Marcelo Nova: “O seu maior inimigo é o tempo”

O moleque baiano, de Salvador, era peralta! Confessava ao padre os pecados, mas adorava, em seguida, contemplar os ângulos mais selvagens de belas mulheres, como Raquel Welch. Não que o homem, hoje aos 71 anos, não seja mais assim. Ao contrário, as memórias de tais aventuras se transformam em letras insolentes, inteligentes e bem-humoradas, tanto para sua banda — ímpar em seu conceito —, a Camisa de Vênus, quanto para seus álbuns solo. Aquele que provocou, de verdade, a nona Gegê, e canta com invejável energia “Gegê, cadê Getúlio?”, é a lenda do rock brasileiro: Marcelo Nova. O que faz na FAUSTO? O que Fausto faz em nós: revela a coragem de lidar com as sombras, a constante insatisfação com a vida, mas que empurra para as realizações que dão sentido. A mim, que não sou da música, mas das letras, recebeu em sua casa com nobilíssima educação e abriu de coração essas histórias que deram sentido ao meu próprio tempo. Afinal, parafraseando o que canta em “Tão pouco tempo”, ele apenas já sentiu bem mais frio que eu, e é só.

marcelo nova
Marcelo Nova.

FAUSTO – Comecei a praticar meditação durante um período dificílimo de minha vida, e, logo após aquele momento de “suspensão” de todos os meus estados pungentes, eu colocava “Temporada no Inferno”, de seu álbum solo “12 Fêmeas”.
Marcelo Nova: A letra é pesada.

Mas sustentou-me durante esse período: “Só procure controlar/ O seu pavor interno e bem-vinda/ A outra temporada no inferno”. De uma forma inusitada, talvez, eu me senti abraçada.
Fico feliz que meu trabalho a tenha abraçado em um momento difícil.

Perdoe-me a aparente arrogância, mas, para pessoas muito inteligentes, é o abraço perfeito, porque não engana. Não sou da música, mas das letras, e me apaixonei por você por causa de suas composições. De onde vem essa fala correta, desenvolta, altiva?
Talvez seja pelo próprio ofício de escrever. Nunca tentei ir pelo caminho mais fácil, o da música comercial. Imagine! Em 1980, éramos uma banda proibida de ser citada, porque não correspondíamos aos padrões da época, embora fôssemos uma banda que ganhava disco de ouro atrás de disco de ouro — que era como ganhar o Oscar. A indústria nos premiava para, na verdade, premiar a si mesma. A quantidade de propostas que recebi para fazer música para fulano, cicrano, para novelas, “música mais leve”, foi muita; só que eu não sei fazer música leve. Mas essa coisa da palavra, Eliana, existe algo que me incomoda muito, por exemplo: “A gente”. “Aí, a gente foi”, “A gente queria ir”, “A gente viu que era uma merda”. O pronome “nós” foi apagado do vocabulário! [Exaltação típica] “A gente” é uma expressão horrorosa! Dita ou escrita, uma vez, já é feia. Agora, repetido ad nauseam, é insuportável!

[Faço uma mesura]

Estou dando um exemplo banal. Pessoas que, presumivelmente, deveriam saber se expressar, porque são formadas, misturam singular com plural. A língua portuguesa, evidentemente, não possui a sonoridade e a maleabilidade da língua inglesa. A língua inglesa é bonita demais! É atemporal, nos remete a épocas distantes, mas não nascemos na Inglaterra! O público que compra meus discos e vai aos meus shows, a maioria não sabe inglês. Se converso com meu público em nossa língua, então é nela que tenho que me aprimorar. Agora, também podem acontecer situações inversas.

Por exemplo?
Nos meus 14 anos, eu adorava uma banda, The Animals. Eric Burdon cantava com aquela voz maravilhosa. [Marcelo imita Eric] Ele tinha 10 anos a mais do que eu. Morava em Londres, eu em Salvador. Ouvia-o diariamente nos anos 1960. Ele estava começando a carreira; e, eu, começando a descobrir esse negócio, esse troço, essa coisa possessiva chamada rock ‘n’ roll [Ênfase típica], que me possuiu inteiramente. Às vezes eu estava jogando bola na rua e falava para os moleques que ia em casa rapidinho… Imagina! Eu nem voltava! No meio do jogo, me dava uma vontade insaciável de ouvir rock ‘n’ roll!

