Isabelle Anchieta: “A busca da felicidade é a busca pelo reconhecimento”

O que é ser mulher? Com currículo de fôlego, Isabelle Anchieta embarcou numa pesquisa de mais de oito anos em busca dessa resposta. Entre livros, xilogravuras, pinturas, esculturas e fotografias encontrou ao longo do tempo bruxas, rainhas, plebeias, donas de casa, empreendedoras e, claro, nós, que podemos ser todas ao mesmo tempo. Doutora em Sociologia pela USP, e mestre em Comunicação Social, Isabelle já ganhou prêmio internacional como Jovem Socióloga pela Isa/Unesco, entre outros; e alguns de seus artigos são adotados em faculdades de comunicação social de prestigiadas instituições como a Universidade de Coimbra, só para citar uma. Então, o que é ser mulher? Engana-se quem pensa que existe uma única e simples resposta. A seguir, apenas mais uma prova do campo minado – porém fértil e deslumbrante! – que se tornou o assunto em nossos dias. Exclusivo para a FAUSTO.

Isabelle Anchieta
Entrevista com Isabelle Anchieta. Foto: Peter Lindbergh.

FAUSTO – Emancipação significa felicidade?
Isabelle Anchieta: [Sorri] Essa foi a grande frustração da Modernidade. Foi até uma frustração minha.

Como assim?
Quando comecei a pesquisar e analisar a história da mulher ao longo do tempo – isso desde as bruxas, que eram aparentemente perseguidas, mas que me surpreenderam porque revertiam as situações em seu favor, tinham margens de negociação interessantíssimas, e se assumiam bruxas, inclusive, para terem poder nas comunidades –, fui desmistificando uma série de lugares-comuns. Quando cheguei na Modernidade, pensei: “vai ser agora, vai ser agora”.

O que seria “agora“?
Por exemplo, que as mulheres assumiriam a própria sexualidade.

[Dá risada] E não foi nada disso…
Minha primeira grande constatação: nada foi tão repressivo assim e nada foi tão livre assim. Quando chegamos nos anos 1960, com sua promessa de liberdade para as mulheres, percebi que essa felicidade não veio. Por isso creio que essa é a grande frustração burguesa. Porque a felicidade depende de uma série de componentes, e não só da liberdade.

Quais outros componentes?
A busca da felicidade é a busca pelo reconhecimento. Percebi que desde o principio e até agora, as mulheres só estavam buscando uma coisa: ver sua própria face a partir de sua relação com os outros. Nossa imagem é nebulosa porque não depende apenas de nós mesmas, não depende do espelho. Depende, sim, de uma série de relações. Por isso a felicidade é tão delicada, porque o outro nunca está sob o nosso domínio, muito menos os afetos.

O que a emancipação jamais poderá comprar?
A felicidade mesmo. A emancipação não dá conta de atingi-la completamente porque sempre vamos estar em relações de dependência. E aqui mora um ponto interessante: muitas vezes pode ser na relação de dependência que está a felicidade e a verdadeira emancipação. O que é emancipação? O que é liberdade?

O que são ambos?
São as margens de poder que o outro nos dá o tempo todo. Para vivermos nossa vida, precisamos da autorização alheia. É bobagem dizer que não.

Sororidade é possível em que medida? Uma vez que mulheres são competitivas por natureza.
Não sei se por natureza ou por treinamento cultural. Pierre Bourdier comenta o seguinte: os homens são treinados desde criança a esportes coletivos, e no esporte coletivo tem isso de ceder, de precisar do outro para conseguir determinado resultado. Já as mulheres, elas foram treinadas em esportes extremamente competitivos e individuais. Os próprios concursos de beleza provam isso. A beleza tem um lado que é bacana, porque é lúdica, e creio que a beleza é necessária, mas por outro lado coloca as mulheres umas contra as outras. Só existe espaço para uma mulher ser a mais bonita. Isso tem que ser repensado mesmo. É preciso que haja um treinamento cultural sobre essa solidariedade. E creio que isso começa na infância. Se o feminismo tem algo de positivo, é isso.

Acredita mesmo ser possível?
Não sei se é possível. Porque às vezes penso se as mulheres não estão errando, de certa forma, em cometer o mesmo erro só que pelo avesso. Falando de forma mais clara: tenho muito receio desses grupos identitários, dessa história de lugar de fala. Temos que buscar mais a empatia do que o lugar de fala. A empatia é mais ampla do que você, por exemplo, se fechar em determinados grupos. Tenho que admirá-la por sua trajetória, pelo que você é, independentemente de gênero, raça, status social.

