Villa-Lobos, o grande maquinista

Pronto para partir, o maquinista Heitor Villa-Lobos embarca em seu veículo, o qual chama carinhosamente de O Trenzinho do Caipira.

Os vagões são formados por flauta, oboé, clarinete, fagote, ganzá, chocalhos, raganella, reco-reco, pandeiro, triângulo, trombone, trompas, piano e cordas.

Assim que se sente preparado, Villa-Lobos dá início à viagem que o levará à imortalidade, ao ufanismo.

Aos desavisados, uma informação!

A estação é um palco, o trem uma orquestra e o maquinista um maestro.

A viagem acontece por meio de instrumentos musicais vivos, unidos. O trajeto é curto, dura pouco mais de cinco minutos, mas é o suficiente para encantar e provocar todas as sensações comuns quando se está diante de algo genial.

A obra e o autor. O Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos, é parte da peça Bachianas Nº 2, composta entre 1930 e 1945.

Maestro Heitor Villa-Lobos.

Do menino solitário ao homem convicto, o compositor experimentou, ao longo da vida, sentimentos controversos. Não sabia como poderia se tornar quem ele não tinha ideia exata de querer ser, embora soubesse que desejava ser alguém diferente.

Nascido em 5 de março de 1887, foi uma criança bastante quieta. Filho de uma mãe amorosa, Noêmia Villa-Lobos, mas de um pai severo e distante, Raul Villa-Lobos, o garoto adotou a música como sua “fada madrinha”, como o próprio músico descreveu. Aos oito anos, foi fortemente influenciado por uma tia, professora de piano, quem apresentou ao menino a obra de Bach, sua maior influência e paixão.

Nos anos de infância e adolescência, a música serviu para contornar as pedras em seu complicado trajeto interno. Avesso aos estudos, só pensava em música e em fazer música. E apesar do seu caráter rígido, Raul Villa-Lobos foi um grande apreciador de música, tendo incentivado o garoto a estudar e a se dedicar ao assunto.

Depois da morte do pai, Heitor foi escondido à procura de um amigo de Raul para ter aulas particulares, pois Noêmia não aprovava a vocação do garoto. Aos 18, almejando a liberdade e a conquista de um lugar ao sol no meio musical, fugiu de casa e passou a viajar pelo Brasil, aventurando-se em diversos projetos.

Anos depois, Heitor voltou para casa, casou-se com Lucília Guimarães, exímia pianista e figura fundamental em seus primeiros anos de trabalho profissional. Além de apoiá-lo tecnicamente – sua formação em música assim permitia – ainda bancava quase todo o sustento da casa trabalhando como professora, enquanto Heitor dedicava-se à carreira com determinação.

Como diz o dito popular, “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Um dia Villa-Lobos conseguiu impressionar e começou paulatinamente a construir sua imagem de mito nacional. A grande verdade é que ele sempre foi muito convicto de sua originalidade.

Para o regente titular da Orquestra Sinfônica Brasileira Jovem e integrante do Departamento Artístico da Fundação OSB, no Rio de Janeiro, Mateus Araújo “a relevância de Villa-Lobos para a cultura nacional é incomensurável, sua obra é o próprio Brasil em música”.

Segundo Araújo, junto às técnicas da música de concerto das primeiras décadas do século XX, que inclui as obras de Debussy, Stravinsky e outros: “Villa-Lobos agregou os elementos mais característicos da música brasileira e conseguiu lograr um estilo inconfundível e uma projeção internacional sem precedentes, pela grandeza e originalidade de sua obra.”

Para o regente, Villa-Lobos é o maior representante de nossa música:

“A criação de Villa-Lobos é imorredoura, imensamente diversa e rica para ser relevante enquanto houver vida cultural no mundo, sem fronteiras de tempo e espaço. Nos dias atuais, a percepção musical mudou bastante, mas sempre haverá interesse pela nossa história e por aquilo que conseguimos realizar e comunicar melhor. A música de Villa-Lobos tem elementos rítmicos e melódicos de grande acessibilidade, o que contribui para uma maior difusão. Além disto, há o tratamento harmônico, instrumental ou vocal de suas peças que sempre será objeto de estudos e análise em toda a comunidade musical. Alguns temas de Villa-Lobos são reconhecidos praticamente como música popular. Mas além desta roupagem atraente, o conteúdo é tão profundo e colorido quanto se quiser mergulhar. Sua música é carregada de imagens e ideias que levam tempo para se explorar. Neste sentido, ainda poucos brasileiros foram revelados à música de Villa-Lobos, que vai muito além dos temas famosos. O patrimônio humano da obra de Villa-Lobos é proporcional ao patrimônio físico geográfico do Brasil. E de alguma precisaríamos todos ter uma consciência do patrimônio físico e geográfico ao lado do nosso patrimônio humano.”

