Um apaixonado pela Rússia! Este é Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor do Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias da Universidade Estadual de Maringá, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University, Estados Unidos. Por isso mesmo – e quem ousa contradizer? – apenas ele poderia explicar esse “amor bandido” que nutrimos por essa potência tão complexa, contraditória e visceral. O assunto da vez é seu livro Diário de um escritor na Rússia, que reúne as crônicas publicadas originalmente no site da revista Veja, por razão de sua viagem ao país de Dostoiévski e Tolstói em 2018. Com exclusividade, Vassoler conversa com a FAUSTO sobre os traços culturais e políticos do país, como um aperitivo de seu Diário.
FAUSTO – Que Rússia é essa capaz de nos despertar uma espécie de amor bandido?
Flávio Ricardo Vassoler: Sua pergunta me remete, sem mais, à epígrafe do posfácio do Diário de um escritor na Rússia – “O que que a Rússia tem?” –, em que o Henrique Canary traz à tona um poema de Fiódor Tiutchev: “Não se entende a Rússia com a razão,/ Com parâmetro comum não se há de mensurar/ Ela tem uma especial constituição –/ Na Rússia, só se pode acreditar”.
Muito bom!
À falta de uma sociedade civil e de instituições democráticas solidamente constituídas – do tsar Ivan, o Terrível, cujo epíteto dispensa mais apresentações, ao tsar vermelho Ióssif Stálin, a história do poder na Rússia traz um capítulo peculiaríssimo sobre a história do autoritarismo e do anseio por líderes fortes –, é recorrente entre os estudiosos da cultura russa a noção de que a literatura, sobretudo no século XIX – mas também poderíamos pensar no século XX dos dissidentes Boris Pasternak e Alexander Soljenítsin – erigia uma arena para os embates encarniçados, que o tsarismo não deixava vir à tona. É assim que, em face da imprensa empastelada, das universidades amordaçadas e dos partidos políticos/movimentos sociais emparedados, a literatura russa de Ivan Turguêniev, Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói e Anton Tchékhov congregava em suas narrativas e personagens, de maneira esópica, as grandes questões de sua época.
O que quer dizer com maneira esópica?
Refiro-me sobre o papel da censura sobre as obras, o que demandava dos escritores um esforço para, de maneira oblíqua e (algo) dissimulada, exprimir as ideias que (ainda) não podiam erigir barricadas em praças e avenidas. Assim, outro tópico recorrente entre os estudiosos da cultura russa é a relação entre a censura e o caráter elíptico e matreiro da ironia para a constituição das obras.
Entendo…
Com esses aspectos em mente, como não falar no pathos – no “amor bandido”, para usarmos a sua expressão, que as personagens dostoievskianas disparariam depois de algumas talagadas de vodca –, que a literatura russa desperta? Ao lermos Pais e filhos, de Turguêniev, Crime e castigo, de Dostoiévski, Guerra e paz, de Tolstói, e Enfermaria n.º 6, de Tchékhov, nos sentimos diante das grandes questões filosóficas e históricas, que, do século XIX para o século XX, da Rússia para a União Soviética, moldaram o transcurso da história em seus sonhos e pesadelos.
Ao concluir essa viagem à Russia, relatada em seu Diário, você conseguiu responder à questão: “Há esperança para nós?”
Sintomaticamente, você se refere a um aforismo de Franz Kafka que desponta como epígrafe e como frase derradeira do meu livro: “Fiódor Dostoiévski, me responda de uma vez: por que a vida e a história não desmentem Franz Kafka, quando ele sentencia que há esperança, mas não para nós?”
Sim, isso mesmo!
Há um século, a Rússia revolucionária fez o mundo acreditar em uma resposta radicalmente emancipatória para essa questão. Há um século, pintores russos revolucionários chegavam a declinar da autoria de seus quadros: “Não fomos nós que os pintamos; a Revolução é a parteira da nova arte, a Revolução é a parteira da nova história”. Há um século, Liev Trótski projetava que, na sociedade comunista, o nível médio dos homens e mulheres seria equiparável ao de Aristóteles e Marx. Ora, como Trótski jamais poderia ser tido como um mero ingênuo, tal colocação nos dá mostra de um radical otimismo epocal, pathos que se entrechoca, radicalmente, com o cinismo e a mediocridade de uma época que não se envergonha de eleger figuras como Donald Trump e seus miquinhos amestrados mundo afora.
