Fotografia e memória em Viva – A vida é uma festa

A fotografia é o elo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos em Viva – A vida é uma festa.

Neste hoje tão banal recurso – que inunda as redes sociais – pode morar tudo o que há de mais valioso para alguém.

Apaixonados, por exemplo, sabem o valor de uma foto. Em quantos filmes de guerra há soldados que revêm a foto da pessoa amada e encontram na imagem a força para vencer o horror da possibilidade de matar ou morrer.

Viva - A vida é uma festa
Viva – A vida é uma festa

Sabe mais o valor, porém, aqueles que viram partir para o mundo dos mortos alguém a quem se amou muito. Aquilo que deixaram pode ser valioso, em termos monetários, mas é quase impossível que ao menos uma foto não seja a herança mais preciosa deixada.

O Dia dos Mortos, celebração religiosa típica mexicana, que é pano de fundo da trama da Pixar, evidencia de forma muito sensível o que seríamos sem a fotografia. Exagero?

Talvez não.

A fotografia não é comprovadamente elo entre o mundo dos vivos e dos mortos, mas é simbolicamente. Como também é o elo entre passado e presente – e para os mais românticos, é até gatilho para a imaginação de um futuro. Apaixonados, mais uma vez, sabem.

Ainda que a saga do protagonista Miguel seja o seu sonho infantil de se tornar… – não vamos contar – … uma das belezas da narrativa não é infantil, tampouco fantasiosa, ainda que seja algo que pouco se valoriza hoje em dia: quem veio antes de nós, quer queiramos ou não, diz muito sobre nós, para confirmar ou negar. Com sorte, porém, será o guia mais seguro para uma vida de sentido.

Estão claros em Viva – a Vida é uma festa os valores de família, a importância da tradição, o respeito por quem já conquistou algo difícil para sua época, mesmo que hoje soe antiquado, e a importância, claro, de sonhar e lutar seus sonhos, sem contudo ignorar as consequências.

O desprezo pelo passado alimenta a arrogância que leva à solidão do mundo de aparências de hoje que, curiosamente, a fotografia-digital-virtual também representa.

Fotografia é memória e memória reconstrói e até determina quem somos. Fotografia é um baú estático de significados e que magicamente desperta intuições sobre caminhos possíveis.

Fotografia é portal para a memória social, que requer paciência e respeito para se conhecer o contexto histórico, mas também é patrimônio individual que não deve negar seus fatos, seus contextos e suas razões. É claro que é natural às vezes desejarmos rasgar uma foto ou, como no filme, esconder parte dela. Parece que assim determinada dor deixa de existir na lembrança. Fotografia e memória são gêmeas que se dão bem, mas podem vir a ter rusgas anos a fio…

Mesmo criança, Miguel conseguiu enxergar a importância de uma foto, para além de um objeto de decoração em um dia de ritual “ultrapassado”, como quase sempre compreendemos serem os rituais.

Ritual é comunicação. A repetição às vezes exaustiva tem o fim de continuar dando sentido a algo.

A nostalgia – que é sempre negativa – encontra no ato de recordar o desejo de reviver a experiência. Revemos fotografias porque desejamos trazer de volta aquele sentimento que foi especial.

O contrário também é cruelmente verdade. Algo de ruim que se viveu e foi registrado pode vir a se tornar indelevelmente especial. Neste ponto, a morte é mestre. Ressignifica absolutamente tudo.

No “altar” da família de Miguel, as fotos de seus antepassados são uma forma de serem lembrados, claro, e todos eles têm sua parte em quem Miguel é, mas essas fotos também são uma forma de vivenciar o sublime.

Aqui, é impossível não lembrar de Schiller em sua definição de sublime: “O objeto sublime nos faz, em primeiro lugar, sentir nossa dependência enquanto seres naturais […] Somos dependentes na medida em que algo fora de nós contém o fundamento pelo qual algo em nós se torna possível.”

Belíssimo!

De alguma forma, a fotografia representa a vida preservada, que desejamos que não mude, vida que temos medo que se esvaia como poeira ao vento. Vida é contingência em ação. Fotografia, ilusão de que nada vai mudar.

Na fotografia está preservada a emoção mais indescritível e intransferível. Por isso faz sentido o sorriso de Coco, a bisavó de Miguel, naquela cena.

Sim, aquela cena. Indescritível e intransferível.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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