James Alison: “Homossexualidade é estigma até o momento em que a aceitamos”

Padre homossexual? Nenhuma novidade. Padre assumidamente homossexual e diligente em seu sacerdócio? Poucos. Um deles é o inglês James Alison, formado em Teologia pela Universidade de Oxford e doutor pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte. Autor de Fé Além do Ressentimento – Fragmentos católicos em voz gay, entre outros, tem seus livros traduzidos em vários países, e em São Paulo fundou o Grupo de Ação Pastoral da Diversidade. Com exclusividade para a FAUSTO, Alison conversa sobre rejeição, estigma e promiscuidade; além, claro, sobre o olhar de Deus para os que são como são – e não deveriam ser diferentes.

James Alison
Padre católico James Alison, autor de Fé Além do Ressentimento – Fragmentos católicos em voz gay.

FAUSTO – Em sua trajetória, qual sensação teologia nenhuma foi capaz de explicar?
James Alison: Teologia é sempre uma reflexão posterior sobre experiências que somente conseguem ter o seu sentido a partir dela. Enquanto está acontecendo, uma experiência não tem nenhum sentido. E não é papel da teologia explicar experiências – ou mesmo sensações. Sensações eu tenho o tempo todo. E a fé não é uma sensação, é uma disposição para seguir em frente na ausência de sensações. Então, a teologia não tem de dar conta de sensações, mas tem de oferecer uma visão capaz de fazer com que seja possível seguir caminhando.

Entende mais sobre Deus aquele que sente na pele a rejeição?
Tomara que sim. Porque é onde Deus, por opção própria, tem se identificado. Agora, temos que tomar muito cuidado porque há pessoas que correm atrás da vitimização como se estivesse correndo atrás de Deus. Creio que Deus está presente na superação da sensação de vítima, não no fato de ser vítima.

O maior desejo do ser humano é pertencer a alguém?
Querer aprovação é uma das coisas mais fortes que nos definem. “Quem eu sou?” Aquele que nos olha como se soubesse quem somos já nos causa grande satisfação. E, de fato, grande parte da fé cristã consiste em recusar a glória que vem dos homens. Ou seja, sabe-se que aquilo que mais queremos é a aprovação. Conseguir não agarrá-la antes do tempo é muito importante. A definição que Santo Agostinho dá do céu é ser reconhecido com claro louvor.

A homossexualidade enquanto um estigma e mais fácil de lidar do que o estigma da promiscuidade?
Promiscuidade é uma palavra tão inútil. Porque a definição de promiscuidade é: aquele que tem mais sexo do que eu. Basicamente é isso. Quem é promíscuo? Como eu não sou, só pode ser aquele que faz mais sexo do que eu. [Dá risada]

[Dá risada] Muito bom isso.
Homossexualidade é estigma até o momento em que a aceitamos. Uma vez que a aceitamos, o problema está nos outros e não em nós. Também acredito que grande parte da dificuldade – para aqueles que ainda não se assumiram – é imaginar que a reação das pessoas será muito pior do que de fato será. Em alguns casos até será, mas a maior parte das pessoas é amigável – ou absolutamente indiferente. Afinal de contas, não somos tão importantes. [Sorri] Existe o medo de uma possível rejeição, mas uma vez que se assume… Claro, há momentos difíceis, e algumas pessoas são cruelmente tratadas, como nos casos de ataques homofóbicos. Contudo, estigma enquanto tal, não. Espero que não seja unicamente minha experiência, mas aquilo que começa como estigma acaba como privilégio. É muito divertido ser gay.

Percebo que esse estigma para o homossexual religioso é muito doloroso. Como se fosse um estigma embutido em outro. A questão não é apenas ser gay, é ser alguém em que não se pode confiar moralmente.
Você conhece homossexuais. Sabe que existem de todo o tipo, e parte do tempo ninguém se dá conta. Normalmente, o homem heterossexual não se dá conta e tampouco se preocupa. Por que o heterossexual se preocuparia com um gay? Não é sem razão que os grandes perseguidores dos homossexuais terminam “viadézimos”.

Óbvio que essa mistura de ideias não faz sentido, mas creio que ela existe…
Quando se é menino, as palavras “gay” e “viado” aparecem no vocabulário bem antes da puberdade. As pessoas usam como insulto bem antes de os próprios meninos terem ideia de quem são. “Viado” quer dizer “não é como nós”. Certa vez ouvi confissões numa zona rural. E numa delas um homem contou-me que fizera sexo com animais. Sexo com quase todos os quadrupedes que havia, menos os selvagens. Onça não.