As influências eruditas nas obras de Villa-Lobos podem ser divididas em quatro períodos, como define Paulo de Tarso Salles, no livro Villa-Lobos: processos composicionais, de 2009.

A primeira fase, de 1900 a 1917, os diálogos acontecem com Wagner, Cesar Frank e Debussy. De 1918 até 1929, já na segunda fase, Villa-Lobos entra em contato com a obra de Darius Milhaud, o compositor francês que se tornou conhecido pelo uso da politonalidade, que são múltiplas tonalidades usadas ao mesmo tempo, e também com o compositor Vera Janacopoulos e Arthur Rubinstein.

Nesta segunda fase, Villa-Lobos passa a compor formas e estruturas mais livres, quando passa a flertar com o popular, com o folclórico. É também nesta época que o músico passa uma temporada na Europa e começa a se tornar conhecido por sua ousadia e peculiaridades musicais. Tanto é que, em 1923, Janacopoulos insere obras de Villa-Lobos em suas apresentações, o que repercute positivamente na imprensa.

De volta ao Brasil, em 1925, a recepção não foi tão boa quanto Villa-Lobos esperava. O compositor continuou se sentindo pouco reconhecido, mas conseguiu perceber um amadurecimento em si mesmo. Paulo Renato Guerios, no livro Heitor Villa-lobos, de 2003, explica o forte impacto que a estadia em Paris, em 1923, causou no músico:

“Efetivamente, foi em Paris e não ao longo da Semana de Arte Moderna que Villa-Lobos descobriu-se brasileiro. Até sua ida para a Europa, ele buscava demonstrar aos outros e a si próprio que era um artista. Já havia composto algumas obras de caráter nacional, mas apenas projetos temporários. A partir de sua viagem, descobriu-se e passou a construir-se como artista brasileiro. Desde então, comporia músicas brasileiras e faria preleções emocionadas sobre sua nação e seu pertencimento ao imaginário nacional.”

A terceira fase, que vai de 1930 a 1947, sob o governo de Getúlio Vargas, Villa-Lobos transforma-se em um símbolo da cultura brasileira. Sua música desprovida de preconceitos, com um quê de boemia e do jeitinho brasileiro, encanta e o coloca no lugar onde sempre quis estar, entre os aclamados.

Na quarta e última fase, de 1948 a 1959, atendia a encomendas e apresentava suas obras nos Estados Unidos e Europa. É importante ressaltar que as mudanças propositais de fases e estilos provam que Villa-Lobos associou seu talento a uma carga de estudo e trabalho intensos, sempre visando seu desenvolvimento intelectual. Os anos de viagem pelo Brasil enriqueceram-no também, o que se tornou notório na série Choros e Bachianas Brasileiras.

Segundo Vasco Mariz, no livro Heitor Villa-Lobos, de 1949, cuja obra sobre o compositor ainda é a mais consultada, foi nestas viagens que Villa-Lobos foi despertando o sentido de brasilidade e “assimilando todas as manifestações musicais do país, condensando-as em sua obra”.

Antes de seu reconhecimento, durante os anos de ouro e depois de sua morte, Villa-Lobos foi definido por muitos estudiosos da música e da cultura, e todos eles reconhecem sua genialidade, ousadia e nacionalismo. O parecer de Valdir Montanari, publicado no livro História da Música – da Idade da Pedra à Idade do Rock, de 1988, sobre o gênio Heitor:

“Villa-Lobos fez uma varredura da nossa cultura escrevendo peças inspiradas em praticamente todos os setores populares. Importante em sua obra é a diversidade instrumental, valorizando inclusive o violão, que simboliza bem o Brasil na área das cordas”.

Tendo ganhado destaque também no Livro de Ouro da História da Música, de Otto Maria Carpeaux, uma obra de 1958, o crítico acredita que a arte de Villa-Lobos significa a “declaração de independência” musical do Brasil. Outro autor que não poderia faltar, Gilberto Mendonça Teles, em Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, de 1976, um tanto mais romântico e entusiasmado, vê Villa-Lobos como mais um importantíssimo artista que reconfigurou as artes:

“O movimento espiritual, modernista, não se deve limitar unicamente à arte e à literatura. Deve ser total. Há uma ansiada necessidade de transformação filosófica, social e artística. É o surto da consciência, que busca o universal, além do relativismo científico, que fragmentou o Todo infinito. Se a Academia se desvia desse movimento regenerador, se a Academia não se renova, morra a Academia. A Inteligência impávida, libertadora e construtora, animada do espírito moderno que vivifica o mundo, transformará o Brasil. A Academia ignora a ressurreição que já começa, mas o futuro a reconhecerá. Ela aponta no pensamento e na imaginação de espíritos jovens. Vem na música de Villa-Lobos que dá à nossa sensibilidade um ritmo novo e poderoso.”