Chegou a conhecer o Eric, certo?
Eric Burdon veio ao Brasil nos anos 1990, para um festival que acontecia no Palace, em Moema. O cara que o trouxe não sabia falar inglês, então me pediu para dar uma força. Essa passagem do Eric pelo país coincidiu com uma das gravações do Camisa, então o convidei para conhecer a banda. Como os ingleses são educados, não? Ele aceitou e tal, me colocou num bom lugar para assistir ao show. Ao final, saiu cumprimentando a todos e me convidou ao camarim. Como eu estava gravando, pedi desculpas e licença para sair, mas voltei a convidá-lo para ir ao estúdio, e ele aceitou! Gravamos “Don’t Let Me Be Misunderstood”, que foi um dos grandes hits da carreira do Eric. No final, ele pediu para eu enviar algumas de minhas letras, porque queria entender sobre o que eu falava. Traduzi três letras e enviei para ele. Tempos depois, fui para Los Angeles mixar o disco, encontrei-o, mas disse que não tinha tido tempo de ler as letras. No dia 1 de janeiro de 1997, nunca me esqueço, Inês atendeu o telefone e era Eric Burdon.

O que ele disse?
Quanto mais eu ouço suas canções, mais eu gosto delas. Você tem interesse em trabalhar comigo?

E qual foi sua sensação?
Voltei a ser aquele menino, baianinho, de 14 anos. Pensei em como a vida tem mistérios insondáveis, [Ênfase típica] Respondi que queria, claro. Fui para Nova York, gravamos uma demo —, isso em 1997. Em 2004, ele lançou um álbum, chamado My Secret Life, com três canções minhas. Bruce Springsteen é fã dele, Jon Bon Jovi é fã dele. Eric poderia ter chegado em qualquer um deles, que têm maior relevância em termos de alcance, mas ele pegou o telefone e ligou para mim. Esses prêmios ficam aqui, na caixa torácica.

E o emociona?
Claro! Ver um cara que eu ouvia diariamente, quando era moleque, se tornar uma das figuras mais expressivas da música popular inglesa, gravando três canções minhas… Como foi emocionante, também, quando Chuck Berry veio tocar no Brasil e usou minha guitarra.

“De rei para rei”, né?
Peninha Schmidt, produtor da Warner, telefonou-me avisando que Chuck estava sem guitarra e que só eu tinha a que ele queria. Nunca tinha emprestado minha guitarra, não é lenda. E só emprestei porque era de rei para rei.

[Damos risadas]

Quando o show acabou — e ele era um homem de poucas palavras —, devolveu-me a guitarra e disse: “It’s a nice piece, boy, keep it up”. Ok, mister Berry! Isso me emociona. Ver o cara que criou os primeiros riffs, que deu, nos anos 1950, uma direção sonora ao rock, porque tudo veio depois dele; pô, esse cara tocou com minha guitarra! Tem um valor emocional embutido, porque essa é minha vida, Eliana. Entre minhas emoções e meu raciocínio, às vezes eles andam de mãos dadas, e é maravilhoso; já em outras, um tenta subjugar o outro, e é uma doideira. Permanece assim até hoje, há 71 anos. Ligo meu cérebro quando acordo e entendo por que Federico Fellini fez Amarcord. Porque essa viagem ao passado, quando vamos envelhecendo, muitas coisas voltam como uma espécie de afeto, algo que, talvez, lá atrás, nem tenhamos valorizado tanto, ou tenhamos tratado como banal ou corriqueiro. De repente, aquilo volta, décadas e décadas depois, e ajuda a mostrar quem somos, quem fomos, como o tempo o tratou. Porque o seu maior inimigo, Eliana, é o tempo. O tempo com seu inesgotável exército de dias. Não há cura para as feridas do tempo. Elas apenas envelhecem. E morrem agarradas em nós.

Quando relembra tudo isso, não é de alguma forma uma cura? Desse seu pessimismo incurável
Entendo o que você está dizendo, mas a dor… Pessoas que se dizem muito felizes normalmente são idiotas.

Já leu Cioran? Trouxe um trecho de Nos Cumes do Desespero para você. Posso ler?
Claro.