Onça é muito brava. [Dá risada]
[Dá risada] Muito brava… Sabe que ele dizia que não gostava? Daí eu perguntei: por que então faz?
“Ah, porque se eu não fizer vão me chamar de ‘viado'”. Ou seja, o sentido de “viado” naquele universo é: não é como nós. E, claro, a última coisa que queremos ser é “não um de nós”. E isso começa muito antes de fazermos associações sexo-emocionais.

Creio que sim. Por isso perguntei sobre isso de querer pertencer…
Sim! À parte as questões morais, trata-se de uma percepção de debilidade: não quero ser visto como fraco, não serei “macho”. Tomara que seja menos frequente agora. Até porque os meninos, hoje, estão se assumindo cada vez mais cedo.

Quantas vezes rezou a Deus questionando sua orientação?
Ufa… Antes de ter 18 anos e nenhuma vez depois. Foi durante o gap year, intervalo entre a escola secundária e a universidade, isso lá na Inglaterra. Pedi muito a Deus para me livrar. Eu tinha ido para a Colômbia, e seguia rezando para que, quem sabe, chegando à América Latina, onde todos os homens eram “machos”, eu encontraria a cura, essas coisas todas. Rezei muito. Era Semana Santa na Catedral Metropolitana de Cali. E indo ao trabalho, no ônibus – eu estava como estagiário numa companhia anglo-colombiana –, de repente foi como banho de alegria, de auto aceitação. Foi uma experiência muito forte. E foi uma resposta àquelas orações, exatamente o revés daquilo que eu tinha pedido. Lembro até da música que tocava no ônibus.

Era uma canção popular?
Não, uma canção eleitoral. Fazia parte da campanha do Turbay Ayala, que chegou a ser presidente. [Canta o jingle]

Imagina! Se houve algo na campanha dele semelhante à campanha do Bolsonaro? Que incrível seria! [Dá risada]
[Dá risada]

O que você ouviu de Deus que fez com que duvidasse de sua própria sanidade? “Será que é isso mesmo que Deus está me dizendo?”
Lembro de estar em um retiro, no Chile, em 1994, e eu tinha acabado de passar por uma experiência muito desagradável de perseguição, por parte de superiores religiosos, e eu refletia sobre a possibilidade de ir para os jesuítas, além de qual deveria ser a minha vocação. Numa quinta-feira à tarde, resolvi caminhar na “zona de pegação”, olhar a beleza masculina. Quando eu voltava para o retiro, pensei: “James, isso é sério! Não crê ser uma maneira inapropriada de estar levando a experiência do retiro?” Foi então quando ouvi uma voz que não era minha, e que era absolutamente distinta das projeções que normalmente sabemos sermos nós, e dizia: “Apascenta as minhas ovelhas.” Foi muito chocante.

Imagino…
Porque eu tinha tomado aquilo que eu estava fazendo como travesso e a voz me dizia outra coisa. Isso me tirou do meu próprio moralismo. “Apascenta as minhas ovelhas.” [Pausa] Estou tentando fazer isso desde então…

Em algum momento pensou abandonar o sacerdócio?
Passei um tempo não sabendo se era isso mesmo. Cheguei a oferecer ao Vaticano, há 30 anos, a anulação do meu sacerdócio. Eles não permitiram. Essa é uma questão bem resolvida para mim. Sei que sou sacerdote. Até porque quando tentei devolver o bilhete, eles não aceitaram. [Dá risada]

O que o seu Deus tem a dizer a todos os homossexuais?
Algo perfeitamente evidente: “Amo você por aquilo que você é. Agora vamos ver o que você pode vir a ser.” O Papa Francisco disse algo muito bonito a cerca de Juan Carlos Cruz, aquele que fora abusado pelo pároco Fernando Karadima: “Deus ama você do jeito que você é.” Ou seja, é sempre a partir disso que vem a liberdade e a capacidade de florescer.

Se Deus não existe para preencher os espaços vazios em nós para que Ele existe?
[Dá risada] Nossa… Sabe saco de papel amassado? Que por isso fica cheio de buracos? A ideia é encher esse saco para que não haja mais espaços vazios. A ideia dEle é nos estirar para que sejamos mais do que pensamos ser capazes de ser.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.