Gabriel Ferreira: “Hoje, até nossas angústias podem ser falsificadas”

O mundo contemporâneo está se mostrando implacável em nos fazer adoecer. Por isso mesmo é crucial compreender as causas e identificar os responsáveis pela falta de sentido, especialmente quando dispomos de tantas facilidades. Além disso, é no mínimo intrigante começar a questionar a razão por trás de nossa incapacidade de pensar de forma significativa. O conceito “atrofia da razão” vem sendo esmiuçado por nosso convidado da vez, Gabriel Ferreira, filósofo doutor em Filosofia, especializado, sobretudo, na obra de Kierkegaard, e é um convite e tanto para mudar essa realidade. Nesta conversa com a FAUSTO, Ferreira aborda a contemporaneidade e a complexa relação entre ciência e cultura, fundamentando seus argumentos na filosofia da cultura. Na tradição de nossa abordagem, uma entrevista genuinamente fáustica.

Gabriel Ferreira, filósofo.

FAUSTO – A cultura contemporânea tem como característica o falso apaziguamento de nossas angústias, sobretudo devida à tecnologia?
Gabriel Ferreira: Podemos começar dizendo que, talvez, hoje, até nossas angústias podem ser falsificadas.

É uma possibilidade e tanto, em termos de reflexão…
Pois é, mas antes de chegarmos a isso, um bom jeito de ver as coisas – ressalva feita ao fato de que as tecnologias são acessórias nessa tarefa – é que o que está em jogo na cultura contemporânea é, em grande parte, o fenômeno que, na minha opinião, foi melhor descrito pelo filósofo e sociólogo alemão Georg Simmel, sob o nome de “tragédia da cultura”.

O que seria a “tragédia da cultura”?
As demandas da vida espiritual humana se desdobram em produções que chamamos de cultura. De leis a pontes, de sistemas de esgoto a obras de arte, passando inclusive pelo conhecimento científico, todos são exemplos das produções humanas em busca de sentido para além da nossa vida biológica.

Certo…
Assim, Simmel chama tais produtos de “cultura objetiva”, isto é, nossas construções culturais históricas que estão aí, disponíveis, para que nos apropriemos delas para, de acordo com a sua boa expressão, apaziguar nosso desejo. Tal alimentação é o que Simmel chama de “cultura subjetiva”. O que ocorre, contudo, e que Simmel chama de trágico, é que: seja pelo volume e quantidade de produções na modernidade, seja pelas formas como as abordamos, os componentes da cultura objetiva dificilmente servem ao propósito de alimentar a cultura subjetiva. Segundo ele – e concordo em parte –, tal fenômeno é típico de culturas em estado de maturidade. Mas o fato é que não estamos realmente apaziguando nossas demandas anímicas mais essenciais com aquilo que produzimos.

O que estamos fazendo?
Estamos sendo soterrados por uma massa amorfa de “produções”, “conteúdos” e “informações” que servem, no máximo, como divertimento no sentido de Pascal, isto é, servem para nos desviar.

A ciência atua em lugares de privilégio?
Em dependendo de como entendemos esse “privilégio”, sim. E em um sentido, mais especificamente, esse privilégio é notável.

Qual sentido?
Os últimos 200 anos viram acontecer um fenômeno ligado à “atrofia da razão” com uma consequência no mínimo indesejável. Com o avanço das ciências naturais, assim como pela disponibilidade e pervasividade dos seus derivativos tecnológicos, nossa visão de mundo, essencialmente multifacetada, foi sendo substituída pelo modelo de mundo construído por elas. Há, no entanto, dois efeitos sensíveis.

Quais seriam?
O primeiro deles é que, não obstante recorramos às ciências para nos fornecer aquilo que pensamos ser a descrição mais precisa sobre a realidade, não é nessa descrição que vivemos e nos movemos. Como apontou o filósofo americano Wilfrid Sellars, embora sejamos informados pela imagem científica que a realidade é constituída de formas estranhas de energia e partículas subatômicas, ninguém vive aí. Habitamos numa imagem construída por pessoas, objetos, sentimentos, decisões, valores que, por sua vez, não têm lugar na descrição da ciência.

E qual seria o segundo?
O segundo, é que acarreta um efeito que é a constatação da insuficiência da descrição da ciência para a formação de nossa visão de mundo. O problema é que, de fato, as ciências naturais e seus produtos passaram de um componente da cultura humana entre outros para a posição de medida e crivo da própria cultura, estando para além das outras formas e funcionando como juíza suprema tanto da nossa racionalidade – causando o que chamo de atrofia da razão – quanto das nossas outras visões de mundo. Prova disso é a nossa ânsia de que nossos problemas mais profundos encontrem, em algum momento, sua solução científica. Portanto, as ciências ocupam sim certo lugar de privilégio e isso deve ser considerado com certa dose de crítica.

