Devin Singh: “Dinheiro e religião sempre coincidem”

É cada vez mais comum, nas ruas das grandes cidades brasileiras, mulheres muçulmanas andarem em seus trajes típicos. O estranhamento é inevitável: qual mulher, em sã consciência, abriria mão das liberdades conquistadas ao longo de tantos séculos? Daí então a pergunta central: por que o crescimento do Islã vem assustando tanto o Ocidente? Quem explica é Devin Singh, autor de Divine Currency – The Theological Power of Money in the West, além de professor de estudos de religião na Dartmouth, Estados Unidos. O foco dessa entrevista recai também na relação da religião com o dinheiro, assunto no qual Singh é doutor. O que o Islã tem que nos falta? Será que devemos mesmo temê-lo? Exclusivo para a FAUSTO.

Devin Singh
Devin Singh, autor de Divine Currency: The Theological Power of Money in the West.

FAUSTO – Em Submissão, de Houellebecq, o aumento significativo do salário leva personagens a considerar com mais simpatia a conversão ao Islã. No fim das contas, o que vale mesmo é assegurar o futuro?
Devin Singh: Não li o livro, então não posso falar de forma embasada sobre isso, mas me preocupo com a potencial islamofobia que o livro pode representar. Teóricos têm falado há algum tempo sobre o sentimento de perda de comunidade que está havendo no Ocidente, a erosão dos laços sociais tradicionais e o senso de anomia. Dinheiro e transações econômicas são frequentemente vistos como parte das causas disso tudo. O Islã é apenas um dos muitos tipos de símbolos que canalizam esse medo e essa sensação de perda.

Por quê?
O Islã representa um padrão alternativo de comunidade, e vem ameaçando justamente porque oferece senso de significado e de pertencimento que supostamente estão desaparecendo na Europa. Faz sentido que as relações monetárias sejam um sinal disso, como sugere o romance. Neste caso, o aumento de salário é um sinal de esperança para uma nova maneira das comunidades, dentro do espectro do islã, se relacionarem.

Para entender de política internacional é imprescindível entender de religião?
Certamente. Religião é um aspecto altamente determinante da cultura e uma força que moldou nações e comunidades. A falta de atenção para a religião e a ingenuidade em torno dela levam a muitos pontos-cegos nas relações internacionais e na política. Embora seja óbvio no mundo de hoje, devido aos conflitos em que a religião é explicitamente invocada – por exemplo, o Oriente Médio, os Bálcãs, etc. –, precisamos prestar atenção ao modo como a religião ainda opera na superfície das lutas políticas supostamente “seculares”.

Para entender de religião é imprescindível entender a economia?
Mais uma vez, penso que sim, com certeza. Isso é bem menos aceito, claro. Em minha pesquisa, exploro como a religião é moldada por ideias e práticas econômicas – e vice-versa. Não conseguimos sequer apreciar ou entender completamente o impacto da religião sem prestar atenção nas maneiras como a religião interage com a economia.

Por exemplo?
Por exemplo, o conflito entre os Estados Unidos e a Venezuela, que hoje pode ser visto como um conflito político-econômico – e certamente o é. Contudo, não é possível entender a atitude dos Estados Unidos em relação ao comunismo e ao socialismo de estado sem também analisar o medo do ateísmo que essas políticas e economias representam para os americanos. A Guerra Fria foi um combate ideológico que colocou a religião no centro e ainda funciona dessa forma hoje.

Quão importante é para a própria religião – seja ela qual for – que a literatura incite debates?
Essa resposta depende do que queremos dizer com religião e de quais tradições religiosas estamos considerando. Muitas religiões são orientadas por textos – ou seja, escrituras sagradas ou ensinamentos informais – o que sempre gera debates de interpretação. Alguém sugeriu que o que cria uma tradição religiosa é justamente essa história de debate e as discordâncias em torno dos textos, do ensino, do significado e da interpretação. Nesse sentido, certamente é importante que a literatura incite o debate, porque é isso que permite que a religião tenha vida contínua.

Por que estamos vendo o crescimento do Islã no Ocidente como uma ameaça?
Aqueles que veem isso como uma ameaça o fazem por muitas razões, sem dúvida. Uma razão importante, como sugeri anteriormente, é que ela veio representar ou simbolizar uma maneira alternativa de organizar a comunidade, as relações sociais, o significado supremo, a economia e o poder. O fato de estar ou não sendo representada com precisão não é a questão neste caso, mas sim o fato de que vem se tornando um símbolo e um lugar para projetar nossas próprias ansiedades e senso de fracasso quanto ao Ocidente. Assim como um bode expiatório se torna o objeto que recebe toda a percepção de pecado, culpa, raiva e medo de uma comunidade, o Islã é o canal atual que direciona nossa própria insatisfação com nossas sociedades.