Creio nisso também.
Os estudos das primeiras feministas foram para tentar desmistificar uma ideia natural de mulher. O lugar da mulher é uma construção cultural. Então, se todo o esforço dessas feministas foi para desmistificar o eterno feminino, me parece uma contradição algumas feministas de hoje quererem reforçar uma ideia de mulher.

Há uma frase que circula bastante na internet: lugar de mulher é onde ela quiser. Ou seja, se eu quiser abrir mão do meu trabalho para cuidar do meu marido e dos meus filhos, tudo bem, posso fazer isso. Tomemos o exemplo da Megan Markle, que foi muito criticada porque largou “tudo” para se casar. Afinal, mulher pode mesmo ser o que ela quiser?
É muito autoritário alguém determinar o que pode ou não pode. A Modernidade nos deu – se é que nos deu mesmo alguma coisa – a possibilidade de termos um projeto biográfico. Ou seja, fomos saindo cada vez mais de relações grupais para nos entendermos como indivíduos, ainda que estejamos ainda meio perdidos. Podermos construir nossa trajetória é muito bonito, muito forte e muito humano.

Sim, compreendo dessa forma também. Isso sim me soa como liberdade.
E vale para qualquer pessoa, não só para a mulher. “Poder ser” tem a ver com mérito, com trajetória, tem a ver com o indivíduo mais do que com a “história da mulher”. E isso é legal porque desamarra a mulher de todos os lugares preestabelecidos, inclusive dos lugares idealizados pelo feminismo.

Onde foi parar a espontaneidade? A exigência de tantos direitos tornou-nos menos capazes de perceber ao redor?
Há dois lados para se analisar. Por um lado, a crescente politização da sociedade e as relações que ficaram muito tensionadas por ideologias, o que acabou nos tornando muito inquisitórios. Por outro lado, há algo positivo também. O feminismo, por exemplo, está dentro dessa corrente de politização, e é um movimento de consciência social muito drástico. Talvez ainda imaturo, mas bastante interessante porque antes disso era apatia e indiferença. Por mais que eu mesma seja contra os discursos radicalizados e autoritários que o feminismo ocupou, creio também ser um chamado para uma discussão que é muito importante.

O que acha que está faltando nessa discussão?
Recuperar os pontos em comum, sair das marcações muito autoritárias.

Acredita que recuperaremos esses pontos em comum? Que é apenas uma fase?
Creio. E essa fase é necessária.

Existe uma forma saudável de lidar com os afetos ou relacionamentos são constantes batalhas?
Sim, há. E é tão mais simples. Talvez eu esteja analisando de uma perspectiva muito pessoal… O que acontece é que inventaram tantas regras, tantos manuais. Desde as revistas femininas com suas matérias intituladas “10 maneiras de agradar seu homem” e mais 10 isso, 10 aquilo, que ficou a impressão de que a vida das mulheres é tão mediada por estereótipos, por regras, por condutas, e no fim é exatamente o contrário.

Sim, por isso pensei sobre a espontaneidade…
Colocamos muita coisa entre nós. Costumo dizer que bastam cinco minutos de conversa para quebrar um estereótipo. As pessoas julgam muito por coisas pequenas, coisas que têm a ver com os ressentimentos delas mesmas, inclusive.

Temos que temer muito mais o ressentimento que o machismo?
[Sorri] A sociedade está mesmo muito movida por ressentimento. É perfeito seu argumento. Ressentimento de todos os lados, inclusive das mulheres. O feminismo também tem um lado de ressentimento, não só com os homens, mas um ressentimento histórico, algo que estamos tentando expurgar. Quando comecei a analisar a história da mulher, fiquei impressionada com o poder que as mulheres sempre tiveram de construir sua imagem, de negociar, de inverter as coisas a seu favor. É evidente que é um jogo. Nos homens, mais do que misoginia, vi uma marginalidade atrativa. Os homens temiam essas mulheres, tinham fascínio por elas. Então, é muito mais complexo isso que pensamos ser ódio puro e simples. Até porque, no fim das contas, ressentimento é um tipo de atração. Oscar Wilde tem uma frase que representa bem isso: “sempre destruímos aquilo que mais amamos”. Temos necessidade de destruir aquilo que não sabemos como lidar, porque nos ameaça e nos tira totalmente da racionalidade.

Quantas vezes você já teve que pedir desculpas por ser quem você é?
Houve uma época em que tentei me esconder. Cheguei a escurecer os cabelos, usar óculos ainda que eu não precisasse. Fala-se que a academia é o lugar da quebra dos preconceitos, lugar da crítica, da reflexão, mas a academia tem seus próprios preconceitos. Participei de concursos com codinomes.