Dose de crítica por que a ciência nos manipula ou porque nos engana?
A ciência tem tanta responsabilidade em nos manipular e nos enganar quanto o teria um filme de ficção que enganasse seu diretor. Nos dois casos, a culpa pelo engano é de quem é enganado. Nós mesmos inflacionamos o poder e o lugar ocupado pelas ciências nas nossas vidas e na nossa sociedade, para depois nos frustrarmos com o fato de que elas não nos satisfazem. Digo isso porque nesse ponto me afasto de um certo tipo de crítica às ciências, muito comum e certas matrizes filosóficas contemporâneas. As ciências são um produto da cultura tão essencial quanto a música, as leis e as pontes. O problema reside em depositar nelas falsas expectativas e depois destilar certo ressentimento que é sinal de que não se entendeu a coisa.

Para um público geral, ou de conhecimento conceitual mínimo, o que são ciências naturais?
Chamamos de ciências naturais aquelas áreas do conhecimento humano que se dedicam a compreender os fenômenos do mundo natural, como a física, a química e a biologia. Quanto aos seus desenvolvimentos históricos, elas tiveram origem no ocidente, com diversos graus de sistematização, com os primeiros filósofos gregos, passando por um salto de qualidade com Aristóteles e por um desenvolvimento muito robusto a partir do século XVI. Mais próximo a nós, os progressos dos séculos XVIII e XIX serviram para cristalizar uma certa autonomia dessas áreas, tanto entre si quanto de uma visão mais clássica que tinha na filosofia o fundamento para tais saberes.

O que é atrofia da razão?
Para se entender o fenômeno que tenho chamado de “atrofia da razão”, é preciso fazer uma breve reconstrução histórica sobre a nossa ideia de racionalidade em si mesma e, prometo, vou tentar fazê-lo sem chatear seus leitores.

Vamos lá então!
Em linhas gerais, é possível dizer que o primeiro grande pensador a se debruçar de maneira mais sistemática sobre nossa faculdade racional, suas formas de funcionamento e seus limites, foi Aristóteles. E em todas as vezes nas quais trata de tal faculdade, Aristóteles toma como óbvio que ela se manifesta de múltiplas formas, de acordo com o objeto ao qual ela se inclina. O que digo fica bem claro no modo como o filósofo expressa isso no início da sua Ética Nicomaqueia. Aristóteles lembra que, no que diz respeito às questões da vida moral, seria tolice esperar por demonstrações dedutivas a partir de axiomas tal como fazemos com a geometria, por exemplo. Em problemas morais, só se pode esperar justificativas com certo grau de incerteza e variabilidade, mas disso não se segue, de modo algum, que questões éticas estão para além da razão ou, ainda, que a razão deve se eximir desses debates. Pelo contrário, significa que a razão humana possui diferentes potências.

Certo…
Então, se olharmos agora como pensamos modernamente tanto a racionalidade quanto regiões de problemas como a ética, a política e a arte, por exemplo, temos geralmente um outro quadro: por uma série de desdobramentos filosóficos que estou deliberadamente deixando de lado aqui, nós fomos identificando nossa capacidade racional com o modelo de racionalidade das ciências naturais. Consequência disso é que não somente problemas daqueles tipos são vistos agora como não passíveis de tratamento racional – valores, por exemplo, são uma questão de gosto ou manifestação das minhas emoções, para me referir ao modo como o filósofo Alasdair MacIntyre definiu a coisa –, como a própria racionalidade foi deflacionada. Assim, como um músculo que não utilizamos, as diferentes potências da racionalidade foram sendo atrofiadas, de modo que ou todos os problemas morais, políticos, sociais, existenciais etc. devem poder ser reconduzidos ao tratamento dado pelas ciências naturais, ou então devem ser alocados num domínio extra-racional. E, como se pode facilmente ver, com isso perdemos em várias frentes.

Poderia mencionar algumas dessas frentes perdidas?
Pense em todas as dimensões da vida humana nas quais julgamos que a racionalidade não desempenha nenhum papel ou pode ajudar muito pouco. Progressivamente expulsamos a razão da moralidade, da estética e da política para “magicamente” nos encontrarmos em uma situação paradoxal na qual desejamos – ou mesmo precisamos – de soluções inter-subjetivas. Uma das grandes descobertas da filosofia grega foi exatamente a percepção de que há em nós uma faculdade que nos torna capazes de pedir e dar razões de uma forma fundamentalmente pública, isto é, pela razão somos capazes de sairmos de um isolamento e de um encapsulamento e de ir para além das nossas meras percepções. Ao atrofiarmos a razão, é disso que estamos abrindo mão.

