Escritor e editor português, Jorge Reis-Sá é autor dos romances Todos os Dias e A Definição do Amor, esse último, livro que (d)escrevi como fina-flor sobre as abastanças ou falências desse sentimento unanime. Em sua prosa há poesia; em seus versos, a falta que se tornou a deixa para atuar. O que há em comum entre o amor e a morte? O que faz da escrita o elo entre mundos, entre tempos, entre acertos e erros incapazes de ser reparados? Ou a escrita é reparação por definição? Abrindo a Série Ora Pois!, exclusivo FAUSTO, apresentamos o moço nascido em Vila Nova de Famalicão, também marido e pai, leitor de tantos que Portugal presenteou ao mundo. Para jamais deixar de ler: Jorge Reis-Sá.
FAUSTO – É possível desvincular a escrita de tormentos pessoais?
Jorge Reis-Sá: Não. Escrita desvinculada de tormentos pessoais é inócua. E escrita inócua é pãozinho sem sal para o leitor. Eu sei, vivemos numa época em que o cuidado com a alimentação se impõe como uma ditadura, mas eu sempre quis morrer doente – tenho ideia que morrer saudável deve ser uma chatice. Mesmo na literatura. Podemos invocar tormentos impessoais, concedo. Mas basta escavar um bocadinho a psique do escritor para perceber que é mentira a dobrar: o que se diz impessoal estará escondido no fundo do corpo cavernoso, mesmo que não apareça logo na parte do cérebro mais evidente.
Por que gostamos tanto do passado?
Em A Definição do Amor responde-se a essa pergunta. E digo responde-se porque, para quem escreveu o romance, a indefinição foi tanta que até acaba por dizer que foram duas das personagens a responder: “há perguntas que trazem uma resposta, a única. Não pensei nem um segundo, talvez tenha até sido ela, sempre tão certa, a responder na minha voz: ‘Porque era onde havia esperança.’” A única resposta. Também é a minha, não é só do Francisco e da Susana [personagens]. No passado havia futuro e nós, os únicos animais conscientes de que ele existe, adoramos a existência do seu plural. Adoramos que o futuro possam ser futuros. E adoramos que o passado tenha ainda a possibilidade de outro presente – a esperança. Creio em universos paralelos, confesso. Agrada-me aquele conceito de que sempre que há uma acção, há a criação de um novo universo com o seu oposto. Somos tantos que o infinito é o número de universos, neste conceito. Não creio que sejam estes os universos paralelos de que se fala na teoria. Antes os que envolvem outros que não nós, para lá de buracos negros. Mas pensemos: não seria uma coisa única o passado poder ser sempre outro e permitir outros futuros?
O que é uma triste felicidade?
Não há felicidade feliz, antes de mais. Ou se há, é mentira. A felicidade é sempre triste, porque é, sempre, sabedora da sua finitude. Não foi Vinicius de Moraes quem assim definiu o amor? “Infinito enquanto dure”, certo? Pois bem, a felicidade é algo de semelhante. Acreditarmos que a felicidade é uma coisa perene é a única coisa que a faria feliz, mas é tontice. Talvez seja a portugalidade a impor-se, não sei. Esta coisa do fado, da saudade, da melancolia, do passado ser o sítio da esperança. Mas talvez seja, mais do que isso, a realidade. Ser feliz é uma mentira tão grande que só se pode estar feliz sabendo-se triste daqui a pouco. E quem quiser de outra forma será um pateta alegre.
Por que Fernando Pessoa?
Porque o senhor Fernando é uma constelação e eu comecei a faculdade estudando astronomia. Agradam-me sobremaneira sistemas duplos e triplos, como se Tatooine existisse – e existe, pode é ter outro nome. E o senhor Fernando é um sistema estelar cheio de matéria – pedras, energia, até matéria escura. Ensinou-nos – e aqui alargo para a literatura toda, não só a portuguesa – que podemos ser muitos escrevendo. Que a melhor coisa que existe é a liberdade da contradição do escritor – e para tal basta ver a pergunta anterior, será que faz sentido alguém não querer ser um pateta alegre? – Eu quero. E levou a contradição autoral a um limite onde se fez múltiplo. Claro, o síndrome de Asperger deve ter ajudado. Mas na impossibilidade de o termos connosco, meros mortais que somos, copiamos muito.
