Joshua Roose: “Masculinidade ideológica visa colocar essa nova e potente masculinidade política no radar”

Masculinidade ideológica, já ouviu falar? O criador dessa categoria de análise é Joshua Roose, sociólogo político australiano, especialista em islamismo nos contextos ocidentais: político, legal e multicultural. Doutor pela Universidade de Melbourne, Roose foi professor visitante na Universidade de New York e é pesquisador visitante na Harvard Law School, além de professor no Instituto de Religião, Política e Sociedade da Universidade Católica Australiana. Também Secretário da Australian Sociological Association, faz parte do painel nacional de especialistas da Procuradoria-Geral no combate ao extremismo violento, entre outros cargos que o colocam no urgente debate com suas intrigantes pesquisas sobre política, religião e masculinidade. Simplesmente imperdível.

Masculinidade ideológica
Joshua Roose, autor de New Demagogues: Populism, Religion and Masculinity.

FAUSTO – O que é masculinidade ideológica?
Joshua Roose: Primeiro precisamos explicar o que é cada um, masculinidade e ideologia, separadamente.

Perfeito.
O ideológico é no sentido político. Trata-se sobre onde cada coisa deveria estar. É organizacional. Quanto à masculinidade, refiro-me, especificamente, à masculinidade hegemônica. Ou seja, aquela que diz sobre os homens que estão no topo da cadeia. Logo, homens que mandam em suas casas, que são provedores, e basicamente por isso suas mulheres são subordinadas a eles. Em resumo, falo de forma genérica. É neste recorte que nos últimos quatro, cinco anos pesquisas vem apontando que esses homens não vêm podendo ser mais homens, dentro de suas concepções de masculinidade, evidentemente. Eles passaram de homens com formação e emprego para homens à margem da economia, vivendo de trabalhos casuais.

E as mulheres?
As mulheres estão indo melhor. Estão migrando para profissões de “colarinho branco”. Assistindo a isso, homens que possuem o mesmo tipo de trabalho – ou seja, de “colarinho branco” – estão enfrentando desafios com essas mulheres, porque elas têm benefícios como licença maternidade ou vem podendo escolher trabalhar integralmente ou apenas meio período. Esses homens estão sendo “expulsos” da economia pelo marketing e pelo crescimento das mulheres. Contudo, não é só isso.

O que há mais?
Eles estão descobrindo que muitas esposas estão com sentimento nostálgico, o que leva a parecer que a supremacia masculina pode retornar. Além do mais, eles vêm odiando os homens que estão defendendo essa nova posição das mulheres, odiando da mesma forma que odeiam as próprias mulheres, em muitos aspectos. Houve muitas reações depois da eleição do Trump – e acredito que depois da eleição do seu presidente também. Na Austrália, o aumento na taxa de violência doméstica contra as mulheres foi para o espaço nos últimos cinco anos, e só está aumentando.

E esses homens passam a se movimentar também…
Está havendo uma movimentação sobre os direitos dos homens, e sendo dito que eles são vítimas da sociedade, e que não podem mais ser homens. Estamos estudando o surgimento dessas células e as formas como eles vêm se flagelando diariamente. As mulheres que não querem mais fazer sexo com eles, eles as culpam por isso. Do outro lado, eles estão odiando homens que continuam fazendo sexo. Tudo vira motivo de raiva.

Daí a importância de uma nova categoria de análise, para compreender tudo isso… Agora, tratando especificamente dessa categoria, qual é a melhor forma de compreender a masculinidade ideológica?
O conceito masculinidade ideológica preocupa-se, principalmente, com a dimensão política da masculinidade. Cada vez mais os homens estão se fundindo e baseando sua identidade política principalmente no fato de serem homens. Vemos a ascensão dos incels [celibatários involuntários], do Estado Islâmico, da extrema direita, e dos grupos de homens que enfatizam o retorno ao papel de provedor, à subordinação da mulher e assim por diante. O conceito de masculinidade ideológica visa colocar essa nova e muito potente masculinidade política no radar do governo e do público em geral e facilitar mais recursos para desafiar seu surgimento.

A essência de uma identidade é o vínculo social?
Passamos por algumas mudanças na História. Como criança, a sua essência praticamente tinha a ver com o grupo a que pertencia. Desenvolvemos palavras como xenofobia, medo de estranhos, porém nunca desenvolvemos uma palavra como xenofilia, que é o amor por estranhos.

Verdade.
Então, a sensação de pertencer é o que define a identidade. Agora, hoje temos diversas identidades e penso que de muitas maneiras isso se deve à internet e à facilidade de nos conectarmos com pessoas que nunca pensamos poder nos conectar. Como acadêmico, e levando em conta minha própria experiência, fui oficial do exército enquanto fazia meu doutorado e até quase concluir minha formação em Direito. Ou seja, são mundos muito diferentes, o que me colocava numa posição diferente da do professor ao lado, e por aí vai. São identidades muito distintas. Na cultura ocidental, identidade é algo celebrado, é uma característica levada muito em conta no jeito como lidamos com tudo. Em termos sociais, isso se torna problemático.