O Trenzinho do Caipira é uma das obras mais encantadoras e instigantes de Villa-Lobos. Pela alusão simples à partida de um trem, a obra – que de simples só tem o título – possui um dos processos composicionais villalobianos mais complexos.

Primeiro: a cadência crescente de sons causa a impressão de movimento e velocidade. Dissecando a composição, tratando especificamente de sua instrumentação, este início é feito com instrumentos de percussão – chocalhos, ganzá, reco-reco, pandeiro e triângulo – que formam o composto rítmico, que simulam as engrenagens de um trem dando partida.

Os sons que aludem à partida da Maria Fumaça são feitos por violinos. A fumaça tem pouco som, o que dá para notar nos primeiros compassos, divididos em quatro notas, desde a mais grave da tessitura até o agudo – e é importante dizer que foi utilizado uma surdina, que por sua vez inibe o brilho do violino, deixando o som um tanto opaco.

A locomotiva começa a correr pelos trilhos. É no compasso 8 que se ouve o apito do trem, quando começam as intervenções das madeiras – compostas pelos instrumentos flauta, oboé, clarinete, fagote.

Quando a melodia começa, a partir dos primeiros violinos, o acompanhamento que nos remete ao trem continua acontecendo, porém em um ritmo mais estável do que na seção inicial. A primeira parte da melodia está nos violinos. Ela começa acontecer no compasso 26, depois dos efeitos apresentados na introdução. O nome desta melodia é cantábile – entre tantas definições, é um tempo moderado e flexível – e depois de uma transição feita com acordes densos, em um Tutti – quando todos os componentes da orquestra começam a tocar – a melodia passa para as madeiras, e logo em seguida as cordas passam a fazer parte do acompanhamento.

Segundo o maestro Ângelo Meireiles, a genialidade de O Trenzinho Caipira está em manter a frequência do pulso, mas acelerando-o ao mesmo tempo. Um esquema matemático que só foi possível porque Villa-Lobos dominava a técnica contrapontística, cujo mestre maioral é Bach. E o que seria o contraponto? É a arte de compor várias melodias simultaneamente. Cada uma tem vida própria, mas juntas elas combinam entre si.

Nessa composição, principalmente na seção inicial, há figuras em ordem decrescente que dizem respeito à duração. O que faz ter a sensação de o tempo musical ter acelerado. A “mágica”, contudo, é que nada foi acelerado, o pulso se mantém, desde o início na partitura. Geralmente, os “acellerando” são feitos que alteram o pulso, o andamento ou o tempo da música.

O Trenzinho do Caipira é uma composição que tem parte de suas fontes sonoras baseadas em imagens e sons “não musicais”, por isso o som parece ter partido de um trem entrando em ação. O compositor usava mesmo imagens não musicais e conseguia transformá-las em sons. O exemplo mais magnífico desta habilidade está na composição “Melodia da Montanha”.

Erudito e popular, nenhum compositor brasileiro soube com tanta maestria usar os dois lados tão distintos da música. Otto Maria Carpeaux encerra com esta descrição precisa:

“Não é possível chamá-lo de eclético, apesar das influências de Debussy e Stravinsky e do estudo aprofundado da música de Bach e outros mestres do passado. Pois a base de sua música sempre é o folclore nacional; e este não é simplesmente explorado ou aproveitado, mas filtrado pelo temperamento de uma personalidade vigorosa, de força vulcânica.”

Imortalizado em 17 de novembro de 1959, o compositor se curvou diante da vida, em agradecimento, e se despediu para sempre dos palcos, possivelmente feliz por ter alcançado seu principal objetivo: tornar-se orgulho de seu país. O cineasta Zelito Viana, no filme Villa-Lobos – Uma Vida de Paixão tornou pública a declaração do próprio Villa-Lobos sobre o desejo de ser compreendido:

“Eu sou um músico do povo. Eu sou um homem simples que recebeu uma missão. Preciso ser ouvido e entendido pelo meu povo. Estou aqui de passagem para fazer um barulho que o Brasil escute.”

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.