“Clara Nunes – A tal guerreira” não é mero musical, mas celebração da fé

Vigor, graça, alegria. Clara Nunes – A tal guerreira não é mero musical, mas celebração da fé.

Num contorno cerimonial, o grande elenco ressaltou a constatação primeira dos estudos de religião: vida e fé não se separam.

Sobretudo no ordinário da vida; por isso assistimos Vanessa da Mata dar vida à Sabiá com sabedoria: intuímos que podemos cantar, movimentar o corpo.

Mãe África é a mãe da humanidade.

No que tange a biografia de Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, nascida em 1942, na cidade de Paraopeba, Minas Gerais, suas dúvidas, seus encantos e seus amores compõem uma totalidade que não ousou negar símbolos folclóricos e africanistas, e sua música nos ensina, ainda hoje, a viver os altos e baixos da existência.

Todos nós perdemos mãe e pai, e, antes disso, cantamos e tocamos viola em folias de reis, cultura católica que não tem mais espaço nas grandes metrópoles. Mas todos nós ainda nos identificamos com Clara porque entendemos, em alguma instância, sobre orfandade.

Que desbunde todas as encenações das entidades! Eram mesmo atores? A atriz que interpreta Bibi Ferreira, Carol Costa, merece um artigo exclusivo.

Algumas dessas encenações brincam com os espectadores, num jogo de verdade e ficção — e no meu lugar de romancista dou a interpretação que eu quiser, então escolho que são incorporações e aguardo que se aproximem de mim e revelem meu destino.

Clara Nunes fez da música popular brasileira o veículo de expansão de práticas religiosas afro-brasileiras para muito além das populações negras.

Do chocalho na canela ao vestido branco, os adereços que “africanizam” Clara não nos deixam esquecer os pesados grilhões de ferro que aprisionaram os negros.

Em Clara Nunes, fica evidente que a estrela fez dos grilhões que já tinham se tornado pulsação rítmica nas buscas de sentido uma música que se conecta com o outro, com a comunidade.

A emoção da plateia corrobora minha percepção.

De esguelha, vejo o rapaz da brigada de incêndio, estrategicamente localizado na porta de saída de emergência, não contendo as palmas ritmadas no embalo das canções de afeto de Clara. Em segundos, no entanto, esse rapaz — que não é plateia nem elenco, mas é filho de Deus —, ouve algo no ponto eletrônico e recobra a postura. De guardião.

Tudo pode ser lido à luz da religião, da arte religiosa que usa o sofrimento como elemento motriz para atravessar a provação.

Dirigido por Jorge Farjalla, Clara Nunes – A tal guerreira agrega um elenco primoroso no canto, nas danças, nos batuques, na pele escura que não precisa pedir licença.

No seio da umbanda e do candomblé, o negro não precisa deixar de ser negro para adorar.

No musical, sobretudo a umbanda dá o tom por seu caráter mais sincrético e sua abertura para os gêneros seculares tradicionais, rurais e comunitários.

Não sem razão Clara Nunes é apreciada na diversidade dos gêneros de música popular e das camadas sociais em trânsito livre, desde o comercial ao independente, tornando-se “cult” e até experimental.

No lugar das bandeiras que os idealizadores poderiam levantar para suscitar discussões infrutíferas sobre preconceito e tolerância, Clara Nunes escolheu mostrar a exuberância da fé de matriz africana. Escolha nobilíssima!

Para os que desconhecem qualquer tipo dessas práticas, a montagem surpreende pelo luxuoso teor de encantamento.

Qualquer pessoa minimamente inteligente sabe que a vida não começa com uma bela teoria. A fé que brota do coração em agonia, em dúvida ou clamor, é da tradição oral vivíssima!

A cultura brasileira em geral tem obras de ressonância religiosa que são facilmente percebidas, ressemantizadas e retraduzidas. Em Clara Nunes, o espetáculo não dá conta da dimensão que é a fé e se torna uma festa.

Das musicalidades africanas traz sambas de roda, jongos, congadas e apresenta o Brasil mais sincrético do que gostariam as autoridades de predominância.

A experiência musical afro-brasileira é um caldeirão de intertextualidade. Os celebrantes são envolvidos pelos mitos, os ritos e os símbolos das representações míticas que não ignoram as emoções.

Lembrei-me do cristianismo ortodoxo de Tolstói e seu Ressureição no qual escreve que a razão foi dada ao homem para evitar aquilo que o perturba. A música de Clara Nunes, no entanto, liga os faróis para Rudolf Otto: religião não se esgota em seus enunciados racionais — o que perturba vira arte.

Qual é a diferença entre terreiro, igreja, templo e teatro?

Somam-se o samba, as coreografias, o figurino deslumbrante e o charme estético impecável de Farjalla.

Aquele que entra no teatro perfumado e nos momentos de espera acalma-se no branco do cenário, começa a entender— ainda que somente pelos sentidos— que religião é compaixão, não autoridade.

Se sou ousada em citar autores que desvelaram o cristianismo e o judaísmo para reafirmar a celebração de fé do musical idealizado por Vanessa da Mata, é claro que não.

O judeu Abraham Joshua Heschel sabia que a alma só comunga com ela mesma se o coração ficar alvoroçado. Há uma citação em seu estonteante Deus em busca do homem que invadiu minha fé falha diante da deslumbrante apresentação.

“A ciência procura a verdade sobre o universo; o espírito procura a verdade que é maior do que o universo.”

Uma experiência verdadeiramente espiritual perpassa Deus e retorna ao indivíduo. Saindo do teatro, vejo Farjalla, tomo-lhe a mão e a beijo.

Não é descabido então escrever que Clara Nunes – A tal guerreira não é mero musical, mas celebração da fé. Mais do que canções, Claridade nos deixou uma herança religiosa.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.