Temos uma espécie de “medo econômico” desse crescimento ou apenas devido à violência e às restrições morais?
Os judeus foram culpados pelas crises econômicas enfrentadas pela Alemanha durante a ascensão do Terceiro Reich – e certamente antes disso e durante toda a Idade Média. Outras culturas são muitas vezes demonizadas devido ao seu impacto supostamente econômico. A maior parte do debate público hoje em torno do Islã cita as preocupações em torno da lei Shari’ah, além de outras restrições morais que você menciona. A economia não aparece tão centralmente. Mas é, certamente, pano de fundo dessa fonte de medo e culpa. Ironicamente, alguns teóricos sugeriram que as práticas bancárias islâmicas poderiam ter evitado a crise financeira de 2007-8, de modo que podemos ter muito a aprender economicamente com o Islã.

É ingenuidade pensar que política e religião sejam dois assuntos isolados?
Em última análise, sim, é ingênuo. Pode ser útil usar diferentes maneiras de falar quando queremos tratar ideias e práticas que associamos ao embate política versus religião. Todavia, é inútil manter um limite rígido entre as duas. Política e religião têm se moldado e confiado uma na outra desde quando há política e religião. Em última análise, ambos lidam com questões de poder, força, escolha, legitimidade e sofrimento.

O dinheiro na mão de líderes religiosos possui dicotômico significado? Pode tanto ter “godly aura” como ser maldição, dependendo do interesse de quem controla a narrativa?
Sempre. Embora eu ache que é um exagero dizer que o dinheiro é simplesmente uma ferramenta neutra, uma vez que está inevitavelmente ligado a centros do poder político. As formas como o dinheiro é descrito dependem em grande parte das narrativas daqueles que o detêm. Na igreja primitiva, quando as comunidades de Jesus eram em grande parte pobres e marginalizadas, o dinheiro era representado como um perigo para a alma. O dinheiro era demonizado. Uma vez que essas comunidades começaram a receber membros ricos, e os bispos passaram a administrar fundos doados para a Igreja e os pobres, surgiram nomes mais piedosos para a riqueza. Em outras palavras, a narrativa mudou para dar lugar à crescente presença do dinheiro, e as comunidades religiosas reconheceram que não poderiam ser sustentadas a longo prazo sem dinheiro.

Questões existenciais formam a base de todas as religiões, embora as religiões não sejam as únicas a dar respostas. A filosofia, por exemplo, preenche essa lacuna. O dinheiro também, de certa forma. A religião, contudo, acessa algo em nós que a filosofia não acessa e nem o dinheiro. Sabe dizer o que é?
As definições tradicionais de religião alegam falar de assuntos de interesse definitivo, ou apontam para aspectos da experiência humana que não são facilmente observados ou explicados por realidades empíricas.

Sim, daí temos um abismo de possibilidades de argumentos…
Tipicamente, a filosofia distinguiu-se da religião alegando lidar com realidades empíricas ou com assuntos que podem ser completamente explicados através da razão. Embora a religião certamente use a razão, ela pode se aventurar em reinos não acessíveis à razão como a conhecemos e fazer apelos a algo separado da realidade cotidiana que tem sido chamada de sagrada. Curiosamente, tanto a religião quanto o dinheiro lidam muito com questões do desejo, assim como da esperança e de expectativas futuras. É por isso que todos eles podem frequentemente se fundir. A luta entre religião e dinheiro é que cada um faz afirmações sobre o que trará felicidade e satisfação, e muitas vezes é difícil conciliar as visões que cada uma delas oferece.

O que o levou a escrever Divine Currency – The Theological Power of Money in the West?
Há muito tempo sou fascinado pelas conexões entre religião e economia. Desde experiências de minha vida pessoal às dos meus estudos, tenho visto como esses dois reinos causam tremendo impacto e moldam profundamente as sociedades. Enquanto eu estudava essas conexões, descobri o quão complicado é o dinheiro e como os teóricos lutaram durante séculos para entendê-lo e defini-lo. Parte do desafio de entendê-lo é que ele tem poder simbólico e interage com a esperança e sonhos humanos de sobrevivência e de prosperidade. Nesse sentido, podemos dizer que não há dinheiro verdadeiramente secular. Dinheiro e religião sempre coincidem. Escrevi este livro para começar a descobrir alguns desses antigos laços entre os dois e nos ajudar a entender por que o dinheiro continua a ter esse poder sagrado hoje.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.