Quando isso mudou?
O “click” veio no doutoramento, que fiz como uma persona que simbolicamente eu imaginei que eles aceitariam. Participaram cinco doutores da minha banca, e eu não conhecia nenhum deles. Houve um embate forte entre os doutores sobre se eu daria conta de fazer aquela pesquisa. Saí de lá absolutamente derrotada, mas decidi ir para a guerra. Eu sabia quem eu era, sabia o que eu podia me tornar. Sabia, inclusive, dos preconceitos que eu podia enfrentar. E, curioso, quem mais me agrediu foi uma mulher, e ligada ao feminismo.

Sei bem como é.
Mas eu consegui me reconciliar comigo, me reconciliar com a academia. Antes de defender minha tese, eu sabia que para ter uma boa defesa eu precisava de reconhecimento no campo da sociologia, porque um dos ataques que me fizeram era porque eu vinha da comunicação. Só que eu já estava há quatro anos pesquisando, mesmo antes de entrar. Tanto que o meu doutoramento durou oito anos. Pesquisei quatro anos antes e depois viajei para fazer pesquisas em bibliotecas mundo afora. Foi uma trajetória muito longa. E consegui entregar o que eles falaram que eu não conseguiria. Foram 800 páginas! E justamente por precisar desse reconhecimento é que tentei concursos. Foi então que ganhei um concurso pela Associação Internacional de Sociologia. Fui escolhida como a socióloga brasileira revelação e fui para o Japão receber um prêmio da Unesco.

Não é um crime que praticamos contra nós mesmas ter que provar alguma coisa para conseguir ficar em determinado lugar?
Sabe, temos mesmo é que agradecer. Acho que é bom. Foi isso que descobri, que aquilo que eu estava tentando esconder na verdade provoca as pessoas. E eu espero provocar muito mais. Quero sempre ultrapassar os estereótipos pelos quais me compreendem. Hoje, acho que foi bom que despertaram o leão em mim, do contrário eu não teria conseguido.

É que a tendência é correr para o vitimismo, ainda que não seja o vitimismo escancarado, porque há vitimismos mais sutis. É difícil não recorrer às narrativas que já conhecemos e que nos confortam de alguma forma.
O vitimismo precisa de doação. Quando você não é vítima e decide ir para a guerra, você vai disposta a vencer e não aceita nada de ninguém. Pelo contrário. Você vai para cima, quer arrancar aquilo. E é muito bom arrancar algo da vida e quebrar os estereótipos, nunca pedindo “por favor”, mas arrombando a porta mesmo, sem levantar bandeira, mas simplesmente dando conta. “Estão achando que não damos conta? Estão achando que não vamos ganhar o mesmo salário?” Esse tipo de provocação é muito mais interessante do que o lugar da vítima.

Contar com algo é diferente de precisar de algo.
Não preciso que abram a porta do carro, ainda que eu ache o cavalheirismo maravilhoso. Ao contrário do que parte das pessoas pensam, historicamente o cavalheirismo foi um dos primeiros movimentos das mulheres educando os homem a como tratá-las. Foi um movimento que começou com Leonor da Aquitânia, na Idade Média. Ela, de alguma forma, ensinou práticas de boa convivência e do bom comportamento.

A solidão é uma consequência inescapável de um trabalho de sucesso?
Até gosto da solidão. Para mim, nunca foi drama. E sempre acreditei que pessoas polêmicas, que conquistaram seus lugares, de alguma forma elas têm de se aliar a outras poucas pessoas, possivelmente tão interessantes quanto. No fim das contas, é um tipo de solidão bastante interessante.

O que é ter coragem?
É se desvencilhar um pouco de estereotipias. É tentar construir um lugar que, apesar de difícil, porque temos de construí-lo aos poucos, será o nosso lugar. E esse lugar depende, sim, de encararmos algumas brigas. A solidão é importante até para encontrarmos nossa própria sombra. Não creio que seja nossa imagem que temos que encontrar, porque nunca a encontraremos de forma definida. E talvez por isso mesmo as pessoas tentam se representar tanto e o tempo todo, se fotografar… Temos uma necessidade incansável de tentar dar conta de um rastro de nós mesmos.

O que pode aliviar essa busca?
Encontrar a própria paixão, porque paixão é o que nos move. Existe alguma coisa em nossa vida que se repete e temos que descobrir o que é isso. Uma vez escutei alguém falando que as pessoas podem mudar tudo, mas elas nunca vão mudar uma paixão. Para descobrir a própria paixão, sim, é preciso coragem.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.