 O fato de que existo prova que o mundo não tem sentido. Pois de que modo posso encontrar sentido nos tormentos de uma pessoa infinitamente dramática e infeliz, para quem tudo se reduz, em última instância, ao Nada e para quem a lei deste mundo é o sofrimento? Se o mundo permitiu existir um exemplar humano como eu, isso só prova que as manchas do assim chamado sol da vida são tão grandes que, com o tempo, vão lhe esconder a luz. A bestialidade da vida me esmagou e me oprimiu, cortou-me as asas em pleno voo e roubou-me todas as alegrias a que tinha direito. Todo o meu zelo exagerado e toda paixão doida e paradoxal que investi para me tornar um indivíduo brilhante, toda a magia demoníaca que consumi para portar uma futura auréola e todo elã que desperdicei para o renascimento orgânico ou uma aurora íntima provaram ser mais fracos do que a bestialidade e a irracionalidade deste mundo, que despejou dentro de mim todas as suas reservas e negatividade e veneno. A vida não resiste a altas temperaturas. Por isso, cheguei à conclusão de que as pessoas mais atormentadas, aquelas cujo dinamismo íntimo alcança o paroxismo e que não podem aceitar a temperatura normal, estão condenadas à queda. 

[Damos risadas]

Seu pessimismo é mesmo incurável?
Sou pessimista, sim, até como forma de defesa. Quando tem algo para acontecer, sempre digo que não vai dar certo. Sei que ao dizer isso estou apenas me protegendo. Quando dá certo, comemoro; quando não dá, eu já sabia que não ia dar.

Para mim, o pessimista é quem mais consegue enxergar a graça.
Sim, sem dúvida. Outra coisa que está desaparecendo: o humor. O humor está dando lugar a uma raiva vazia. Porque a raiva pode ser um sentimento maravilhoso. Quando você está possuído pela raiva, é uma experiência tão pura quanto a do amor. A raiva cristalina, essa já vivi algumas vezes e gostei.

Sua segurança incomoda seus pares?
Não. Montei o Camisa de Vênus há 42 anos. É muito tempo e não é tempo nenhum. Encontrei o Robério Santana, baixista da banda, meu amigo e parceiro, chegando de Nova York, no auge do punk e do new wave. Sugeri que montássemos uma banda e ele disse “vamos!” — não disse “vou pensar”. Nenhum dos dois tinha experiência pregressa. Quando a banda finalmente se formou, éramos em cinco. Uma banda não fabrica um líder, como, por exemplo, um partido político. Então, comigo, não foi diferente. Eu fazia as letras, algumas músicas, cantava, daí para ser o cara que ia discutir com a gravadora sobre os contratos foi natural. Mas minha ideia era escrever, porque eu não sabia tocar nada, até hoje não sei — e até hoje há quem acredite que sei. Componho bem, Já meu filho, Drake, toca muito! Nos Stones, não há dúvida de que o líder seja Mick Jagger. Até nos Beatles, que era algo bem dividido entre John e Paul, é possível perceber que John era a explosão, quem tinha a ironia, o sarcasmo, era o cara que pensava fora da caixa; no entanto, a decisão do caminho a seguir, o ajustar dos detalhes, a iniciativa de comando eram do Paul. Nunca tinha tido uma visão tão íntima dos Beatles trabalhando como depois de assistir ao documentário The Beatles: Get Back, sobre a gravação do álbum Let It Be. John Lennon, um louco, com aquela japonesa ao lado, incomodando pra cacete. Pô, você tem uma banda, quatro caras ripando, trabalhando, discutindo, e a mulher ali, sem falar nada. Imagino quão irritante aquilo tenha sido. Agora, Yoko Ono tem um mérito incontestável.

Qual? [Rindo]
Ela acabou com os Beatles na hora certa. [Dá risada] Porque daquele momento em diante, eles começariam a cantar com Michael Jackson, Elton John, escorregariam para o pop. Esse mérito não tiro dela. Mas ela é uma mala sem alça do cacete. 

[Rindo] Voltando às suas composições…
O cerne da minha obra, Eliana, é o texto. Uso a música como uma espécie de tapete voador que conduz meus versos por aí.

