Rabino Adrian Gottfried: “O espírito do totalitarismo, infelizmente, renasceu”

Tornamo-nos todos judeus depois do Holocausto. É uma forma poética de nos apresentar solidários e conscientes do horror vivido por mais de seis milhões deles – entre tantos outros de outras etnias – no horror da Segunda Guerra Mundial. Desde então é na paz que eles vivem? Infelizmente, não. Religião no Contemporâneo apresenta a seguir o judaísmo, na palavra do rabino Adrian Gottfried. Com exclusividade para a FAUSTO, o também mestre em Sociologia pela Universidade Nacional de Buenos Aires e Estudos Judaicos pela Jewish Theological Seminary of America, de Nova Iorque, discorre sobre identidade, medo e esperança, entre outros conceitos que ainda não dão conta do que é ser judeu. Esta entrevista faz parte da série de eventos idealizada pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP, sob direção de Luiz Felipe Pondé, que reúne um pastor, um padre, um sheikh, um pai de santo e um rabino para discutir o papel da religião na sociedade atual.

Entrevista com o rabino Adrian Gottfried.

FAUSTO – O que sua religião tem a oferecer?
Adrian Gottfried: O que minha religião tem de melhor para oferecer é a possibilidade de tornar o mundo mais humano e os seres humanos mais sensíveis. Minha tradição espiritual permite que aquele que segue suas normas, suas pautas, suas ideias e seus rituais se torne mais sensível. E, por fim, permite que a própria qualidade de vida do universo melhore, além do indivíduo em particular.

Por que os judeus são, aparentemente, tão fechados? Os judeus parecem viver confortáveis entre si.
Na verdade, é uma questão de sensibilidade. A religião judaica é horizontal e não vertical. Não temos, por exemplo, um papa. É por isso que há muita diversidade em todo o judaísmo. Mas esse “fechado” é uma questão de perspectiva. Há grupo no judaísmo, evidentemente, que é muito fechado, que é aquele que se associa ao estereótipo do judeu de preto, de barba, ou seja, o grupo ultra ortodoxo, que não deixa de ser uma caricatura do judaísmo.

Sim, com certeza.
Só que grande parte do judaísmo não segue essa linha. Os ortodoxos compõem a porcentagem menor: talvez 10% apenas. Agora, esse grupo chama a atenção porque é composto por pessoas diferentes. Um pouco do sucesso da série Shtisel tem a ver com isso, de poder conhecer esse mundo ultra ortodoxo a partir de outra perspectiva. Mas, sem dúvida, poderíamos falar desse ponto em outros grupos que não conhecemos muito, que são fechados, a priori.

Pensei nisso porque, diferentemente de outras religiões, que praticamente nos puxam pelo braço enquanto caminhamos na rua, no sentido de conversão, os judeus sempre parecem nada preocupados em converter pessoas.
Na verdade, o drive judaico não é o de evangelizar, de ativamente trazer pessoas de outros rebanhos para o nosso rebanho. É claro que a tradição judaica é plural e aberta, mas o judaísmo se transmite por uma mãe judia ou por alguém que escolheu ser judeu, isso desde a época bíblica. Os judeus nunca formaram um grupo fechado e talvez esse tenha sido um dos grandes erros de Hitler: o judaísmo não é uma raça. Há judeus de todas as cores, de todos os sabores e texturas. Nossa atitude não é evangelizadora, mas temos de lembrar que o judaísmo é um grupo pequeno comparado com outras religiões históricas, monoteístas.

Li certa vez, não lembro exatamente onde, um pensamento do sociólogo Bernardo Sorj, e um pensamento que achei muito bonito: “A identidade é um dos caminhos que a cultura oferece para enfrentar a finitude.” É possível falar de identidade judaica nesta perspectiva?
Claro. Porque a primeira coisa que temos que entender quando falamos de judaísmo é que “religião” não é a palavra mais apropriada. Falamos “religião” porque não temos outra palavra melhor, mais precisa, para definir esta tradição espiritual. Por outro lado, Deus, que é um componente fundamental em todas as religiões, no judaísmo é opcional. Há muitos judeus que não creem em Deus, mas sua identidade judaica é extremamente importante. Um exemplo disso é David Ben-Gurion, que fundou o Estado de Isreal, que é absolutamente antirreligioso, mas ninguém pode questionar sua judeidade.

Com certeza.
No judaísmo, a questão da identidade é muito importante, sem contar o número de judeus que participam de movimentos sociais, de lutas e revoluções no mundo inteiro, motivados pela tradição judaica de melhorar o mundo. Claro, às vezes isso leva à luta armada, entre outras questões, mas dá para entender que a frase de Sorj é bastante pertinente, uma vez que a identidade judaica é muito maior do que o seu aspecto religioso.

O senso de comunidade também, não?
O que mais cuida do judaísmo é a própria comunidade. E essa comunidade é feita de diferentes grupos. Essa tradição espiritual de se juntar, de alguma maneira nos dá um senso de pertencimento. E a sociedade pós-moderna carece desses espaços, porque as pessoas são individualistas. A comunidade judaica se obriga, de alguma maneira, a estar em grupo, o que é contra cultural hoje.

