental mesmo.
Um dos meus, por exemplo, é cozinhar. A cozinha é meu lugar de esvaziamento rumo a uma experiência espiritual cotidiana.
Qual caminho poderia ser o seu?
E não diga que não tem tempo.
Fui me virando ao longo da vida até sair de casa, aos 30. Saí com a roupa do corpo e recomecei a vida do zero. Em “Valha-me Deus” coloquei uma frase que remete a isso: “A cura, muitas vezes, vem na ruptura.”
Outra cilada da raiva: o raivoso tem régua muito alta.
Ninguém está à altura.
Círculos sociais saudáveis, obviamente, tornam-se impossíveis. A solidão, porém, nunca é um caminho.
Relações amorosas? Quando acontecem, tornam-se caos. Assumimos o papel de masoquistas ou de sádicos. Quantas vezes me permiti ficar com uma pessoa que não merecia sequer meu bom-dia.
Lembrou-se da contracapa de NANA?
Todavia, não escrevi sobre mim, mas sobre todo mundo. Todos nós, em alguma medida, nos perdemos no caminho, a questão é quanto tempo permanecemos na situação.
Posso estar escrevendo para quem nunca foi raivoso, mas está passando por uma fase irritadiça. Você pode estar se perguntando: “Será que acabou?” A pergunta aplica-se a tudo, pois tudo é ciclo.
Se você passa a maior parte do tempo com raiva: sim, acabou.
Acredite, é na rotina que encontramos todas as respostas que precisamos para “ser”. A rotina confirma se você ainda é prisioneiro de uma raiva.
A raiva saiu do meu peito no quinto ano de terapia, com a profissional que me acompanha até hoje, e já são mais de 10 anos juntas. Eu tinha 35 anos. Gritei, furiosa, uma determinada frase. Ouvi dela — que é nada ortodoxa — um: “Até que enfim!”
É, até que enfim. É quando a alegria começa a voltar.
Para você, o que é a alegria?
Fiz essa provocação em “Valha-me Deus” através de uma personagem:
“Alegria não é prazer. Alegria não se infringe. Logo, até viver um momento de genuína alegria, levou tempo. Primeiro eu precisava compreender o que era a alegria.”
Enquanto tudo foi raiva, vivi derrapando.
Eu não teria me tornado quem sou, e construído projetos dos quais me orgulho, se eu não tivesse transformado a raiva numa vantagem.
Terceiro conselho: construa uma rotina que você seja capaz de amar. Dá um trabalhinho — e não existe receita —, mas existe um segredo: escolher conscientemente atividades para inseri-las entre as que não pode escolher. Isso é mágico para lidar com a raiva.
Nessas atividades tem que ter o ingrediente que foi determinante para o meu ponto de virada.
Disciplina.
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