É assim mesmo que vejo e sinto. E por isso me interessei em entrevistá-lo…
Dediquei-me a isso, desde o começo. Aquele negócio do roqueiro que quer cheirar e comer as menininhas… Bom, cheirar eu nunca gostei… Além disso, muito além disso, eu queria ser levado a sério, queria fazer um trabalho que me gratificasse. Não estava ali apenas pelo “uhull”. Detesto isso!

Já escreveu diário?
Escrevi durante seis meses.

Ele ainda existe?
Sim, ainda existe. Algumas coisas são interessantes, outras não. Não nasci para ser Luluzinha.

Ah, não fale assim! [Rindo]
[Dá risada] Não, não. Só que isso não é para mim.

O que nos faz prosperar em nossos vazios?
Trabalho. Lembro agora de uma frase de Andy Warhol para Lou Reed, contada pelo próprio Lou quando estavam começando com o Velvet Underground. Warhol perguntou ao Lou: “Quantas canções você já escreveu?”. Lou respondeu: “Menti, só fiz três”. Warhol, então, rebateu: “Três? Já deveria ter feito dez!”. Tudo o que importa é o trabalho, que tem uma força motriz impressionante. Passa por tristezas, por alegrias, por ociosidades, por cansaços. Talvez pela afinidade com o que faço eu não passe um dia sem ouvir música. Comecei a colecionar desde cedo e tenho atração pela posse. Não pela posse em si, mas porque, através dela, monto uma história, a vida de alguém, monto a obra de pessoas que me interessam. [Mostra a coleção de vinis e CDs] Está vendo aquela capa do Little Richard? [Aponta para a parede] Fiz meu pai me dar de presente quando eu tinha 10 anos. Fui atraído por essa música fascinante, vigorosa! Não sabia o que era o rock, não falava inglês, mas o som me atraiu de uma forma irreversível. A partir daí, comecei a comprar discos do Elvis, Chuck Berry, Jerry Lee, Beatles, Rolling Stones, Eric Burdon, Jimi Hendrix, Bob Dylan, e a coisa foi embora.

Este livro em minhas mãos, “Ortodoxia Subversiva”, é de um escritor americano, e eu pensei que, se eu tivesse coragem, porque a palavra é coragem mesmo, faria uma versão de figuras brasileiras com a mesma verve. Você abriria meu livro como um ortodoxo subversivo.
[Dá risada] Por que não? Escreva! Eu me diverti muito escrevendo “O Anarquista Conservador”.

Tudo seu é divertido!
É curiosa essa visão de diversão, porque, por exemplo, essa música com a qual você disse que se sentiu abraçada tem um verso que diz o seguinte:

Meus desejos são seus desenganos/ Mas seus enganos são iguais aos meus/ Nós somos a prova viva/ Do imenso mau gosto de Deus”.

Não é muito engraçada. [Dá risada]

Vou presenteá-lo com os livros do Cioran, você vai adorá-lo! Quando publiquei no Instagram da FAUSTO que conversaríamos, me referi a você como um “homem cultivado”. Será um belíssimo encontro o de vocês dois.
“Breviário de Decomposição” é um nome que me soa familiar. Só um minuto, porque agora eu fiquei inconformado. [Procura o livro na estante] Desisto. Estou lendo a biografia do Winston Churchill.

A biografia escrita pelo Andrew Roberts? Eu o entrevistei logo quando lançou o tomo.
Conversou com ele? Que muito bom!

Voltando ao começo, só parece contraditório meditar e logo após ouvir uma canção como “Temporada no Inferno”.
O Walt Whitman dizia exatamente isto: sou contraditório, contenho multidões.

Creio que, quando você aceita a realidade, a contingência, você alcança um humor refinado, sabe
Sim.

A intenção do autor é importante para a compreensão da obra?
Provavelmente sim, a não ser que divague por labirintos muito pessoais; mas, apesar disso, também devo dizer o seguinte: fiz uma canção em 1989 chamada “Quando Eu Morri”, que é um relato sobre ácido lisérgico, que usei em larga escala quando era muito jovem, entre 19 e 22 anos. Depois que a canção ficou pronta, embora me agradasse bastante, pensei, equivocadamente, que ninguém se identificaria com ela, porque era muito pessoal.

