Deslumbrante! Isso é Guerra Fria, a obra-prima de Pawel Pawlikowski.
E não é deslumbrante apenas toda a estética; a fotografia; as paisagens soturnas do longa de amor trágico do cineasta polonês. São deslumbrantes os outros dois mundos que se descortinam diante de nossos olhos famélicos.
Porque, sim, só depois de assistir a um filme como Guerra Fria é que percebemos o quanto dependemos da beleza capaz de recuperar nossa humanidade. E não aquela que nos prova que somos bons. Trata-se, na verdade, daquela que nos lembra o irresolúvel…
São esses então os dois mundos: o do amor trágico e o das canções populares polonesas. Um se alimenta do outro.
Ou seja, as canções dos bêbados, como diz o filme; mas na verdade canções de amor.
Canções que nasceram no campo da escravidão, canções de medo, de dor e de humilhação. “Se sorriam, era através das lágrimas.”
Não sem razão, nos cinemas, antes da estreia, o trailer exibido era sem som. O silêncio do anúncio funcionou como antessala.
Na verdade, ainda funciona. Por isso é importante livrar-se dos ruídos antes de assisti-lo. Principalmente os internos.
Um dos primeiros cenários é a Polônia de 1949. Há ruínas, destroços do que um dia foi história, cenas de um branco lívido, de um cinza sujo e de um preto fúnebre. Cenas no frio, na chuva e no êxtase; que também é uma estado climático.
Os personagens centrais: Wiktor, pianista que percorre os campos poloneses em busca de material sonoro de canções folclóricas para a montagem de um espetáculo; e Zula.
Tal registro é feito das gentes simples que diariamente usam tais canções quase como rezas para aliviar os limites da sobrevivência.
Os rostos mostram a melancolia, a desproteção e até certa ingenuidade por se deixarem filmar como experimentos de um Deus implacável.
É durante a seleção dos dançarinos e cantores que acontece o maior imprevisto do coração: o olhar de um que encontra o olhar do outro, o que muda tudo para sempre. São segundos faiscantes, mas que não alertam para o fim já sabido em histórias assim, embora no caso de Pawlikowski não chegue nem perto do previsível.
Zula é então uma das candidatas a um lugar no grupo de artistas que correrá a Europa mostrando uma “nova” Polônia. A companhia fictícia é baseada na companhia real, a Mazowsze, uma das maiores do mundo, que valoriza a riqueza das danças e canções nacionais, além dos costumes em seus trajes.
Wiktor é fisgado pela petulante moça, de voz dramática, melancólica, doente. Voz de quem não se encaixa no mundo. Ela sabe o poder que tem sua voz, como o que tem seu corpo, e não finge constrangimento. A indiferença em Zula tem verniz ultra dramático.
Ao longo dos anos, contudo, o destino promove encontros e desencontros desses dois que se encontraram também nas necessidades de encantamento. Ela provê, ele se deleita; tudo nela é estético, tudo nele é contemplação. A cada um desses reencontros, intensifica-se a urgência de um desfecho.
Como antídoto às vontades obscuras do coração que afastam todo o amor, o longa de amor trágico de Pawlikowski é um estandarte desse sentimento de paisagem inclemente.
Porque inclemente é todo amor que recusa outros sentidos que não o da carne de quem se ama. Carne do sexo como se fosse o último, e do abraço último. Como escreveu Freud: “No auge da paixão, a fronteira entre o eu e o objeto ameaça desvanecer-se.”
O calor é um aviso do desgosto de tudo o mais que a vida é incapaz de ressarcir. Do amor trágico se é vítima tanto quanto de beleza se alimenta aquele que ama até a morte. E nenhum dos dois é de forma comum.
Guerra Fria é um estandarte do sentimento inclemente e das raízes que impedem, como no amor, que se jogue fora o que é mais autêntico de uma identidade, ainda que cruelmente marcada, como a polonesa. Ou como a dos verdadeiros apaixonados.
Pawel Pawlikowski exalta sua cultura com o mais antigo e forte sentimento universal: o amor.
Enganam-se Wiktor e Zula em achar que distantes e úteis às suas artes podem assim continuar a viver. Liberdade é uma ilusão como o fim do absurdo da existência. E de canção em canção as horas passam e deixam rugas na pele que um dia fez planos.
Na medida em que o filme chega ao fim, ninguém suporta mais a tristeza de uma vida sem sentido. Nem Wiktor, nem Zula, nem o espectador.
Os 89 minutos de Guerra Fria nos impede de pensar em nós mesmos, paradoxalmente quando nos leva a desejar um ideal trágico como o dos personagens: alguém por quem desistir de tudo.