Frédéric Martel: “Precisamos dar suporte ao Papa Francisco”

Frédéric Martel, um dos mais respeitados jornalistas do mundo, entra no Vaticano e por quatro anos vasculha os segredos mais bem escondidos de seus aposentos. Ou melhor, entra no armário do Vaticano. A homossexualidade de grande parte dos clérigos, contudo, não é mais segredo – e há muito tempo. A denúncia de Martel é outra: a hipocrisia e a rede de poder. Sucesso editorial em vários países, No armário do Vaticano está na lista dos mais vendidos, simultaneamente, em 20 países; e promete, claro, chocar muito. Com exclusividade para a FAUSTO, uma prévia desse intrincado sistema de luxúria, mentiras, crimes e abuso de poder.

Frédéric Martel, autor de No armário do Vaticano.

FAUSTO – Sua denúncia é a hipocrisia? E não a homossexualidade?
Frédéric Martel: Sim, o livro não é contra a homossexualidade; com certeza, não, uma vez que sou gay – e gay friendly. Não tenho problemas com o fato de muitos padres, bispos ou cardeais no Vaticano – assim como no Brasil – serem gays. Para mim, a questão é a premissa da vida dupla, da esquizofrenia e da hipocrisia do sistema.

O fato de você ser homossexual torna o livro mais consistente? Do contrário se tornaria, inclusive, uma arma contra os homossexuais?
Não, eu não acho que esse seja o foco, porque no livro é muito claro o fato de eu não ter nada contra homossexuais. Não exponho pessoas. O que é faço é tentar compreender o sistema, e com empatia – além da empatia das pessoas que se tornaram personagens. O que acontece é que esse livro não seria possível se tivesse sido escrito por alguém de dentro do Vaticano, italiano e heterossexual.

Por quê?
Se eu fosse italiano, porque ainda é um problema, na Itália, discutir esses assuntos. É um problema por causa da pressão, da imprensa. Se eu fosse do Vaticano, claro, implicaria perder o emprego. E se eu fosse hétero, eu não teria os códigos, a rede de contatos.

Crê que o Papa Francisco usará seu livro para realizar mudanças na estrutura da Igreja?
O Papa Francisco é peronista, jesuíta e tem 82 anos. Então, ele não precisa esperar o meu livro para saber o que fazer. Além do mais, ele não é muito progressista na questão da família e das relações sexuais. O que podemos entender disso? Não dá para esperar que ele vá fundo nesses assuntos. Entretanto, creio que o Papa já fez muito, principalmente através de mensagens, da mudança de cardeais, de parte do sistema. Provavelmente para você – e até para mim e para as pessoas LGBTI – não é o suficiente, além de parecer muito tarde. Só que em comparação com os dois Papas anteriores, isso já é muito. É verdade que o livro é difícil para o Vaticano, mas para efeitos de médio prazo será positivo tanto para o Vaticano quanto para os homossexuais. Você sabe que o Papa falou numa conversa privada – que se tornou pública – que leu o livro e disse que o livro é bom e que ele já sabia de tudo.

Sim, li sobre isso.
De qualquer forma, foi uma citação privada, não sei até onde é verdade. Mas não é importante que ele pense que o livro é bom, e sim que ele já sabia de tudo – o que também não é novidade. No fim, todos já sabiam de tudo. O que eles não queriam é que vazasse, queriam que fosse segredo.

O que acha do Papa Francisco?
Para mim, o Papa Francisco está indo na direção certa. Ele cometeu alguns erros, como, por exemplo, no Chile. Entretanto, ele é um Papa que assume quando erra e corrige a própria mentalidade. Eu não gostava dele no início, porque ele é jesuíta e na França lutamos contra os jesuítas [Sorri], mas quando você entende a luta e o oponente, você compreende mais. Mesmo no Brasil, com sua orientação de direita, especialmente a oriunda dos Estados Unidos, fundada pela extrema-direita, há bispos e padres que são contra ele e o atacam todo o tempo, tentando fazer com que ele deixe o seu posto. Penso que precisamos dar suporte ao Papa Francisco.

Quem financiou esse projeto? Foram quatro anos de pesquisa, muitas viagens, estadias, o seu próprio tempo como profissional…
Isso é muito mesmo, tem razão. A pesquisa custou muito dinheiro, além das mais de 80 pessoas trabalhando comigo em muitos países – inclusive, eu tinha uma pessoa no Brasil. Muitos deles são meus amigos, então não foram necessariamente pagos. Fui patrocinado pelo maior fundo de liberdade do Reino Unido e dos Estados Unidos, que é a Bloomsbury, a editora do Harry Potter. Na França, é a Robert Laffont, que é a segunda maior editora da França. E na Itália, a Feltrinelli, tão grande quanto. Espanha e América Latina, Roca/Penguin Random House.

