Douglas Smith: “Raspútin era tanto grande notícia quanto rendia grandes lucros”

Se há um nome que não passa incólume em qualquer história sobre a Rússia czarista, esse nome é Raspútin. O líder religioso não foi o primeiro a causar furor em seu entorno, mas sem dúvida foi o mais devastador. Um dos motivos da derrocada de uma das mais longevas dinastias do mundo, a Romanov, é compreendido até hoje das mais controversas formas. Diabo? Santo? Monge? Louco? Douglas Smith, autor da mais completa biografia sobre o mito, reconta sua trajetória de maneira magistral. Com exclusividade para a FAUSTO, o escritor premiado, doutor em História pela Universidade da Califórnia, além de autor de cinco livros sobre a Rússia, conta um pouco sobre Raspútin: fé, poder e o declínio dos Romanov. Instigante! Para dizer o mínimo.

Raspútin
Raspútin.

FAUSTO – O seu livro é incrível! Ao todo, foram quantos anos de trabalho, entre pesquisa e escrita?
Douglas Smith: 
A primeira vez que tive a ideia dessa minha biografia foi no fim de 2010, e comecei a trabalhar nela no início de 2011. A parte mais difícil foi fazer toda a pesquisa – o que me levou a sete países. Eu sabia desde o começo que, se eu ia dizer algo novo sobre Raspútin, eu teria de voltar aos arquivos e desenterrar todos os documentos originais, agora espalhados pelo mundo, tudo o que os biógrafos do passado haviam ignorado. Foi uma tarefa assustadora, mas também estimulante. Finalmente terminei no início de 2016. Então, ao todo, foram pouco mais de cinco anos de trabalho em tempo integral.

Ao longo da escrita, imaginou-se diante de Raspútin? Conversando com ele?
Bem, não posso dizer que realmente falei com ele, mas fiz como faço em todos os meus livros: cubro as paredes do meu estúdio com fotografias desses meus objetos, deles em suas vidas, dos lugares em que visitaram e acho que isso me ajuda a me situar em seus mundos e me aproxima um pouco mais deles. Também gosto de passar muito tempo examinando todas as fotografias que consigo encontrar. Hoje, com computadores, você pode expandir as imagens, concentrando-se em detalhes que só podem ser vistos graças a essa nova tecnologia. As coisas entram em foco de um jeito como nunca antes, e todas essas pequenas informações se acumulam e ajudam a recriar o objeto com a maior especificidade possível.

Crianças costumam captar de forma mais natural a bondade – ou a maldade – de alguém. O fato de as crianças Romanov terem gostado tanto de Raspútin não significava algo?
Sim, esse é um bom ponto. Crianças geralmente são mais capazes de ler o caráter de alguém do que os adultos. E as crianças Romanov conheciam Raspútin muito bem e ele tinha acesso aos lugares mais privados das residências imperiais, incluindo o berçário. Ele brincou com as crianças, orou com elas, trocou cartas com elas e aconselhou-as a ser bons filhos e bons cristãos ortodoxos. Todos olhavam para ele, em parte por causa das coisas maravilhosas que sua mãe, a Imperatriz Alexandra, contava, esse homem a quem chamavam de “nosso amigo”. Os arquivos russos contêm a fascinante correspondência entre Raspútin e as crianças que usei no meu livro.

Por que diante de personalidades tão impactantes como Raspútin tendemos a ser maniqueístas? Diabo santo, monge louco, herói, vilão…
Essa é uma questão fascinante e difícil de responder com alguma certeza. Algumas figuras históricas são, por sua própria natureza, extremamente polarizadoras, talvez nenhuma mais do que Raspútin. Examino este fenômeno em meu livro a partir de vários ângulos, porque na minha opinião a visão de Raspútin como o “Diabo Santo” nunca foi produto de um único fator, seja sua personalidade ou o Zeitgeist da Rússia czarista tardia. Creio que não há dúvida de que ele era um homem de extremos, que em um momento poderia se perder em oração e no momento seguinte se perder no abraço de alguma mulher, muitas vezes a esposa de outro homem. Mas tão importante quanto era o mundo em que vivia, que na época se convenceu de que figuras diabólicas se moviam entre eles e usavam de algum modo seus poderes sombrios para moldar o curso da história. Todas essas coisas se juntaram numa mistura estranha e venenosa para criar a imagem popular de Raspútin.

Qual abordagem de seu livro é completamente nova?
Até agora, a maioria dos livros sobre Raspútin tem sido uma releitura das mesmas histórias antigas, com pouco respeito à veracidade. Realmente sabíamos pouco sobre os detalhes da vida de Raspútin: onde ele estava em determinado dia, com quem se encontrava, o que fazia, para quem escrevia – todos aqueles detalhes que, juntos, tecem a vida de qualquer pessoa. Um dos meus objetivos, desde o início, foi o de perseguir cada pequeno fato de sua vida para dar uma visão mais precisa e completa de como ele vivia. Esta é a primeira biografia que faz isso, o que não é pouca coisa. Durante a pesquisa, cheguei a ver um homem diferente do que há muito pensávamos que conhecíamos: não este “Diabo Santo”, mas uma figura muito mais complexa, com nuances e, em última análise, positiva; um homem de sua época, certamente, e também um verdadeiro homem de paz, algo totalmente diferente da estereotipada figura maligna da literatura padrão.

