Javier Garcia Oliva: “A esmagadora maioria dos muçulmanos são cumpridores da lei”

Religião, democracia, multiculturalismo e intolerância religiosa. O que esses assuntos têm em comum? Certamente, são por demais abrangentes e por isso fáceis de serem incompreendidos. Ou, pior, reduzidos a meros achismos. Javier Garcia Oliva conversou com a FAUSTO com exclusividade e opina sobre a recente decisão de Trump de bombardear a Síria. Ele que é mestre e doutor em Direito pela Universidade de Cádiz, Espanha, e professor honorário da University College London e Universidade de Oxford, além de professor sênior de Direito da Universidade de Manchester, Reino Unido, assiste ao terrorismo na Europa de perto e diz, categoricamente, que não podemos confundir os muçulmanos com os que dizem agir em nome de Alá.

Muçulmanos
Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos.

FAUSTO – Há relação entre multiculturalismo e intolerância religiosa?
Javier Garcia Oliva:
O multiculturalismo é uma realidade que deve ser celebrada, mas, ao mesmo tempo, suficiente e devidamente tratada, até porque é uma realidade das sociedades contemporâneas. Tenho uma visão muito favorável do multiculturalismo porque acredito que traz benefícios para a sociedade, nos torna muito mais interessantes, obviamente porque temos origens e visões diferentes sobre diferentes assuntos. Agora, seria ingênuo negar que há alguns aspectos de todo o processo de multiculturalismo que são discutíveis. Obviamente, reunir pessoas de diferentes origens não é fácil. São desafios à nossa frente.

E quais seriam esses desafios?
Um deles é que existem elementos, ou indivíduos, dentro dessas diferentes tradições que trazem consigo intolerância e atitudes em relação a outros grupos, como no caso das mulheres, e isso não pode ser bem-vindo em nenhuma sociedade democrática moderna. Não acho que multiculturalismo tenha ligação com intolerância. É uma realidade muito mais positiva, algo a ser comemorado. Devemos ter orgulho de viver em sociedades diversas e plurais, mas ao mesmo tempo não podemos negar que existem alguns aspectos do processo que são difíceis e temos de ser cautelosos.

Olhando a religião do ponto de vista da democracia, qual é a maior mentira sobre a religião?
Como europeu, e alguém que estudou religião por muitos anos, há uma suposição de que um sistema democrático apropriado deve necessariamente combinar com uma separação estrita entre autoridade pública e corpo religioso, que a religião deve ser confinada à esfera privada. Esta linha de pensamento diz que devemos abraçar um sistema como o francês, no qual há uma divisão muito clara entre os dois. A religião pode ser uma fonte de maldade, mas ao mesmo tempo pode ser usada para propósitos muito benignos. É mito afirmar que a única maneira de tornar a religião compatível com a democracia seria separando-as. Temos outros modelos na Europa, e em outros lugares, em que há posicionamentos saudáveis do corpo religioso na esfera pública.

Como o britânico?
Em minha opinião, o modelo britânico é mais matizado e mais bem-sucedido do que o modelo francês. Há o reconhecimento da liberdade religiosa e da igualdade e ao mesmo tempo respeita as pessoas que não têm fé, sejam ateus ou agnósticos. Isso é crucial. Não há apenas um modelo possível.

Acha que a decisão do Trump de atacar a Síria pode piorar uma questão que já é delicada ou mesmo torná-la irreversível?
A Síria provou ser um caso muito difícil de resolver, e não só agora como ao longo dos últimos anos. Tenho sérias preocupações quanto a intervenções militares em outros países, mas penso também que há um princípio não negociável, que é o respeito pela dignidade dos seres humanos e, infelizmente, temos testemunhado demasiadas atrocidades na Síria, nos últimos anos. As imagens que vimos na TV, se você é um ser humano decente, e quero acreditar que 99% de nós somos, precisamos agir quanto a elas. Só que não fizemos isso e ficou pior. Não estou necessariamente de acordo com o governo Trump, e em muitos aspectos, mas tenho que dizer, talvez, que neste caso precisamos agir. Se será ou não contraproducente, ser contraproducente é um risco que temos de correr. Não podemos continuar vendo essas crianças repetidamente na TV, sujeitas a atos dos mais ultrajantes. Não podemos simplesmente ser complacentes. 

Sente que, no fundo, as pessoas se sentem vingadas ou mais protegidas por políticos como Trump, por mais estranho que possa parecer?
Estou dando crédito a ele por ele falar o que acredita. Não tenho problema em aceitar que ele tem uma visão, mesmo que eu não concorde com ela. Os americanos tiveram uma decisão difícil, e a outra opção teria sido significativamente melhor. É uma pena que não temos Hillary Clinton como presidente. Sobre coisas que ele disse e as pessoas se sentem confortadas, é porque se sentiam desapegadas do processo político e como pessoas que não tinham voz. Por outro lado, não devemos ser condescendentes, exatamente como essas pessoas que sentiram que tinham voz com ele. Precisamos dar respostas aos pontos de vista dessas pessoas. Trump, Brexit e Le Pen são realidades muito preocupantes e estou preocupado com a maneira como as coisas estão acontecendo, mas precisamos entender as raízes e as causas desses resultados.

Como cidadão europeu, como vê a atitude da Europa contra os terroristas islâmicos?
A Europa é um continente fascinante, que se tornou felizmente muito diversificado e plural. Apesar de ter raízes cristãs, somos muito afortunados por ter pessoas com outras crenças – e sem crenças –, insisto nisso. O islã é uma religião muito interessante e é vital ressaltar que a grande maioria dos cidadãos islâmicos são cidadãos que respeitam a lei, que abraçam a democracia e não querem ter um Estado da Síria ou algo parecido, e isso é algo que a mídia tende a esquecer. Por outro lado, há terrorismo e uma perversão do conceito de islã, porque essas pessoas afirmam estar agindo em nome do islã. Não podemos parar de ir a lugares como Paris ou Londres por causa do medo, a Europa está fazendo o seu melhor para responder à ameaça do terrorismo. Muitos políticos sérios na Europa estão transmitindo a mensagem muito clara de que o islã é muito diferente do terrorismo islâmico. O problema é que temos partidos muito populistas que tendem a rotular todos os povos islâmicos da mesma maneira e estão criando um grande dano. As instituições sérias são muito sensíveis e fazem com que as pessoas se sintam acolhidas, mas ao mesmo tempo, precisamos de uma mensagem muito poderosa de que a esmagadora maioria dos muçulmanos são cidadãos cumpridores da lei.

Conflito de valores é algo inerente à vida social?
Se não tivéssemos conflitos, basicamente significaria que todos nós seríamos iguais e isso seria empobrecimento social. Por isso estamos sujeitos ao choque. Todos temos nossa bagagem e nosso desafio como sociedade é conciliar essas diferenças. Isso é algo bom e não um defeito. Como um espanhol vivendo no Reino Unido por 15 anos, sempre tive essa visão: quando estiver em Roma, faça como fazem os romanos. Isso significa que você tem que respeitar a natureza, as raízes e a identidade do lugar para onde você vai. Podemos todos ter diferenças, mas existem alguns valores fundamentais na Europa, tais como igualdade entre indivíduos, não discriminação em razão do sexo, religião e orientação sexual, e estes são valores inegociáveis na Europa e nas sociedades democráticas. Toda diferença é bem-vinda, desde que não prejudique esses princípios fundamentais de uma sociedade.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.