Você escreve em Diário que Putin é um “líder casado com o poder até que a morte os separe”. Isso não é uma das mais fortes características dos líderes russos, em todos os tempos?
Infelizmente, sim. E isso apesar de a Rússia ter sido palco, nos primórdios da Revolução de Outubro, de uma das mais ousadas e avançadas experiências democráticas da história, a implementação dos sovietes, os conselhos operários de autogestão das fábricas. Mas, como você bem soube frisar, líderes longevos e filoautoritários se confundem com a história do poder na Rússia. A este respeito, creio que cai como uma luva – ou, a bem dizer, como a espada de Dâmocles – um dos trechos do meu livro, intitulado “Adeus, Lênin?”.
Como Putin é visto pelo povo? Conseguiu notar isso, só que sem o seu olhar de estrangeiro? Em outras palavras, o povo se importa com Putin?
A sua pergunta é importante para que eu possa frisar um dos intentos fundamentais do Diário de um escritor na Rússia: como autor-personagem, tentei exprimir a alma russa a partir de sua própria alteridade, em diálogo com uma série de pessoas/personagens com as quais, muitas vezes, eu mesmo não concordava, uma vez que, aqui no Brasil, as notícias e informações sobre a Rússia chegam, via de regra, com um prisma americanófilo/antirrusso – como sabemos, tal processo ocorre desde a Guerra Fria e vem se aprofundando desde a ascensão de Putin ao poder, quando o neotsar voltou a entrever a Rússia como uma potência geopolítica, à revelia dos intentos dos Estados Unidos de reduzir a outrora superpotência à condição de carta fora do baralho. Já que as pessoas/personagens russas muitas vezes emparedam este autor-personagem, nada melhor do que falar sobre o neotsar Vladímir Putin a partir das vozes de alguns de seus eleitores/súditos e opositores.
E você faz isso no livro.
Sim. Primeiramente, com Kátia, no texto “É preciso encontrar alguém diante de quem se possa ajoelhar”. Logo na sequência, numa colocação sintomática de Galina Ponomariova, eminente pesquisadora da obra de Fiódor Dostoiévski e ex-aluna de ninguém menos que o crítico literário e filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin.
Na Rússia pratica-se o “niilismo jurídico”?
Creio que poderíamos dizer que, nas poucas sociedades em que há mais estabilidade jurídica, as elites/oligarquias já tiveram que ceder alguns anéis para que pudessem manter os dedos – a guilhotina, convenhamos, tem lá seu poder de convencimento, não?
[Dá risada]
Infelizmente, após o colapso da União Soviética, a Rússia não logrou construir uma democracia vívida com amplas liberdades civis e solidez institucional. Nesse sentido, a divisão de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, na Rússia, está muito mais no espírito do que na prática das leis, como bem diria uma personagem matreira de Dostoiévski a Montesquieu. Entretanto, como o turbocapitalismo contemporâneo – devo esta expressão ao saudoso historiador brasileiro de origem ucraniana Nicolau Sevcenko, cuja família fugiu do império russo após a Revolução de Outubro – vem se desvinculando cada vez mais da democracia liberal, o “niilismo jurídico” passa a ser praticado em países que antes se gabavam de hastear a bandeira da liberdade. Os detentos da prisão militar de Guantánamo que o digam.
A cultura é um dos maiores patrimônios da Rússia?
“A literatura é o maior produto de exportação da Rússia” – eis um velho dito entre os estudiosos da cultura de um país que já nos legou, além de Turguêniev, Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Pasternak e Soljenítsin, talentos tão díspares como Vladímir Maiakóvski e Ivan Bunin, Anna Akhmátova e Marina Tzvietaieva. A propósito, o grande poeta Óssip Mandelstam certa vez sentenciou que a Rússia era o único país que levava a poesia realmente a sério, já que era bem possível morrer por causa dela. O ditador soviético Ióssif Stálin faria com que Mandelstam testemunhasse tal verdade lapidar – ou, pior, tal verdade-lápide – com o próprio corpo condenado a trabalhos forçados em algum rincão glacial da Sibéria.