Parece uma pergunta boba, mas… Se Raspútin tivesse tido outra cor de olhos, ele teria provocado o mesmo impacto?
Essa é uma pergunta que eu nunca me fiz antes! Devo admitir que não pensei nisso e não tenho certeza de como responder. Sabemos que seus olhos eram de uma cor cinza-esverdeada e parece que era menos a cor que deixava as pessoas tão hipnotizadas do que a intensidade de seu olhar, o modo como ele conseguia prender as pessoas com seu olhar e produzir todos os tipos de efeitos estranhos. Amigos e inimigos testemunharam essa qualidade rara de Raspútin, e tenho certeza de que esse foi o elemento de sua personalidade que ele cuidadosamente cultivou como parte de sua estratégia de autoformação.

O que sobre Raspútin é impossível aplicar em teorias?
Não sou grande fã de aplicar teorias quando se trata de escrever biografias. Escrevi livros sobre a Imperatriz Catarina, a Grande; sobre o Príncipe Grigory Potemkin; sobre Praskovya “a Pérola” Kovalyova, uma brilhante cantora de ópera serva russa do século XVIII; e agora Raspútin. Na minha opinião, nenhuma teoria pode ser explicada à infinita variedade de uma vida humana. É tudo muito confuso, muito complicado, muito singular. É claro que toda vida é, em algum nível, um reflexo inconfundível de seu tempo e lugar específicos, o que a molda de maneiras poderosas. Todavia, descobrir qualquer vida humana requer ir atrás das experiências concretas e únicas que determinaram a história dessa pessoa. E é esse fato que torna a pesquisa e a escrita de biografias tão desafiadoras e empolgantes: não há atalhos, nem teorias prontas que alguém possa simplesmente aceitar e aplicar para obter as respostas que estão no cerne de nossas experiências individuais.

Qual foi o papel da mídia daquele tempo na construção de Raspútin como um mito?
O papel da mídia foi enorme. Após a Revolução de 1905, a Rússia recebeu uma imprensa relativamente livre e os donos dos jornais e revistas rapidamente perceberam que Raspútin era tanto grande notícia quanto rendia grandes lucros: os russos queriam ler sobre esse misterioso camponês siberiano que conseguiu ganhar a confiança da família real. Ele foi perseguido pelos paparazzi e cada movimento seu foi narrado. Entretanto, a imprensa nunca esteve interessada em obter a verdadeira história por trás de Raspútin. A imprensa queria escândalo, em parte porque vendia jornais e isso era bom para os negócios, mas também porque grande parte da imprensa criticava o regime. Atacar Raspútin na imprensa, muitas vezes por meio de histórias exageradas ou inventadas, tornou-se uma maneira de atacar o estado czarista. O papel da mídia foi de importância fundamental tanto na construção do mito Raspútin quanto no enfraquecimento da autoridade da dinastia Romanov, acelerando assim a Revolução de 1917.

Em que medida Raspútin é uma lição para governantes? Não importa o país ou a época.
Conselheiros informais, sem título ou posição oficial, são inerentemente perigosos para os governantes. Uma mancha de ilegitimidade é atribuída a eles – as pessoas sentem que não conquistaram seu lugar de poder por meios verdadeiros e honestos, mas por algum conivente nefasto. Podemos ver isso nas vidas dos muitos favoritos reais nos vários tribunais europeus ao longo da história. Como escrevo no livro, acho que Raspútin precisa ser visto como mais uma encarnação desse favorito real. Nesse sentido, pela própria natureza de sua posição, adquiriu uma odiosa reputação que, ao mesmo tempo, sujou a aura de poder e respeito ao trono czarista. O rei Luís XIV disse que os favoritos “roubam de você parte de sua glória”. No caso de Nicolau II, Raspútin despojou o czar de toda a sua glória. O perigo do favorito não é limitado por tempo ou lugar, como mostra a recente queda do presidente sul-coreano Park Geun-hye sobre suas ligações com um líder de culto conhecido como “o Raspútin coreano”.

Segundo David Hume, a religião prospera em situações terríveis de medo e ignorância do futuro. Insegurança política é uma das principais responsáveis pelo surgimento de líderes que dizem estar sob o comando de Deus?
Não estou certo de que esse é sempre o caso, mas definitivamente foi a história de Rasputin. Tanto Nicolau II quanto sua esposa, Alexandra, estavam aterrorizados com o futuro e com o que esse futuro significaria para a Rússia e para a dinastia Romanov. Em vez de aceitarem a mudança como algo que precisava ser gerenciada, eles tentaram pará-la. Como não podiam fazer isso, fingiram que nada estava acontecendo. Isso os tornaram presas de todo o tipo de misticismo, charlatanice, tolice e antissemitismo odiosos que apresentavam mudanças como o trabalho destrutivo e maligno dos judeus. De certa forma, Raspútin alimentou essas tendências prejudiciais, mas em outros ele tentou atuar contra eles, tentou abrir os olhos para o que estava acontecendo na Rússia e o que eles deveriam fazer. Para dar apenas um exemplo, Raspútin tentou convencer Nicolau II a enxergar que o povo de Petrogrado estava com fome, isso no final de 1916, e o ​​governo teve que fazer com que a ida de alimentos para a capital fosse uma prioridade. Nicolau II recusou-se a ouvir e, meses depois, eclodiram tumultos que rapidamente levaram ao colapso do regime e ao fim da dinastia de trezentos anos dos Romanov. Se o czar tivesse atendido o aviso de Raspútin, a história poderia ter sido diferente.

Será que ainda conheceremos um nome tão controverso? Ou não devemos subestimar a capacidade do ser humano de se superar?
Provavelmente conheceremos um nome mais controverso do que Raspútin, embora não necessariamente porque haverá uma figura mais extraordinária do que ele, e sim porque nossa memória histórica é curta e com o tempo a fama de Raspútin – ou infâmia – desaparecerá e as pessoas encontrarão alguém para substituí-lo. Se não tivermos Raspútin, as pessoas vão inventar alguém novo para ocupar seu lugar.

 

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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.