Por quê?
Porque a ideia de que todos têm direito a uma identidade, que isso é benefício, sem responsabilidades, torna a convivência em sociedade um real desafio. Todos reclamam de fazer parte de um Estado, sem necessariamente querer lidar com as responsabilidades de um Estado, que significa lidar com diferentes situações e taxas. Identidades corporativas não querem pagar taxas da mesma forma que nós. É um desafio. Além disso, há os casos extremos, os daqueles que não têm vida e trabalhos reais, mas conseguem se conectar com outras pessoas virtualmente, mundo afora, e por isso criam poucos vínculos reais, exercendo assim suas identidades praticamente no online, o que torna muito mais difícil “rastreá-los” para encontrá-los antes que ataquem alguém.

Os homens, de forma geral, estão passando por uma crise de pertencimento?
É uma ótima pergunta. Creio que alguns estão, mas depende do homem, evidentemente. Se se trata de um homem bem educado, classe média ou acima, numa posição de autoridade, diria que não. Se se refere a um homem que está passando por alguma crise financeira, por exemplo, possivelmente. Homens que tradicionalmente eram vistos como ganhadores, que teriam emprego para a vida toda e seriam provedores, agora foram “empurrados” para as margens. Claro, isso tem a ver com o que aprenderam sobre a própria hombridade, ou virilidade, ou até sobre sua identidade religiosa. Enfim, tem a ver com as narrativas que definem como eles se veem e sobre merecimento. O que quero dizer é que desde o nascimento, os homens se veem nessas narrativas poderosas, onde são cavaleiros e guerreiros, e as mulheres e as crianças como os que precisam de proteção. Para esses homens que estão à margem, são narrativas muito fortes de senso de pertencimento. A questão é que eles podem ir da estaca zero a heróis simplesmente por decidirem fazer parte de determinados grupos.

E esses homens à margem são mais fáceis de se tornarem extremistas?
A trajetória é essa. E por trajetória quero dizer não só posição social, mas a possibilidade de ascender ou não, ou de cair ainda mais ou não. A trajetória é primeiramente econômica, o que para os jovens determina se vão conseguir encontrar uma esposa.

Com certeza.
Na Austrália, estamos com esse problema, uma vez que esses jovens sem previsão de crescimento estão querendo casar, mas não encontram mulheres que queiram, porque elas estão considerando que esses homens não chegarão a lugar algum. Além, claro, do fato de que elas estão indo melhor do que eles no mercado de trabalho.

Que complicado…
Na Austrália, ou eles aceitam uma esposa independente ou entram nessa trajetória de declínio emocional, o que, por sua vez, pode levá-los a não se casarem ou a terem diversas esposas. Quando entramos no quesito emocional, começamos a entender por que esses homens entram nesses grupos. Se eles se sentem humilhados e envergonhados, eles entram porque esses grupos oferecem empoderamento e oferecem, principalmente, um lugar.

É natural que uma identidade seja ambivalente?
Cada vez mais. No passado – e volto apenas uma geração – se você fosse lésbica, você escondia, até por questão de sobrevivência. Você mantinha isso consigo ou, no máximo, dividiria com quem pudesse aceitar. Com a internet, você entra em grupos, ou – como costumamos falar na Austrália – você vira guerreira em seu próprio quarto e luta as suas batalhas. Nas últimas duas décadas, houve lutas e conquistas para os GLSBTQ. Isso se deu por uma organização online. Não existe mais a necessidade de viver numa caixa, você pode interagir e se conectar com outras pessoas. E, incrivelmente, todos estão dando um jeito de mostrar quem são.

Quais são as diferenças entre esses guerreiros de quarto e os extremistas? Tem a ver com eles serem marginalizados ou existe outro motivo?
Esses são diferentes daqueles que as organizações extremistas procuram. Então, vamos chamar os outros de “jihadistas de quarto”, que são jovens muito ativos, que servem como bons recrutadores. Ou seja, eles participam, sem necessariamente ir à batalha. Aqui, na Austrália, estamos recolhendo os passaportes daqueles que suspeitamos. Daí acaba que a única opção que eles têm é a de colocar uma bandeira no quarto e se tornarem ativistas virtuais. Já aconteceu, aqui, de alguns deles que tiveram seus passaportes confiscados atacarem policiais, antes de serem alvejados e mortos. Tivemos também ataques nos últimos anos cometidos, principalmente, por jovens que não podiam sair do país. Creio também que o fato de, como país, adorarmos lutar, acaba que por incentivá-los. Como exército ou esporte, depois da Bélgica somos o país que mais produz arma por pessoa. Recentemente veio à tona que o maior ataque a muçulmanos aconteceu aqui, na Austrália. Não fico completamente surpreso, uma vez que aqui existe essa masculinidade ideológica.

