Dwa Serduszka, a música e o coração de Guerra Fria

É praticamente impossível assistir Guerra Fria sem que a canção Dwa Serduszka não finque raízes na mente e no coração.

Potencializada pelo preto do figurino, o branco das paisagens e o espectro de cinza das emoções, a canção triste ganhou o mundo inteiro.

Dwa Serduszka foi criada pelos fundadores da Mazowsze, companhia de dança original que inspirou o filme. A letra é de Mira Zimiśka e a música de Tadeusz Sygietyński. A tradução é dois corações.

Guerra Fria, filme de Pawel Pawlikowski.

Dwa Serduszka é cantada quatro vezes pela personagem Zula, interpretada pela atriz polonesa Joanna Kulig. A história trágica dos apaixonados Zula e Wiktor tem como música tema esta canção. Wiktor é vivido por Tomasz Kot.

Guerra Fria foi co-escrito e dirigido pelo também polonês Pawel Pawlikowski. Simplesmente uma obra-prima!

Ouve-se Dwa Serduszka pela primeira vez no início do filme, na audição que faz Wiktor e sua colega Irina, interpretada por Agata Kulesza. Quem canta do jeito mais simples, porém doloroso, é uma jovem camponesa – cena impactante, pela carga emocional. Ao longo da trama, a canção passa pelas adaptações:

  • Como um número da produção da Mazurek, a companhia polonesa do filme;
  • Numa improvisação ao piano, em Paris;
  • Cantada por Zula, ainda no mesmo clube;
  • No álbum de Zula, quase ao fim, numa circunstância mais refinada, porém ainda mais triste.

Todas as adaptações passam pelas mãos de Marcin Masecki, que ao lado de Pawlikowski faz da música o coração do filme. Melhor! O espírito santo do filme. Palavras de Pawlikowski.

Contudo, na audição para entrar na companhia, Zula canta outra música. É uma do filme soviético Jolly Fellows, de 1934. É neste momento que Wiktor se apaixona pela melancólica garota.

Ao longo de Guerra Fria tocam ainda Frederic Chopin, George Gershwin, Cab Calloway, Billie Holiday e Ella Fitzgerald.

Canções famosíssimas como “Blue Moon” passam pelo longa, assim como “Rock Around the Clock”, de Bill Haley, que é a canção que faz Zula dançar de forma alucinada, numa festa. Zula é selvagem, sensual e letal. Irresistível!

Ella Fitzgerald é a cantora preferida do pai de Pawlikowski, que por sua vez viveu a história de amor que inspira o filme.

Antes de Dwa Serduszka ganhar o mundo através do filme, foi gravada pela cantora polonesa Magda Umer, que começou sua carreira nos anos 1960. Outra versão, antes do filme também, é da diva contemporânea polonesa Anna Maria-Jopek. Versão linda, como tudo que Jopek faz. Já existe até uma versão em inglês, Two Hearts, que me recuso ouvir.

Abaixo, uma tradução que encontrei, feita por Erick Fishuk.

Dois corações

Dois corações, quatro olhos, oi, oi, oi…
Que choravam dia e noite, oi, oi, oi…
Olhinhos negros, vocês choram,
Pois não podem se encontrar,
Pois não podem se encontrar…
Minha mamãe me proibiu, oi, oi, oi…
De gostar de um rapaz, oi, oi, oi…
Mas o agarrei pelo pescoço,
Vou amá-lo por toda a vida,
Vou amá-lo por toda a vida…

Minha mamãe me proibiu, oi, oi, oi…
De gostar de um rapaz, oi, oi, oi…
Só sendo um coração de pedra
Para ele não amar o rapaz,
Para ele não amar o rapaz…

Outra exuberância de Zula é a interpretação de Baio Bongo, de Natasza Zylka, uma das cantoras polonesas mais populares dos anos 1950. Na cena, toda a sua tristeza, cansaço e decadência estão ali.

O tom de morte vem do piano de Glenn Gould. Guerra Fria é uma obra-prima que merece ser vista e ouvida.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.