Leo Chacra: “O teatro é uma arte muito generosa”

Leo Chacra é apaixonado por atrizes, como Degas é por bailarinas. Elas expressam por ele emoções e sentimentos que o próprio não teria ânimo para manifestar. Dramaturgo, diretor de teatro e escritor, o paulistano acaba de lançar Atrizes, livro de contos que evidencia elas; porém não as monumentais. Chacra prefere as anônimas, em seus dias de glória ou de luta. Em conversa com a FAUSTO acerca dessa arte que acolhe e humaniza, revela também outra faceta: um homem de vastíssimo repertório.

Leo Chacra
Leo Chacra. Foto: Cristina Granato.

FAUSTO – Por que o teatro?
Leo Chacra: Meu primeiro contato com o teatro veio por influência do meu pai, que sempre foi um apaixonado. Ele conta que frequentava a casa da Cacilda Becker, que conheceu o Plínio Marcos… Uma tia minha também estudou na EAD, na turma de 1967, época de nomes como Aracy Balabanian e Ney Latorraca. Na adolescência, meu interesse maior era o cinema. Eu sonhava em fazer cinema num país que, na época, praticamente não tinha uma indústria cinematográfica. No início da minha vida adulta, surgiu Carlota Joaquina, da Carla Camurati, marco da retomada do cinema nacional. O que sempre me atraiu — tanto no teatro quanto no cinema — foi o trabalho do ator. Foi isso que me levou a estudar teatro.

Não foi então uma paixão à primeira vista…
Engraçado que, logo no início do curso, pediram que lêssemos teatro grego. Achei aquilo tão estranho. Parecia algo difícil, muito sério, coisa de adulto mesmo, não combinava com alguém que estava saindo da adolescência. Tenho pensado bastante sobre isso ultimamente: até que ponto o teatro é literatura ou é uma arte independente…

Ou talvez as duas coisas…
Olhando para trás, não sei se entrei no teatro porque queria me aproximar da literatura ou se era mesmo um interesse pelas artes cênicas — o corpo em movimento, o circo, a dança. Hoje, sim, é uma paixão. O teatro é onde respiro. Tenho necessidade de frequentar teatro.

Por que a literatura?
A literatura é mais solitária. O teatro, ao contrário, carrega essa dimensão de grupo, do coletivo. Mistura-se com a vida social de quem atua — cria-se uma convivência intensa com as pessoas com quem se trabalha. O teatro é uma arte generosa. Ele tem a capacidade de acolher quem vem da literatura. Já a literatura, não. Ela permanece no silêncio, no íntimo, no solitário.

Escritores, em geral, não convivem entre si. Não costumam ser amigos apenas por compartilharem o mesmo ofício…
Cada um está muito voltado para o seu próprio universo, seu mundo interior. Eu mesmo, até hoje, nunca escrevi não-ficção — embora, admito, também nunca tenha tentado. Como leitor, no entanto, adoro. Estou lendo agora um autor indiano, Fareed Zakaria. A literatura me dá um prazer que, acho, vai além do que a maioria das pessoas sente.

Por que o teatro é uma arte generosa?
Procópio Ferreira, que pertence a uma fase do teatro brasileiro muito centrada no intérprete, no ator, costumava dizer algo mais ou menos assim: “O teatro é uma atividade sobre a qual muitos opinam, poucos entendem e pouquíssimos realizam.” O teatro daquela época, porém, ficou, de certo modo, ultrapassado. Hoje, é uma arte essencialmente coletiva. Depende de uma equipe, de muitas mãos e olhares. E tem uma capacidade admirável de agregar pessoas de outras áreas.

Por exemplo?
Um arquiteto bem-sucedido, que nunca fez teatro, pode aceitar criar um cenário. Coco Chanel assinou figurinos para peças. Pablo Picasso, igualmente. E nem sempre precisa ser nomes tão grandiosos. Às vezes, o teatro traz alguém da rua. Conheço diretores que vivem garimpando talentos por aí e convidam essas pessoas para se juntar ao coletivo.

Por que Atrizes e não atores?
Porque eu queria escrever sobre minha frustração de não ser ator e o gênero feminino não compete com o masculino. Um homem jamais poderá ocupar o lugar de uma atriz. Pensando em voz alta, vamos lá, há tantas profissões em que o gênero pouco importa — chef de cozinha, arquiteto, jornalista. Escritora, por exemplo, lembro-me de ter lido Marguerite Yourcenar, que me espantou. Se eu não soubesse, poderia imaginar que foi um homem que escreveu aquele livro. Ou então, ao assistir a um filme de Pedro Almodóvar é possível pensar: uma mulher poderia perfeitamente estar por trás dessa direção. Atriz, no entanto, não. Atriz precisa ser atriz.

Na literatura é possível, quando se escreve…
No caso do meu livro, talvez eu tenha sentido mais liberdade para falar de mim por meio de personagens femininas. Lembro de ter lido acerca do chef Anthony Bourdain que ele é um cozinheiro medíocre, mas um grande escritor. Fiquei com isso na mente e pensei: e se eu escrevesse minhas aventuras como um ator medíocre? Um dia, assistindo a uma palestra da Tatiana Belinky, a roteirista responsável pela adaptação do Sítio do Picapau Amarelo para a TV, ela contou o quanto ficou impressionada ao descobrir que a Emília, na verdade, era o próprio Monteiro Lobato.