Eu sentia tanto medo, só queria dormir cedo/ Pra noite passar depressa/ E não poder me agarrar/ Noites de garras de aço/ Me cortavam em mil pedaços/ E no outro dia eu tinha que me remendar

O LSD é uma droga muito poderosa, que pode levar por caminhos inenarráveis de prazer e de certa percepção, que vai além daquela do dia a dia. O ácido tem a capacidade de transportar para um universo de onde você observa de onde veio, embora nem sempre você receba seu passado com apreciação; às vezes, acaba recebendo sem nenhuma apreciação. Por outro lado, eu era muito jovem, inexperiente, o LSD era uma droga de que você não tinha como checar a procedência. E é curioso porque Mick Jagger, Marianne Faithfull, Keith Richards e Anita Pallenberg, os dois casais, eles estiveram em Arembepe em 1968 e ficaram deslumbrados com aquelas dunas brancas. Hoje, Arembepe virou cidade de férias de gerente de banco. Naquela época, não tinha cidade, avenidas, eram só praias, dunas, estrelas, lua e sol incandescente. Para quatro ingleses acostumados com o clima de Londres, cinzento por nove meses, eles ficaram alucinados. Então, quando voltaram para Londres, começaram a falar que era o lugar mais sensacional para tomar ácido, ninguém pedia autógrafo, foto. Resultado: o mundo inteiro — em pequenas partículas, evidentemente —, começou a ir para Arembepe. Talvez Salvador tenha começado a ter contato com as pessoas que consumiam LSD antes mesmo de São Paulo e do Rio de Janeiro. Então, esta canção, “Quando Eu Morri”, é uma letra muito mais sensitiva do que propriamente uma experiência que foi traduzida com a luz da racionalidade. Ou seja, me enganei. As pessoas adoram essa música, e já flagrei algumas chorando na minha frente, diante do palco.

A verdade é que não temos ideia do alcance daquilo que criamos…
Quando eu tinha 20 anos, sabia de tudo, tudo estava certo. Não havia a possibilidade de erro e de falha, tudo era impecável. Todas as minhas atitudes eram impecáveis. Só que o tempo vai passando e fui descobrindo, Eliana, que a grande vantagem para mim, de não ter ouvido ninguém, no sentido de ter um conselheiro, um guru, um ídolo, é a seguinte: quando bati minha cabeça na parede — e já bati várias vezes —, não tive ninguém a quem culpar a não ser a mim mesmo. Culpar alguém é infantilidade. Eu não culpo ninguém pelos meus equívocos. Todos eles, eu os cometi.

Em algum momento, no percurso de amadurecimento de um homem, a ereção passa a ter hora?
Não. Evidentemente que a noite proporciona uma ambiência mais propícia do que ao meio-dia, ao sol de Salvador.

E em termos de afeto?
Afeto não tem hora. É tênue e ao mesmo tempo é quase que permanente, se você tem uma relação boa com a pessoa. Diferentemente do sexo, que é algo que dura menos tempo. Um ato de ternura, como você está sugerindo, pode durar dias e dias. Se você tem uma pessoa com capacidade para dedicar essa ternura — e você a recebe de volta —, há quase que uma contradição, porque, apesar de ela ser tênue, de não ter rompantes como os do sexo, os desejos insaciáveis; talvez, por isso mesmo, ela perdure mais. Outro dia, vi num programa de  TV a cabo uma cena maravilhosa: dois leões e umas dez leoas. As leoas cuidando da prole e indo caçar e os leões com aquela juba, ostentando seu poder, com a língua de fora. De repente, um deles dá três saltos em sequência e agarra uma fêmea por trás e manda ver! Quando ele acaba, sai como se nada tivesse acontecido. De tarde, o leão faz a mesma coisa com outra leoa. Conversando com a Inês, com quem sou casado há 37 anos, eu disse a ela: “Olha que curioso, isso que você viu aí nada tem a ver com amor. Isso é puro desejo”. Por isso que as fêmeas, em sua grande maioria, precisam ser beijadas, lambidas, para os dois irem adiante. Qual é a diferença do homem para o leão nesse âmbito? Nenhuma.

