São 10 milhões de pessoas atentas a tudo o que ele faz. Esse é o número de seguidores de Marcelo Tas. No ar desde… 1983, é figura das mais conhecidas, quase de casa. Só não quando fala algo polêmico. É quando muitos desses milhões provocam uma enxurrada de ódio que corre direto para as redes do rapaz de 57 anos. Dependendo de sua idade, você pode gostar dele por Ernesto Valera. Ou talvez pelo professor Tibúrcio! Mas você pode também odiá-lo, principalmente pelos sete anos em que foi âncora do inesquecível CQC. Nascido em Iturevava, interior de São Paulo, jura ser um homem do campo. Às vésperas de lançar Basta de Cidadania Obscena, livro em parceria com Mario Sergio Cortella, Tas conversa com a FAUSTO com exclusividade sobre jornalismo e propõe uma nova reflexão sobre os já tão banais politicamente correto e ódio na internet. Bom, sobre os dois últimos assuntos, ninguém duvida que haja pessoa melhor para falar, certo?
FAUSTO – Anda com saudade dos tempos em que não se ouvia a expressão “politicamente correto”?
Marcelo Tas: Saudade é uma palavra que não existe no meu vocabulário. Não nutro amor pelo passado nem creio que valha a pena guardar preciosidades em caixinhas, que ficam esperando a hora de voltar a acontecer. E não creio por uma razão simples: a possibilidade de virar fantasia é altíssima. Quem me ensinou isso foi minha avó Julieta, senhora muito brava, ranzinza, branquela da cor de iogurte, o oposto de meu avô João, um baiano engraçadíssimo, negão, de olho azul. Um dia, enquanto comia uma goiaba com ela, na varanda da fazenda – sou homem do campo – de repente ela fala: “as goiabas de antigamente eram mais gostosas!” [Gargalha]. Não gosto dessa arrogância de falar que no passado tudo era melhor, mais legal, que as pessoas eram mais inteligentes. Não gosto por uma única razão: não é verdade. [Dá risada]
Mas estamos falando de algo muito concreto: vivemos na era do politicamente correto…
O politicamente incorreto mudou, meu peso mudou, meu cabelo mudou. Dizer que era melhor, não concordo. Esse julgamento é falho. Muitas coisas mudaram, não só o conceito de politicamente correto. Agora, se você me perguntar se bato de frente com o politicamente correto, eu bato!
Sua trajetória foi construída dessa forma…
Sim. Bato de frente e creio que essa é a nossa tarefa. Mas você jamais me verá com saudade. As pessoas falam: “na época da Tropicália” ou “na época da Bossa Nova”. Acontece que quem fala isso era jovem nessas épocas, a vida era melhor. Hoje, a pessoa é velha, está cansada. Ou seja, a saudade é de ser jovem. Creio ser mais importante renovar o nosso olhar, pensar que estamos vivos em 2017. Não é fácil estar vivo em 2017, mas também não era fácil em 1967, quando eu estava entrando na escola, descobrindo os Beatles… Nem adiantaria sentir saudade, voltar no tempo não é opcional.
Ou seja, essa conversa não nos levará a lugar nenhum… [Dá risada]
Mas é muito necessária porque temos uma fantasia sobre isso. Sobre o futuro, principalmente. Esse ponto é uma fantasia sobre o passado, mas também fantasiamos o futuro. Especialmente no Brasil. Fomos treinados para pensar que vai melhorar, que vai chegar a hora. É um olhar sebastianista. Dom Sebastião, que morreu na Batalha de Alcácer-Quibir, ele vai voltar e finalmente Portugal vai ser um grande império. Acho até bonito esse arco que se criou na narrativa do Dom Sebastião, mas temos que tomar cuidado para não ficarmos presos, esperando Dom Sebastião, ou Luiz Inácio, ou Fernando Henrique, seja lá quem for.
O desagradável é matéria-prima para o humor?
O humor é sempre um olhar sobre o que dá errado. Concordo com isso. Não é possível fazer humor sobre uma mulher maravilhosa, cheirosa, maquiada. Humor se faz sobre a maquiagem que deu errado, sobre o tombo da modelo na passarela.
Estamos evitando a todo o custo o desagradável. Não queremos mais lidar com ele. Por isso o politicamente correto impregnou tanto. Ou vai nos levar à chatice ou à vida que não é humana.