Dentro dos limites que podemos considerar na palavra “saudável”, é essa a impressão que eu tenho mesmo, de ser algo importante para a nossa saúde, principalmente nesse momento em que vivemos.
E é revolucionário. Numa época em que cada um é por si – e a selfie é uma prova –, se obrigar a sair de casa para se encontrar com outras pessoas é bastante difícil. Um exemplo interessante, no judaísmo, é que algumas rezas necessitam de um número mínimo de dez pessoas. Ou seja, as pessoas são obrigadas a saírem de seus lugares de conforto. Isso cria comunidade, relacionamentos e vínculos, que é o que nos protege.

Depois do Holocausto, é possível falar de uma identidade judaica para além do próprio judaísmo?
Nesse sentido que você está colocando, sim. A consciência do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial foi tão terrível que demorou muitas décadas para metabolizarmos. E as pessoas quando tomam contato com esse horror, de fato percebem o tamanho da tragédia. Até o próprio judaísmo demorou um tempo para entender e se recuperar do Holocausto. Só para você ter uma noção, o número de judeus em 2019 não chega nem perto do número que havia em 1939. Morreram seis milhões de judeus, que era um terço do que existia. Um em cada três! E hoje, depois de 80 anos, ainda não chegamos a 16 milhões de judeus no mundo inteiro. Esse retorno é complexo e difícil.

O Brasil é um país mais pacífico, então talvez não tenhamos dimensão do cenário, mas existe ainda um medo de que tudo possa acontecer outra vez? Sei que parece uma pergunta boba, mas é que o olhar de fora, de uma pessoa que jamais foi perseguida, é incapaz de compreender tamanha perseguição.
Infelizmente, sim. Olhando para alguns países como a Hungria e a Alemanha. O governo alemão está lutando contra o antissemitismo! É claro que pode acontecer. O que aconteceu nos Estados Unidos, de uma pessoa entrar numa sinagoga e matar judeus, era inimaginável em um contexto de liberdade como o americano. Contudo, está acontecendo. Na verdade, não podemos nunca dizer nunca. O espírito do totalitarismo, infelizmente, renasceu. E assim como Pokémon evoluiu para outras formas. É claro que, a diferença essencial é que hoje temos um Estado de Israel, onde mora a maioria dos judeus, um estado forte em termos militares, e isso de alguma maneira funciona como uma espécie de amortecedor. A realidade, porém, é que no Holocausto o ser humano já mostrou do que é capaz, e pode mostrar outra vez.

Existe algo que se possa fazer? Ou faz parte de uma contingência tão desgraçada que não há como controlar, prever, impedir?
Acho que aí são duas coisas. Primeiro, acredito como líder religioso que nós temos capacidade de divulgar, de informar, para que as pessoas entendam do que se trata o que aconteceu, a fim de evitar que aconteça outra vez. Por outro lado, é claro que existe um monte de filmes, livros, depoimentos sobre o Holocausto, mas também é estarrecedor quando alguém não sabe do assunto.

E há quem não saiba?
E muito! Foi divulgado nos Estados Unidos que existem jovens abaixo dos 30 anos que não fazem ideia do que foi o Holocausto. E estamos falando dos Estados Unidos, que tem filme sobre esse assunto de todo o tipo. Eu acredito que a educação é o principal, embora, claro, a Alemanha nazista tenha sido, talvez, a sociedade europeia mais sofisticada intelectualmente. Isso em arte, literatura, música… É meio contraditório, eu sei. Educação sozinha não resolve. Precisa de outra dimensão que passa pela ética, pelo comportamento, por entender a alteridade e o respeito de cada ser humano em sua diversidade.

É por isso que eu disse “contingência desgraçada”, embora eu nem tenha certeza se é o termo mais adequado.
É uma questão irracional, mas as pessoas também estimulam o ódio. Por exemplo, o atirador que entrou na sinagoga, na Califórnia. Ele se alimentou da ideia de que alguns grupos étnicos são mais importantes do que outros. É claro que muita gente passa pelo mesmo e não sai atirando nas pessoas, mas tem gente que sai. Há um trabalho a ser feito na sociedade, de difusão mesmo, para evitarmos com os extremismos.

Certamente. Por isso são dois pontos mesmo.
Agora, isso do irracional é difícil mesmo. Lembro-me de um filme sobre a Kristallnach [Noite dos Cristais], que foi o evento de 9 de novembro de 1938, quando quebraram estabelecimentos e residências dos judeus, na Alemanha. No filme, um alemão equivocadamente pisa na grama numa área em que isso é proibido, e ele acaba sendo repreendido por outro alemão, inclusive porque há uma placa dizendo que não pode. Essa cena paradoxal mostra com exatidão a questão: pisar na grama é proibido, mas matar judeus, tudo bem. Essa mentalidade esquizofrênica acontece com pessoas como imigrantes africanos na Europa ou com nordestinos em nosso próprio país, porque eles são considerados menos seres humanos do que os outros.

Ouvi de um rabino certa vez que os judeus são o povo da esperança… Mesmo olhando o mundo desse jeito, é possível ter esperança?
Absolutamente. Na verdade, o Hatikvá [Hino de Israel] chama esperança e o judeu acredita literalmente que o mundo vai melhorar, e isso depende de cada um de nós. Essa melhora vai acontecer logo. Ainda que estejamos esperando por 3.500 anos, acreditamos que é possível. Quando vemos um único ser humano mudando, acreditamos que a humanidade inteira pode mudar também.

 

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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