Até o fim da vida?
Sim. O desejo do macho se manifesta de maneira totalmente diferente do da fêmea. Machos têm ereção. A fêmea precisa ser provocada. A fêmea precisa ser lambida, acariciada, precisa se sentir desejada, é parte da natureza da fêmea. O macho está ali para prover e perpetuar a espécie, e ele precisa da fêmea! Não é uma medida de mais e de menos. A ausência de qualquer um dos dois estraga todo esse planejamento. Em “O Anarquista Conservador” há um verso que se adapta a isso:

Essa frescura de novo normal/ Que você chama diversidade/ Será por ignorância / Ou simplesmente ingenuidade/ Tudo que sempre existiu/ Continua como sempre foi/ Olhe nas tetas da vaca/ E veja o membro do boi”.

Nunca peço desculpas por ser mulher.
E você tem toda a razão. Mas essa sociedade em que estamos é preenchida por valores falsos, que não correspondem à realidade. Estava ouvindo um disco de 2001, de uma cantora americana chamada Lucinda Williams, que se chama Essence, e ela canta: “Eu quero um homem que me coma”. Evidentemente que a vida sexual das pessoas só interessa a elas. Agora, o que não pode é se sentir superior.

Hoje ainda podemos falar a verdade?
Se você falar a verdade e essa verdade não estiver em sintonia com o poder, ela é mentira. Ora, estudei em colégio de padres, em Salvador, e eu era semi-interno, entrava 7h30 e saía às 17h, tinha aula de religião, as missas de domingo eram obrigatórias. Havia um confessionário e aos 14 anos, no auge da minha explosão de testosterona, eu me ajoelhava ali e dizia: “Padre, pequei”. O “pequei” era muito interessante, porque você contava, por exemplo, que tinha desejado o sapato do colega, que tinha xingado a mãe, que pegou a caneta do pai escondido. Essa expressão “eu pequei” era alusiva à masturbação. Era um código implícito. Você confessava todos os pecados, mas esse era só dizer: “Eu pequei”. E o padre pedia para não comentar com o coleguinha. [Dá risada] Daí eu rezava muito rápido, ia para casa correndo e trocava o confessionário por uma foto de Raquel Welch de biquíni, que era uma coisa maravilhosa. [Dá risada]

O que gosta em literatura?
Leio e releio Philip Roth, um dos grandes escritores do século passado, que escrevia romances disfarçados de confissões e não, como todos, confissões disfarçadas de romances. Gosto muito de Oscar Wilde, como ele é ferino em seus comentários sobre a sociedade. O Retrato de Dorian Gray, adoro por causa de Lord Henry Wotton, que é de uma ironia! Ele é ferino. Imagine, eles estão numa festa e Lord Henry Wotton comenta com Dorian Gray a respeito de uma velha: “Olha lá, ela parece um evangelho mal encadernado”. Que maravilhoso! Se eu falar de Shakespeare, vai parecer que é pretensão, mas penso que ele foi a pedra fundamental de tudo. Não somente eu, claro, muitas pessoas pensam assim. Nos últimos dez anos, tenho sido muito seletivo quanto aos lugares a que vou. Quando eu saía mais, ouvia as pessoas comentarem: “Shakespeare é maravilhoso”. Venha cá, como assim maravilhoso? Shakespeare é sangue, é ódio, é inveja, é traição, Shakespeare é um horror. [Ênfase típica] Leio Tom Wolfe, Paulo Francis, homem culto, inteligente, pretensioso. Mas tinha uma imensa qualidade: até quando eu não concordava com nada do que ele escrevia, eu apreciava a maneira como escrevia.

Só autores insolentes…
Comecei a me interessar por literatura aos 16 anos. Li Aldous Huxley, As Portas da Percepção. Não entendi porra nenhuma. Mas sabe o que é curioso? Em vez de me amedrontar, aquilo me estimulou.

E do que mais gosta?
Adoro filme noir. Aquela atmosfera da fumaça saindo dos bueiros, aquelas ruas molhadas, aquela sensação de desesperança, a violência implícita e explícita, as mulheres fatais. O cara casado, com filhos, que ia do trabalho para casa, num belo dia entra no elevador e cruza com uma mulher espetacular, e, a partir dali, sua vida vira de cabeça para baixo, adentra num território inóspito, rampa da decadência, e termina espancado. Ele perde o emprego, o casamento, vai parar numa cadeia, cheio de hematomas; mas, mesmo assim, ele consegue, naquela cama completamente desconfortável de cela, olhar para o teto e pensar: “Mas aquela bocetinha”. [Dá risada]

 

a.T – d.T

EXPEDIENTE:
Revisão: Túlio França.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.