Olha só, não sabia…
As pessoas estão sempre tentando encontrar o autor dentro de um personagem. O meu objetivo com Atrizes, no entanto, não é falar dessa “fulanização”, algo que vem desde Hollywood e que, no teatro brasileiro, teve figuras como o Procópio Ferreira ou a Itália Fausta, contemporânea dele. A proposta é dar voz às atrizes que são a maioria, digamos, as “anônimas”. Aquelas que estão em movimento, se descobrindo, se aceitando, e até cogitando a possibilidade de desistir. Algo que me incomoda profundamente são esses “gurus” que vivem repetindo que basta seguir seu sonho que o universo conspira a favor. E não é bem assim, né?

Não mesmo!
É como no futebol… Agora, você vai comprometer sua vida inteira tentando ser apenas uma coisa? Isso já estava em Tchékhov, em A Gaivota. Lembro-me de ouvir o Paulo Autran dizer que, nessa profissão, você talvez não alcance grandes conquistas materiais, mas vai viver muitas conquistas espirituais. E é exatamente isso que A Gaivota revela. Degas tinha uma fascinação por bailarinas; eu tenho por atrizes.

Há mais percalços na carreira de atriz do que na de ator, no campo do amor, por exemplo…
A Fernanda Montenegro escreveu em sua autobiografia que uma atriz não consegue manter um casamento saudável com alguém que não seja da classe teatral, ou do meio artístico. Já um ator, de acordo com ela, pode se casar com quem quiser.

Pensei numa pergunta meio espinhosa… Uma atriz que não é famosa, ela sente vergonha de dizer que é atriz, com medo de ser assediada, por exemplo, como acontecia com grande frequência? Isso ainda existe?
Uma amiga minha passa por isso. Quando ela sai com um cara, ele pergunta sobre a Globo ou por que ela não é famosa, e ela responde: “Você é advogado, certo? Quais são seus clientes famosos?” ou seja, ninguém faz esse tipo de pergunta para um advogado. Existe uma cobrança enorme, talvez porque vivamos ainda sob o efeito da “fulanização” que Hollywood criou, mas imagina se isso acontecesse com todos os profissionais?

Como escritora vivo um pouquinho isso…
Agora, voltando a sua pergunta: eu acho que isso mudou um pouco, sim, mas ainda existe. Depois do Me Too, há mais atenção, mais pessoas olhando, mais fiscalização de todos os lados. Entretanto, infelizmente, ainda tem muito predador sexual que enxerga no audiovisual e no teatro uma chance de se aproximar de mulheres interessantes.

O que mais aprendeu nesses anos no teatro, lendo, escrevendo, assistindo e refletindo…
Conversando com amigos mais velhos, que já entenderam certas coisas há algum tempo, percebi algo curioso: você pode fazer vários trabalhos, até melhores do que aquele que o tornou conhecido, mas as pessoas costumam lembrar apenas desse específico. Um exemplo, agora em alta, é a Beatriz Segall — eternamente lembrada como Odete Roitman. Outra coisa curiosa é que o ator e a atriz nunca sabem quando esse momento vai acontecer. Como contei antes de começarmos a entrevista, eu estava lendo a biografia do Sérgio Mamberti, e ele conta que, ao receber o papel do mordomo Eugênio — do próprio Gilberto Braga —, ele pensou: “Lá vem, servir café e abrir porta.” E no fim, foi o papel que o projetou. Ele conta que, naquela época, tinha que sair do shopping center pelos fundos. E contou de uma vez na praia, quando entrou no mar e as pessoas começaram a se aglomerar ao redor dele. O mesmo aconteceu com o Cacá Carvalho, o Jamanta.

O que é um bom personagem?
Na dramaturgia, um personagem só é realmente bom quando diferentes atores podem interpretá-lo — e ainda assim ele funciona. Pensemos na Lady Macbeth. A Beth Coelho faz uma Lady Macbeth, e a Giulia Gam faz outra. São interpretações diferentes, com nuances próprias, mas ambas funcionam. Para mim, isso é o que define um bom personagem. Se o texto não cabe na boca do ator, então o texto é ruim. Todo leitor de teatro, no fundo, é um diretor, porque tece uma opinião.

Isso é verdade, faço isso, mesmo não entendendo nada de teatro, tecnicamente falando…
No fim do século XIX, Pirandello escreveu Seis Personagens à Procura de um Autor. Na peça, um grupo de atores e o diretor estão ensaiando quando, de repente, surgem os seis personagens que interrompem o ensaio dizendo algo como: “Está tudo errado! Não foi assim que falamos!” O diretor e os atores, com muita paciência, tentam explicar que eles são profissionais e que, da forma como os personagens propuseram, as cenas não funcionam no palco. Porque a cena precisa ter começo, meio e fim. Eu acho esse trecho maravilhoso, porque mostra, já naquela época, que havia consciência de que o teatro é uma arte essencialmente coletiva. No palco, nem sempre é como o autor imaginou, assim como também nem sempre é como o ator concebeu. No fim, é como o público percebe.

Isso faz muito sentido quando penso nas inúmeras conversas que tenho, assim que saio do teatro, com quem assistiu comigo…
Lembro-me de um trecho na biografia do Dias Gomes que ilustra bem essa ideia. Ele conta que, certa vez, assistiu a uma montagem de sua peça O Santo Inquérito, em Portugal. Durante toda a apresentação ele sofreu muito. Achou que haviam destruído o texto, sentiu vergonha, horror, pensou: “Esses portugueses…” Para sua surpresa, no fim da peça, foram quinze minutos de aplausos. Daí ele pensou: “Quer saber? O importante é o povo gostar.”

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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.