Eis que Pessoa tentou criar sua própria versão de Fausto. Todo escritor é presa certa de ambições fáusticas?
Dizem que o céu deve ser um lugar muito chato, cheio de anjinhos e sons pleonasticamente celestiais. Anjinho é, no calão português, um sinónimo para inocente, para pateta, para gente que não vive porque sobrevive. Eu quero muito viver, mesmo depois de morto. Por isso, se pudesse fazer um pacto com o diabo não pensaria duas vezes – fá-lo-ia. Mesmo sabendo que o inferno era a morada seguinte, mas convenhamos – entre entrar lá só porque sim ou entrar lá pela mão do patrão… não venha o diabo e escolha.
[Dá risada]
Um escritor é o paradigma da procura de imortalidade. Disseram que a arte é isso, tentarmos fugir da morte para continuarmos, depois de nos sabermos desaparecidos. No fundo, existirmos depois de termos vivido. Há várias maneiras de fazer isso, uma delas pelo amor, sim – sermos lembrados pelos que nos amaram. Mas outra é criar, é fazer um pacto com o diabo tirando tempo a quem nos ama para podermos depois ser lembrados por muitos. Somos sempre Fausto, todos os dias. Se não for mais para podermos existir no meio das palavras depois do diabo nos levar.
O que gostaria de ter sido se não fosse português?
Se não fosse português teria de ser outra coisa qualquer e não teria como o escolher – afinal, o verbo ser tem muito de essencial e contingente. Posso apenas responder que, se me dessem a escolher, não queria ser quadrado. Quero com isto dizer que afastassem de mim o cálice nipónico, o alemão, por exemplo. Agradar-me-ia continuar a sonhar na língua do senhor Camões beijada pelo senhor Caetano – pelo que ser brasileiro era uma das primeiras opções.
Quem foi Jorge Reis-Sá menino? O que leu que desabrochou o seu mundo?
O Jorge Reis-Sá não existiu menino – chamava-se Jorginho. Entrou com menos um ano na escola primária, porque a mãe era lá professora. E foi fazendo todo o percurso académico sempre a idade um ano atrás dos outros – ou à frente, não sei, sei que era mais novo. Só na faculdade os encontrou, com as mudanças de curso que fez. Além disso, o Jorginho tinha duas características que mais diminutivo o faziam: era loirinho e manco, coisa de que mantém apenas a segunda. Tendo sido operado a uma paralisia do nervo ciático por quatro vezes, andava de botas ortopédicas, que faziam clanc clanc clanc com o ferro que as ligava ao joelho. Talvez tenha sido essa a característica que melhor definiu o menino – sempre simpático na impossibilidade de ser grande desportista ou afim. Depois cresceu, acabou até por criar a Associação dos Mancos Anónimos e tudo, mantendo outra das características – o palhaço da turma. Jogou voleibol, tocou bateria e ouviu o médico perguntar porque não escolhera ele o xadrez e o saxofone. Porque era fácil e nada como ir pelo caminho mais difícil.
E a escrita?
A escrita, que se apresentou depois da morte do pai, aos 17 anos, fez do Jorginho o tal Jorge Reis-Sá, com hífen e tudo para poder ser o filho do professor Reis Sá para sempre. Não leu os clássicos juvenis na idade, nem os clássicos adultos quando devia. O que o trouxe para a literatura foram os livros de outro teor – atlas e afins. E depois descobriu a poesia. E procurou-a então nos clássicos que ainda não tinha lido, claro. Ficou siderado com a beleza que uma palavra junta com outra pode ter e nos fazer ler. E nunca mais parou de ler versos e mais versos, procurando sempre o cabelo loiro do Jorginho.
Quem será Jorge Reis-Sá velho?