Sim, exatamente. É uma ótima definição. Mas neste caso é bom entender como abordar o desagradável. É um dos motivos pelos quais não gosto dessa coisa de saudade. Vou lançar nesta semana, com o Mario Sergio Cortella, um livro que se chama Basta de Cidadania Obscena. Tem muito a ver com a ideia de ilusão – mais uma vez – de que é possível viver em bolhas, confortável. É um livro sobre a contemporaneidade. O mundo conectado cria essa ilusão. Você acredita que tudo o que existe está no Google. Se você quer falar com os amigos, é só acessar o Facebook. Se quer ver um sorvete derretendo no por do Sol, tem o Instagram. Lá só tem coisas fofas. Precisamos ter muito cuidado para não cair nessas ciladas, que são as ilhas onde o desagradável é evitado. No livro, chamamos a atenção para isso. Navegar em um mar de pores do Sol no Instagram dá uma sensação gostosa, funciona quase como ansiolítico, estado que chamo de “modo avião”. Você vai navegando, nutrindo a ilusão de que todo mundo te curte, um coraçãozinho aqui, outro ali. Só que aí na Avenida Paulista você vê uma pessoa usando crack, ou protestando, e você fica incomodado. Você não queria encontrar o desagradável. Ou seja, você não queria encontrar o mundo.
Já viveu uma experiência marcante nesse sentido, nas redes sociais?
Sim. Minha família é imensa. Durante a adolescência e juventude, ninguém morria. Fiquei uns tempos inferiorizado porque eu ia aos velórios dos parentes dos meus amigos e na minha família ninguém morria. Eu não podia receber as pessoas e me sentia muito mal. [Dá risada]
Por que ninguém morria?
É, mas finalmente as pessoas começaram a morrer e, obviamente, sofri bastante. Vi que não era algo agradável. Uma das últimas pessoas que morreram foi tia Neguinha, irmã da avó Geralda, com quem tive uma relação de afeto gigantesca. Ela morreu há um ano. No velório, que foi muito simbólico porque ela foi a última de uma geração, e eu estava muito abalado, formou-se uma imagem linda. Cemitério pequeno em Ituverava, debaixo de chuva, poucas pessoas, os guarda-chuvas, muitas flores… Na hora de descer o caixão, tirei uma foto e senti o impulso de compartilhar aquele momento. Sou seguido por mais de 10 milhões de pessoas. Escrevi pouco sobre despedida e publiquei a foto no Instagram. Recebi uma reação tão violenta! Muitas pessoas não suportaram aquela imagem. No mundo lindo que vivem, eu estava falando de morte. Olha que loucura! E eu nunca tinha parado para pensar que no Instagram não existe morte. O curioso é que a foto que publiquei tinha “padrão Instagram” [Dá risada].
E quais foram os comentários?
Eram louquíssimos. Como eu tinha coragem de postar o rosto de um cadáver. Antes de ler outra vez – obviamente à noite, não perdi tempo com essa bobagem – pensei: “será que coloquei o rosto da tia Neguinha?” Quando revi, nem o caixão aparecia. Mas as pessoas viram o rosto do cadáver, viram em mim uma tentativa de faturar em cima da morte da minha tia-avó. Foram reações que me deixaram muito impressionado.
E é algo que tem significados muito profundos…
O desespero por estar diante de algo insuportável.
Você é muito odiado nas redes sociais?
[Dá risada] Muito, seria injusto dizer. Recebo mais afeto do que ódio, mas é claro que sou odiado.
Enche o saco ou você não liga?
É muito ruim receber uma agressão. Dói bastante. Quem disser que não dói é masoquista ou mentiroso.
Você deve ter acompanhado a polêmica que envolveu Leandro Karnal e a foto com Sérgio Moro. Penso que para ele ter apagado a foto, deve ter chegado ao limite do suportável…
Fiquei sete anos no CQC. Então, fui bastante treinado. Era um programa que trazia conteúdos muito polêmicos. Ultrapassávamos limites, intencionalmente. Foi a fase que mais expressei minha opinião de forma contundente e muitas vezes de maneira que vou confessar irresponsável – embora dentro de um contexto lúdico, era um programa de humor, havia liberdade poética de brincar com coisa séria. Então, obviamente tive que dialogar muito com o ódio, e aprendi com isso. Imagino que para figuras como o Karnal, que vivem em ambientes mais fechados, apesar de ele ser uma figura pop, deve ser assustador. A TV aberta me deu musculatura para lidar com o ódio e procurei aprender com ele. Se posso dar uma receita – e fica a dica para o Karnal –, eu criei uma pasta no meu computador chamada “Amam Me Odiar”. Mantenho-a desde o CQC. Sempre que recebo uma agressão incompreensível, coloco lá e nunca respondo imediatamente. Creio ser um erro enorme, por exemplo, apagar uma foto. Por isso não apaguei a foto do sepultamento da tia Neguinha. Não existe tecla “delete” na vida. Não tem como apagar uma coisa e pronto, dissolveu-se aquele ruído. Não dou relevância para o ódio, mas jogo as agressões nessa pasta, que é uma espécie de limbo, já que estamos na Fausto [Gargalha]. E lá ficam alguns diabos e anjos olhando para aquele ódio. Depois, procuro olhar a pasta sem julgamentos. É tarefa dificílima, mas tento aprender com tudo isso. E tenho aprendido.
