Antonio Paim: “Se minha experiência valesse, ninguém seria comuna ou se casaria”

Diante de uma oportunidade única, resta apenas se entregar? Sem artifícios, sem medo de errar sobre o que se deseja guardar como memória? De forma desajeitada, transformo a entrevista a seguir em um pequeno poema sobre o amor: ao Saber, aos livros, a qualquer alguém capaz de marcar profundamente nossa vida. Quem emana essa centelha é Antonio Paim, um dos mais importantes filósofos e historiadores brasileiros. Aos 90 anos, é responsável por uma trajetória que jamais deverá ser esquecida na história da filosofia brasileira e do pensamento político brasileiro. É ele um dos grandes responsáveis por nossa memória — ou o que deveria ser nossa memória. Seria Paim a caixa preta desse voo que fazemos pela História, como participantes ou meros espectadores? Não sei o que você, leitor, conversaria com ele: se sobre fatos jamais contados ou sobre os últimos 50 anos de nossa política. Escolhi, contudo, falar sobre o que fez um homem que desejou não ter alma mudar de ideia.

Antonio-Paim-Entrevista-Fausto
Filósofo e historiador Antonio Paim.

FAUSTO – Aos 90 anos, creio que o entendimento que o senhor tem sobre a vida, a família, a religião, o amor e o amor romântico seja muito diferente do que eu possa ter… Se o senhor pudesse voltar atrás e mudar alguma coisa, o que seria?
Antonio Paim: Difícil de responder… Não me arrependo de nada. Fui comunista de verdade, não como os que ficavam tomando whisky e falando besteira na zona sul do Rio de Janeiro, como era comum entre os intelectuais. Fui comuna mesmo. Fui para a Rússia para me transformar em um bolchevique sem alma, sem amigos. Era o meu projeto. E só fui salvo pela paixão por aquela russa… [Emociona-se]

O amor…
Até fico comovido. Eu me apaixonei por ela no curso. Ela era tradutora, dava aulas. Eu levava textos para ela traduzir e quando tinha uma palavra que ela não sabia eu ensinava. Aprendi russo com uma facilidade enorme. E ficou naquilo… Éramos em 20 homens, 20 brasileiros comunistas. A matrícula era na Escola Superior do Partido Comunista, mas a maior parte das aulas acontecia na Universidade Lomonosov. Eram aulas introdutórias, então, quando acabei, fui para a Lomonosov direto. O amor foi um processo de humanização para mim. Eu estava em um caminho e, depois que nasceu a minha filha, tudo aquilo acabou para mim.

Kant foi uma grande influencia para o senhor?
Kant inventou uma solução que considero adequada para medir se o nosso comportamento é moral, que é fazer o que todo mundo pode fazer. Se em um momento de aperto você mente, Kant disse que não pode. Porque se você mente, você inviabiliza as relações. E ele tem razão. Mas… Às vezes na vida você precisa fazer violações. E eu fiz muitas violações. Não sabia essa regra kantiana direito. Estudei Kant depois que saí do Partido Comunista. Foi quando conheci um alemão, engenheiro meteorologista, Leandro Ratisbona. Ele conhecia Kant. Tive uma sorte danada de encontrar Kant. Fiz terapia kantiana. Passei quase 20 anos estudando com ele, todo sábado, página por página. Então, as coisas que fiz, procurei fazer até o fim. [Emociona-se]

Podemos considerar o amor e a paternidade assuntos mais importantes do que política?
Podemos.

E os livros! Três coisas: amor, paternidade e os livros.
Pode ser. [Emociona-se]

Nota: no momento que Paim se emociona, o historiador Alex Catharino, quem intermediou o encontro, dá o seguinte depoimento.


Uma experiência que posso dizer, desses anos todos não só acompanhando o professor Antonio Paim, mas vários dos discípulos dele, é que o professor Paim foi um “painho”, um pai para os alunos. A paternidade intelectual do professor Paim foi a de cuidar de todos nós, eu mesmo um garoto naquela época. Ele sempre teve o cuidado de guiar, ajudar, orientar, dar uma trilha. Ele é um pai intelectual que pega pelas mãos e vai guiando, ajudando a descobrir novas áreas de pesquisa, mostrando as necessidades que o pensamento político brasileiro, a ética, tinham e tem. O trabalho que ele fez, não só com os alunos, mas também ajudando a abrir cursos de pós-graduação por todo o Brasil, além dos cursos de humanidades juntamente com o saudoso Leonardo Prota e Ricardo Véles Rodríguez. Tudo isso é material que precisa ser recuperado, é material da paternidade intelectual que revela um cuidado com a nova geração.