Numa reflexão sobre “atrofia da razão” cabe pensar o lugar do ceticismo?
A pergunta é excelente porque permite clarificar algumas coisas bem importantes. Entendido corretamente, o ceticismo é a posição epistêmica que consiste em suspender o juízo sobre a verdade ou falsidade de uma proposição em razão de sua permanente possibilidade de ser novamente submetida à escrutínio e investigação (skepsis, em grego). O que a imensa maioria da história da filosofia viu como problema na posição cética, no entanto, é que, de fato, é possível conhecer coisas com razoável certeza. De tautologias (“todo ‘todo’ é maior do que uma de suas partes”) a verdades matemáticas (“a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo é igual a dois retos na geometria euclidiana”), há diversas amostras de que podemos nos abrigar da dúvida cética. A questão é como fazê-lo. Mas o ceticismo tem também uma função profilática: ele serve de lembrete contra o excesso de confiança naquilo que julgamos conhecer. E é provavelmente por conta dessa função que uma discussão sobre a nossa racionalidade nos faz lembrar da importância do ceticismo.

Quando pensei na pergunta, foi nesse sentido mesmo, o “profilático”…
Temos duas coisas a lembrar. A primeira delas é que, se o meu diagnóstico sobre a atrofia da razão estiver correto, precisamos resgatar um sentido mais amplo de razão e não a limitar ainda mais. O ceticismo desempenharia um papel tão somente enquanto nos mostra que certas formas de racionalidade são limitadas frente a determinados objetos, mas tais formas não são a totalidade da razão. A segunda, que geralmente é esquecida quando se procura usar o ceticismo como arma contra às investidas da racionalidade, é que a própria atitude cética é uma atividade racional. Não é possível investigar, sopesar justificativas ou apontar limites sem que esteja em marcha nossa faculdade racional. Essa lição já aprendemos com Kant: é só a própria razão que pode ser acusadora e juíza de si mesma.

E quais poderiam ser sentidos mais amplos? Ou como deveríamos buscá-lo?
O que estou chamando de sentido mais amplo nada mais é do que o reconhecimento das diferentes formas de ser racional, para além do certo paradigma fundamentalmente demonstrativo. Para retomar algo que mencionei acima, ser racional significa ser capaz de pedir por razões e ser capaz de fornecê-las. É tomar parte naquilo que um filósofo americano contemporâneo, Robert Brandom, chama de “jogo de dar e oferecer razões”, mas que o filósofo alemão Ernst Cassirer já havia identificado como a grande contribuição de Sócrates. Isso pode parecer trivial, mas está longe de sê-lo. Isso porque tal concepção mais ampla de racionalidade inclui justamente certos traços que, por conta da nossa quase identificação contemporânea entre “racional” e “científico” – com uma concepção de ciência igualmente muito infantil –, geralmente deixamos de fora, como por exemplo, a incerteza, a contextualização, o sopesamento, a razoabilidade etc. Note-se que há exemplos nos quais identificamos que está em jogo certa razoabilidade, ainda que os produtos de tais atividades não sejam absolutamente indubitáveis, como por exemplo na argumentação jurídica – a presença desse aspecto da racionalidade no Direito já foi amplamente tratada por Hart – ou, ainda, no raciocínio clínico médico. Tanto em um quanto em outro, as conclusões são apenas prováveis, potencialmente reversíveis e contextuais, mas não seria correto dizer que, por conta disso, são irracionais. Quanto a como buscar esse tipo de compreensão, a coisa fica mais complicada porque, como disse antes, é um traço peculiar da nossa cultura atual, mas já creio ser um passo enorme a identificação do problema.

Quais são as “produções humanas em busca de sentido” que são mais “saudáveis”? Ou o próprio termo “saudável” é uma prova da atrofia da razão?
Penso que enquanto as produções humanas consigam cumprir o papel de satisfazer os diversos tipos das nossas demandas mais sofisticadas, para além da mera vida biológica, elas seguem sendo saudáveis. Talvez passem a ser nocivas à medida em que, na dinâmica exposta por Simmel à qual me referi antes, tais produções passam a ter uma vida autônoma que subjuga precisamente as nossas exigências de sentido mais fundamentais que lhes deram origem. E isso vale para as ciências assim como para a arquitetura, por exemplo.

Estou pensando ainda no começo da nossa conversa… Qual seria um tipo de angústia falsificada? Uma evidentíssima?
Quando substituímos angústias espirituais por quaisquer das bobagens contemporâneas, estamos na falsidade. Qualquer pergunta genuína sobre a existência de Deus ou pelo sentido existencial está anos-luz à frente de qualquer desespero de ordem política ou social.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.