O que é possível aprender em situações como essa? Você está muito religioso…
Gosto dessa discussão de religião, mas não é religioso. Talvez, espiritual. O espiritual, para mim, não tem nada de esotérico, é bom deixar claro. É uma tentativa de não julgar, que, aliás, vamos combinar, é impossível. Mas é lutar contra essa lei que nos estimula a julgar o tempo todo. Como aprendo? Pensando, por exemplo: “o que está acontecendo com esse cara?” Eles não têm ideia do que faço. Com o Big Data, consigo descobrir o endereço, nome dos filhos, da mulher… Vejo essas pessoas com uma abrangência bem maior. Sei o time que torcem, sei que quando vão assistir aos jogos, por exemplo, batem em outras pessoas. Aquilo que me fazem passa a ser quase um carinho. Relativizo a angústia que eu estava vivendo.
É o outro, não você…
Aquelas pessoas estão com seriíssimos problemas, não sabem lidar com a diferença, com aquilo que os ameaçam. Percebo que para algumas pessoas sou uma ameaça. Muitas vezes até de discernimento. Provoco essas pessoas para entenderem o que não querem entender.
Publiquei uma entrevista com o Ricardo Rangel. Uma das perguntas foi sobre as pessoas passarem a vida acreditando em algo e, de repente, descobrirem que não é verdade. Isso as levam a ter que se perguntar quem elas são, uma vez que a noção que temos de nós mesmos está ligada, obviamente, às nossas crenças…
Não estou dizendo, é claro, que sei mais do que essas pessoas, mas o que elas não toparam comigo foi o diálogo. Como sou um comunicador, estou emitindo uma opinião, estou selecionando um artigo de jornal, um vídeo, que é o que faço no Tasômetro. A mera opinião que tenho incomoda. Gosto do diálogo. E não me julgo missionário, só estou querendo aprender melhor sobre mim. É algo egoísta, até. Estou querendo saber quem sou, aí converso com alguém, como estou fazendo com você. E acredito muito que é assim que caminhamos. Principalmente com quem não concordamos. Aquele mundinho da bolha, que evita o desagradável, é um mundinho de pessoas que têm a mesma opinião.
E isso é grave?
Isso é muito grave e está acontecendo inclusive na mídia. Vejo muitos programas que têm pessoas que pensam do mesmo jeito. É um confirmando a opinião do outro. Creio que não é isso que as pessoas querem. As pessoas querem confronto, debate, que é o procuramos fazer no Papo de Segunda, do GNT, por exemplo. Somos quatro pessoas que pensam muito diferente sobre a maior parte das coisas. Nos meus embates na internet, procuro ouvir quem pensa diferente de mim, inclusive quem me odeia. É um esporte radical perigoso, mas que todos deveriam praticar. Acho necessário.
Tudo isso pode nos levar a uma frouxidão irreversível?
A tendência da humanidade é ser frouxa, naturalmente. A lei da gravidade já nos puxa para a frouxidão [Dá risada]. A tendência é a preguiça. E aí surge a reação: a poesia, a arte, a ciência, os rebeldes, os filósofos. Todo mundo fala: “vamos lutar contra essa lei da gravidade. Não é possível que sejamos esses merdas.” Quando cheguei a São Paulo, o que me fascinou foi o teatro. Assisti à peça Escuta Zé, com a Marilena Ansaldi, no teatro Ruth Escobar. Fiquei totalmente perturbado. Eu devia ter 15, 17 anos. Quando saí do teatro, pensei: “depois disso aqui, não posso ser este merda que eu sou.” [Gargalha].
O jornalismo está agonizando?