Alex Catharino, historiador, autor de
Russell Kirk – O peregrino na terra desolada, foi aluno de Antonio Paim.


Nota: Paim prossegue.

Não atribuo importância à paternidade intelectual. Creio que o que a nossa geração fez foi criar, pela primeira vez – e posso estar exagerando – uma alternativa, bem organizada, para esse bestialógico que virou a cultura brasileira, principalmente nas humanidades. Ninguém lê nada! E não é resultado da Internet não. Isso vem de muito antes. O Ricardo [Vélez Rodríguez], professor na Universidade Estadual de Londrina, dá 200 páginas para os alunos lerem e eles reclamam! É claro que a Internet contribui. Isso de conversar em apenas 250 caracteres é uma idiotice completa. O Vargas Llosa diz que perdemos a guerra, que a cultura ocidental foi liquidada. [A Civilização do Espetáculo] Foi, mas tem os focos de resistência.

Quais são eles?
Nós temos tudo pronto para combater tudo isso, esse povo da USP que está na área de Filosofia – não para prender e perseguir, como eles fazem conosco. É difícil, vem de uma tradição muito louca. Eles incorporaram isso com o positivismo. [Muda de assunto]

Pensando aqui, a única coisa que eu gostaria de fazer, e não sei como resolver, é trazer a russa para cá. Porque a separação desorganizou minha cabeça completamente. Casei com uma moça durante a faculdade, que era uma moça muito bonita, e tive que fazer o curso de graduação sem ter lido muitos autores direito – e com uma mulher grávida dentro de casa, tendo que trabalhar para pagar as contas. Mas eu estava com a cabeça voltada para sair do marxismo. Eu tinha deixado de ser comunista, mas eu era marxista, o que eu sabia era marxismo. Mudei de assunto de novo? [Dá risada]

Pode falar o que o senhor quiser…
Se eu pudesse voltar atrás, e não sei como faria, eu resolveria minha vida com a russa. Naquela época, eu não estava disposto a morar na Rússia. Eu queria voltar de qualquer jeito. Eles têm sete meses de inverno! Nasci no sertão da Bahia. Até os 16 anos, eu não sabia o que era inverno. Quando vim para São Paulo fiquei um pouco mais afeiçoado ao clima. Mas fiquei tão destrambelhado quando a russa foi embora que casei com a pessoa errada. Durou um ano. Fomos irresponsáveis. A minha paixão pela russa foi um processo de humanização. O nascimento da minha filha russa foi também fundamental para eu sair daquele diabo que eu estava metido até o pescoço. Mas com a separação fiquei muito mal e tomei muitas decisões erradas. Quando eu era professor, eu costumava dizer: se minha experiência valesse, ninguém seria comuna ou se casaria. [Dá risada]

Quando o senhor fala do amor como um processo de humanização, é porque não temos controle sobre o amor e ficamos vulneráveis?
Se você tivesse ideia do que é o processo de bolchevização do sujeito… É brutal. Só de se propor a não ter família, amigos, já é um absurdo total.

Mas por que o senhor buscou isso?
Eu não queria ter alma. Aquele processo de construção do chamado comunismo na Rússia é de uma brutalidade inominável. É mais fácil explicar o comunismo do que o nazismo. O nazismo está misturado com nacionalismo, entre outros assuntos. O comunismo você não entende sem conhecer essa brutalidade. É importante dizer que Marx não tem nada a ver com o que houve na Rússia. Esse livro que escrevi sobre marxismo [Marxismo e Descendência], foi uma das coisas que eu tinha que fazer, foi um ajuste de contas com o marxismo.

Qual conselho o senhor deixaria para mim, ou para todos que desejam aprender mais, que apreciam a vida intelectual?
Procure ser autentica e fazer as coisas com seriedade.

 

Agradeço ao historiador Alex Catharino a oportunidade de viver instantes inesquecíveis e o incentivo de continuar escrevendo apenas sobre o que me toca.

 

 

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.