A religião funciona como um regulador de ambivalências?
Sim, sem dúvida. Embora eu acredite que exista uma diversidade de ideias nas religiões. Como reguladora, precisamos considerar o Antigo Testamento e sua crença em um Deus todo poderoso que não aceita descompromisso. Eu mesmo aprendi e compreendi isso muito novo. Dizem que nas escrituras sagradas – do islã, do catolicismo e assim diante – não há espaço para manobras. Tudo é baseado nas crenças, nos rituais, além das práticas específicas que inclui pelos faciais, vestimentas e por aí vai. Religião tem um papel poderoso, principalmente para os homens: homens como guerreiros, como poderosos e, principalmente, como próximos a Deus. Estamos vendo também que a Igreja Católica está passando por uma crise, uma vez que saiu tanto de seu rumo. Hoje, permite contraceptivos, aceita casamento gay. A Igreja Católica perdeu sua identidade e está passando por uma luta interna. Ela era reguladora de ambivalências. Contudo, isso mudou porque está se tornando progressista.

Apenas o Islã potencializa a masculinidade ideológica?
Não, de forma alguma. É preciso lembrar que são diversos círculos de força, e no centro está o homem como chefe da família, provedor, voz que decide, que tem esposa submissa que cuida da casa e dos filhos. Isso trás algumas sensações nostálgicas, mas de fato elas não existem – talvez em algum país longínquo. Hoje as mulheres trabalham. Realizamos entrevistas em nossas pesquisas e todos os homens dizem que é bom que as mulheres trabalhem e tenham seu tempo fora de casa. Nunca foi preto e branco. As novas gerações não têm esse sentimento nostálgico. O que vemos é que no catolicismo, no judaísmo ortodoxo e, obviamente, no islamismo, a masculinidade ideológica tem um buraco que vem tornando esses homens vazios, e é o que vem “justificando” a violência deles contra as mulheres.

Por que o Ocidente acredita que deve “salvar” os muçulmanos?
É uma pergunta interessante. Depende de quem se trata, evidentemente, mas alguns acreditam mesmo que deveríamos expulsar os muçulmanos. Há quem pense que eles deveriam ser erradicados; outros, no meio político, atuam como se fosse uma guerra contra o racismo, dizendo que eles estão sendo explorados pelo capitalismo. Em outros lugares, como no Brasil, se discute o fato de as mulheres usarem o hijab, por ser um país que empondera o corpo feminino. Ou seja, existem diferentes pontos. Na Nova Zelândia, depois dos ataques, muitas mulheres usaram o hijab em espaços públicos, como forma de apoio. Minha mãe, que é feminista, disse que de forma alguma usaria, caso esse apoio chegasse à Austrália, porque para ela é uma opressão. É possível que haja diferentes abordagens sobre o que é opressão às mulheres. Existem pessoas que mostram solidariedade para com os oprimidos, mas a questão-chave é saber quem são os oprimidos. Quando mulheres estão lá, querendo abraçar o hijab, é um sinal de força para mim. Penso que existe certa confusão nesse ponto.

Islamofobia também tem a ver com a cor da pele?
Olha, sim, acho que pode ter. Se você tem a pele escura e veste um hijab, você chamará mais atenção, podendo ser mais hostilizada. Os ataques foram de brancos.

Em que medida a mídia contribui para o aumento da islamofobia?
Islamofobia baseia-se em nossa natureza racista e cheia de ódio. Existe a ideia de que os muçulmanos deveriam pedir desculpas pelo Estado Islâmico, que é algo que não tem o menor sentido, uma vez que os extremistas não são realmente muçulmanos. Trabalhei próximo a comunidades muçulmanas nos últimos dez, quinze anos e fiz diversos amigos, pessoas que tenho plena confiança. O conceito é preguiçoso, embora seja algo que se propaga. A mídia em geral nutre essa ideia de que eles nos odeiam. Não sei como é aí no Brasil, mas se a mídia aí ainda não mostrou a parte extremista do islã, eles irão. Nas Olimpíadas do Brasil, os muçulmanos estavam apreensivos, porque é mostrado um lado extremista, misógino, radical e aparentemente volátil, o que faz com que a população em geral, que não conhece os costumes e a religião, tenha receios – o que por sua vez torna a comunidade muçulmana temerosa. Os extremistas pegam esses artigos e os usam como chamariz de “junte-se a nós”.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.