Tratando das questões secundárias do livro, mas tão importantes quanto: quem financia a prostituição e paga os tratamentos de HIV?
Meu livro não é sobre escândalos. Eu poderia ter falado muito mais, porque existem muitos outros escândalos. A prostituição em Roma se dá também por causa dos muitos imigrantes – e muitos deles são muçulmanos, homens e mulheres. Tenho provas disso, tenho nomes; provas que reuni junto a prostitutas e policiais. Só que não sou juiz, não estou julgando todos eles. A única coisa importante para mim é se está dentro da Lei – não importa se na Itália, França ou Brasil. Ser homossexual não é ilegal. A prostituição pode ou não ser ilegal, depende do país. Ou seja, não estou julgando nem o padre nem a prostituta. Só quero contar a história e explicar como funciona. A prostituição tem diminuído, especialmente no mundo gay, isso devido a diversos aplicativos e à própria liberdade sexual – exceto em Roma.

Você já foi ameaçado por causa desse livro?
Pesquisei tudo em meu nome, nunca menti sobre isso. Todos sabiam quem eu era. Nunca menti sobre o fato de ser jornalista, nem de que sou gay. Ou seja, eles já me conheciam, até por causa de outros livros. Ao mesmo tempo, eles não sabiam, necessariamente, sobre o “coração” do livro. Trabalhei simultaneamente com o Brasil, a Polônia, os Estados Unidos, o Reino Unido, entre outros. Até o livro ser publicado, eles não sabiam o que eu estava fazendo, especificamente, até porque sou francês e no Vaticano eles vivem numa bolha. Se eu fosse um jornalista italiano, provavelmente seria muito mais difícil. Digamos que, em certa escala organizacional, eles se relacionavam comigo, se tornaram meus amigos, me chamavam para jantar e para viver com eles, dentro do Vaticano. Estive com eles suas férias, passei finais de semanas, conheci a parte australiana, fui a vários países. Foi, de alguma forma, fácil; e eu nunca me senti ameaçado por nenhum deles. Sempre foram muito amigáveis. Aliás, devo agradecer a um padre brasileiro que foi extremamente prestativo no processo desse livro, embora, infelizmente, o nome dele não possa ser revelado. Ou seja, tenho que agradecer especialmente ao Brasil por esse livro.

Seria tudo mais simples se não houvesse a imposição da castidade?
Fui católico até os 12 anos. Sou um jornalista, um pesquisador, um escritor. Eu queria escrever um bom livro, baseado somente em fatos. No livro, não existe nenhuma insinuação. Não o escrevi com uma agenda específica, com o objetivo de desafiar a Igreja. Eles podem usar ou não o meu livro para mudar as coisas. Não estou no comando, não quero falar para eles o que devem ou não fazer. Pessoalmente, claro que o celibato e a castidade são becos sem saída, uma vez que não é possível. Menos de 10% dos padres praticam. Além do mais, criam-se diversas desordens: sexuais, morais, caminhando para a esquizofrenia. Isso não é natural, não está nem na Bíblia, é baseado no preconceito da Idade Média. Acho que o melhor seria que os padres fossem casados. Aquilo que já existe, o sexo, seria de uma forma mais confiável.

Quais seriam as perdas, para esses homens, se se assumissem homossexuais? Tem a ver, de fato, com a “aceitação de Deus”?
Quando um padre se assume, é algo grande, e mal visto. Não inspira outros a dizerem a verdade. Essa não é só uma pergunta sobre homossexualidade. Hoje, há seis mil padres sendo acusados de abuso sexual, só nos Estados Unidos. Mais dois mil deles na Austrália, um mil na Irlanda, na Suíça, na Bélgica, na Alemanha, na França, no Chile, no Brasil. Ou seja, isso é uma tragédia! Existe misoginia, o que é inaceitável em 2019; além do esquema de encobertamento, o que cria muitos problemas.

Sim, com certeza.
Então, o debate não é sobre ser gay ou não ser gay, o debate é sobre autoridade, segredo, ser responsável diante da Justiça. Já critiquei o Papa Francisco – não o conheço pessoalmente –, mas acho que ele entende tudo isso – e foi por entender que ele disse aquilo sobre meu livro, que sabia de tudo. Mudar o sistema não é mudar apenas um problema, porque aí não seria tão eficiente. Mudando as regras, muda quem governa no colégio, o que altera os cardeais. Felizmente, quando eles têm 70 anos, eles desistem; aos 80, eles param de votar. Pensando que todos têm mais de 65, 70 anos, se esperarmos mais cinco ou dez anos, todo o colégio de cardeais estará mudado. Esse Papa ou o próximo terá a maior parte do trabalho dessa reforma. E essa reforma pode ser sobre o clérigo, mas pode ser sobre a obediência, uma vez que um dos maiores problemas não é a castidade, mas a obediência. Eles precisam obedecer. O seminarista precisa obedecer ao padre, o padre ao bispo, o bispo ao arcebispo, o arcebispo ao cardeal. É um sistema de controle da informação e de abuso de poder. Grandes mudanças levam tempo, provavelmente anos.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.