A sua esposa acha que um chato, sendo já secundada pelo filho de 12 anos. Talvez volte a ser o Jorginho, mais manco e com o cabelo branco. Mas, se lhe derem essa opção (está a dois anos da idade com o que pai morreu), quer ser filatelista, continuar a ser editor e poder ir escrevendo meia dúzia de livros no intervalo da brincadeira com os netos. Será certamente um chato – na alimentação, na rotina, na falta de vontade para viajar. Convenhamos, já hoje o é. Mas sempre teve ideia que cada ano que passa está mais perto da idade que sempre teve – o que é o mesmo que dizer que o Jorginho sempre se sentiu um velhote. Escusado será dizer que, a cada dia que passa, mais certeza tem de que falha diariamente na procura da imortalidade nos livros e coisa que tal. Porque a percebe no amor que tem pelos seus. Entre um verso que o lembre ou um sorriso do que ama, a resposta é evidente, já o percebeu.
Qual é o lugar de seu pai em sua trajetória como escritor?
É fundador, o que obriga a idas mensais à terapia. O meu pai era professor de português, árvore frondosa demais para um filho poder desabrochar ao seu redor. Por isso escolhi ciências – sou biólogo – como área de formação. Mas a sua morte, no primeiro ano da faculdade, permitiu que o sol me desse e, assim, começar a escrever com mais afinco. O que quer dizer, veja-se bem, que só sou escritor porque ele morreu. Preciso ou não de terapia?
Uau!
Tenho-a feito para além das visitas mensais, exactamente escrevendo sobre ele e sobre a minha relação com ele e com a sua memória. Se já estou em paz com isso? Pelo menos mais um pouco desde que escrevi, há uns dez anos, um poema chamado Dinner at Eight.* Não há palavras mais duras de dizer do que aquelas que lá deixei.
O que imagina poder ainda descobrir sobre o amor?
O romance A Definição do Amor é, como se perceberá, um romance falhado. Não se define algo tão abrangente como o amor. A única coisa que percebi é que o amor é sinónimo de morte e perda, o que já é alguma coisa para se perceber. Mas o amor é uma descoberta quotidiana tão grande e grata que, imagino, deva estar cheia de possibilidades, ainda. Como o contraditório Pessoa, quero crer em felicidade sem tristeza – o que é também sinónimo de amor, acho. E essa vida feliz, ainda assim pouco dada a contentamentos contentes – agrada-me mais o “contentamento descontente” do Camões – é a procura da descoberta de mais amor. Tenho um filho: o que será o amor por um segundo que possa vir? Terei netos? Que amor é possível por aqueles que nos deixam física ou psicologicamente, família ou amigos de quem acabamos desamigados pelas agruras da vida? É possível amar a pedra que Lobo Antunes parafraseia no título do seu romance? Que amor é esse senão o da Vida, com V crescido e tudo? Não sei. E o que me vale é a ignorância para continuar a escrever à procura das respostas.
*Dinner at Eight
Para o meu pai
Já não há melancolia possível. Acabou no dia em que esta
música chegou nas asas de uma borboleta e eu, lembrando
personagens de um romance, Fernando, Augusto, António,
me soube amargo pelo grito de um filho. Também sou filho.
E no entanto não tenho um pai com quem gritar.
Esta música faz-me chorar. E eu não tenho como repeti-lo,
falar do nosso jantar – lembras-te, pai, do arroz de tomate,
bem solto, que a mãe fazia com os panados? a mãe nunca
mais cozinhou – e poder finalmente dizer-te a verdade:
morreste como uma árvore e eu fiquei sob o sol. Dantes
eras tu o maior tronco e eu não tinha como crescer. Nem
vou dizer-te – como, com dezassete anos? – o quanto te
quis insultar para te julgar vivo. Por isso este poema
quando ouço este filho a acertar contas com um pai –
coloca os teus punhos bem erguidos, pai, e deixa-me lutar
contigo uma última vez o grito de quem te quer vivo se
não mais para te dizer como foi importante morreres.
Disse-o, pai. E penso: como posso ser feliz com a vida
que tenho? Como? O Guilherme. E tu aqui, ele não mais
do que uma mentira. Raramente penso nisso, digo-te.
Mas esta música, pai. Este lamento. Quero lembrar
o arroz de tomate do nosso jantar e pensar que, mesmo
vivo, possível que fosse envelhecer contigo, mesmo
assim, pai, com o arroz de tomate e sem o Guilherme
eu seria tão feliz como hoje. E não consigo.