Os programas culturais de alto nível de produção são acessíveis a todos? Os balés, concertos, museus…
À época da União Soviética, tratava-se de uma política de Estado – a despeito da censura a que a produção artística invariavelmente era submetida. Sobre o que vem ocorrendo hoje na Rússia – a bem dizer, na sociedade globalitária sob a batuta do turbocapitalismo –, há também um personagem em Diário de um escritor na Rússia que tem algo interessante a dizer sobre isso.
A bebida alcoólica e a literatura tem uma relação indissociável?
Em sua formidável autobiografia Confesso que vivi, o poeta chileno – e socialista – Pablo Neruda se refere à vodca russa como o “fogo líquido”, e os leitores e leitoras de Crime e castigo logo se lembrarão de que o bufão dostoievskiano Marmieládov jamais discorreria sobre o subsolo de sua agonia dolosa se não chafurdasse em doses contumazes da mais pura vodca petersburguesa às expensas da prostituição da filha Sônia. É também em uma taverna, com o barulho das bolas de bilhar em entrechoque e o tilintar dos copos, que os irmãos Aliócha, o monge, e Ivan Karamázov, o ateu, têm aquele que pode ser considerado o maior diálogo/duelo da obra de Dostoiévski, conversa que dá vez e voz aos capítulos “A revolta” e “A lenda do grande inquisidor”, momentos seminais do romance Os irmãos Karamázov.
Poética resposta! [Dá risada]
O relato intitulado “Se queres paz, prepara-te para a guerra?” é muito bonito. Tentando fazer um comparativo, o que o Brasil saberia, na prática, se tivesse passado por uma guerra?
Muito obrigado pelo elogio. Escrito em Moscou, no dia 19 de junho de 2018, “Se queres paz, prepara-te para a guerra?” traz histórias do capitão reformado do Exército Vermelho Valeri Viatcheslavovitch Motchalovski, que esteve na guerra que os soviéticos moveram contra os afegãos ao longo de toda a década de 1980. Como uma tentativa de compreender a alma russa a partir de seus próprios prismas, ouvi os relatos de Motchalovski como quem vai descortinando o imaginário de um país que sofreu invasões contínuas de potências estrangeiras a seu território – mencionemos a invasão napoleônica, entre 1812 e 1814, as invasões por parte de múltiplos exércitos estrangeiros durante a guerra civil que se seguiu à Revolução Russa, entre 1917 e 1922, e a invasão nazista, que ocorreu a partir do dia 22 de junho de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, que, para os russos, é chamada de Grande Guerra Patriótica. Entretanto, se a Rússia é um país historicamente invadido, a Polônia retalhada em 1939 pelo pacto de não-agressão firmado entre Hitler e Stálin, a Hungria e a Tchecoslováquia, respectivamente invadidas pelos tanques soviéticos em 1956 e 1968, asseveram que a Rússia também é um país invasor. Após o colapso da União Soviética – quiçá o maior sonho utópico da humanidade já revertido em pesadelo distópico –, a Rússia foi se transformando em uma oligarquia cada vez mais encarniçada.
Encarniçada. Que palavra forte.
Como a democracia brasileira – ou, pior, a democracia à brasileira – vem sendo sequestrada, emparedada e tutelada desde, no mínimo, 2016 – para não mencionarmos a atitude da oposição político-econômica desde o resultado da eleição presidencial de 2014 – por um niilismo de matiz jurídico, político e econômico, eu espero – e não mais do que espero – que as forças progressistas do nosso país não precisem chegar à conclusão de que só a sabedoria de Motchalovski pode fazer com que os anéis da riqueza socialmente produzida sejam distribuídos com liberdade, igualdade e fraternidade. Na França e na Rússia, tal santíssima trindade laica pressupôs a guilhotina. Se conseguirmos resgatar a fragilíssima democracia brasileira de seu coma induzido pela toga, pela farda e pelas finanças (inter)nacionais e lograrmos torná-la efetiva e socialmente democrática para muito além da mera casca de representatividade, o Brasil não precisará singrar o deserto de gelo da sabedoria narrada pelo capitão reformado do Exército Vermelho Valeri Viatcheslavovitch Motchalovski, como cito em Diário.