Está agonizando e renascendo, sem dúvida nenhuma. A agonia tem a ver com a inflexibilidade das mentes e veículos que se recusam ao diálogo. O jornalismo ia muito bem quando considerava o leitor, o ouvinte e o telespectador. Só que esse leitor, ouvinte e telespectador começou a falar, escrever, fotografar e fazer vídeo. Aí o jornalismo entrou em crise. [Gargalha]. Essa é a oportunidade do renascimento. Não porque o público seja gênio, que saiba mais. Aliás, nunca o público precisou tanto do editor e do jornalista. Mas, finalmente, temos a chance de entender o versículo um da comunicação: “comunicação não é o que eu estou falando, mas o que você está ouvindo.” Não tenho a menor ideia do que você está ouvindo. Não tenho controle sobre isso. Estou falando, você está ouvindo e vai editar o que estou falando, e vai ter outra pessoa que vai ler o que estou falando. Só vou saber o que falei quando eu ler. E mais! Quando eu receber os comentários de quem leu. Esse ciclo nunca existiu. Tinha aquele me-engana-que-eu-gosto das sessões de cartas na televisão. Já o rádio, por incrível que pareça, sempre foi um veículo mais saudável com a era que vivemos porque as pessoas ligavam para a rádio. O rádio é um veículo de natureza digital. A televisão, o jornal e as revistas, não. Veja bem, amo televisão, jornal, revista. Sou consumidor voraz de tudo isso, mas te obriga a esperar, a ficar calado. Os que estão agonizando são as viúvas das Olivetti. São pessoas com saudade. Está vendo porque tenho problema com essa palavra? Mas falo isso com dor no coração, porque há muitas pessoas que amo sofrendo, quando não deveriam. Estamos entrando em uma era que pode ser – não estou dizendo que vai ser – a era de ouro da comunicação.
E estamos assistindo a dois fatos que podem potencializar tudo o que você falou, que são: Lava Jato, aqui, e Trump nos Estados Unidos. Esses assuntos reacenderam o interesse pelo jornalismo?
Não tenho dúvida. São fenômenos que aconteceram por uma disrupção. No caso do Trump, é uma disrupção em nossos medidores, que são os institutos de pesquisa, o jornalismo antigo. Trump viu essa disrupção e a usou com muita sagacidade. A Hillary se comportou como uma política antiga, absolutamente estudada, teleprompter, que fingia que não estava acontecendo nada. O Obama também é do teleprompter, mas é mais esperto. Ele tem mais jogo de cintura, é elegante, um cara que joga basquete, soube usar muito bem as redes sociais. Voltando à palavra que já usei, ele soube dialogar. Entender o jogo político por trás desse diálogo. A Hillary não quis falar sobre as acusações contra ela, inclusive de corrupção. Os eleitores não se veem mais representados pelos políticos. Só que os políticos não enxergam isso. O Temer é o exemplo mais claro. A Dilma também, não sabe falar, é muito arrogante. Se você olhar para trás, todos os políticos têm essa marca, de não saber ouvir. O Lula é o mestre. Ele só sabe fazer discurso, não sabe dar entrevista. Sem falar que ele só fala com quem concorda com ele, reforçando a ideia que já conversamos. Veja bem, eu abomino o Trump, mas ele teve inteligência para perceber que não existe mais representatividade na política.
O que é cidadania obscena?
Cidadania virou ferramenta de marketing. É bonito ser uma empresa ou pessoa que pratica cidadania. Existe uma obscenidade na abordagem dessa função, que é fundamental. Justamente quando você separa o desagradável, que é inevitável na hora de praticar a cidadania. Com os algoritmos ou com a capacidade que temos de nos esconder no anonimato, você pode enviesar para a cidadania obscena. Ou seja, você faz parte de um falso diálogo que no fundo está apenas alimentando o casulo onde vive grande parte da população: clãs acadêmicos, onde todos se amam e se dão notas altas; clãs políticos ou artísticos. Você pode se considerar o rei da cidadania e nem perceber que perdeu o contato com a realidade. Há exemplos muito evidentes, que cito com dor no coração, como a Marilena Chauí. Ela era uma pensadora que eu respeitava – e agradeço a ela por ter traduzido grandes livros.
Uma grande professora…
É uma grande professora, traduziu e escreveu livros fundamentais, mas hoje comete absurdos. Que triste vê-la sofrendo tanto, gritando contra a classe média, ou contra fantasmas que estão dentro dela, inclusive porque ela é da classe média. Ninguém representa melhor a classe média do que alguém que ganha o que ela ganha, que consome o que ela consome e mora no bairro onde mora. Ela é a classe média. De repente, ela surge contra um gigantesco fantasma que é ela mesma. E não quer discutir isso. Ela quer discutir os problemas de outras pessoas. Só que esses problemas são dela, são meus. Demonizamos a classe média, mas, curiosamente, para a classe pobre, o mais importante não tem nada a ver com o que os acadêmicos dizem. Não tem nem a ver com renda, mas com hobby, como a pessoa é vista na família. Voltamos ao assunto dos medidores. Essa pesquisa do Instituto Locomotiva é fantástica. Precisamos entender que o mundo não é mais dividido apenas em classes sociais, que essa divisão é uma régua muito antiga. Os desejos das classes menos favorecidas são muito parecidos com os desejos das classes mais favorecidas. E não tem nada de errado nisso. Só precisamos recalibrar essa conversa.