Será que um dia perderemos o interesse por Maria Madalena? O que há de tão fascinante na discípula de Jesus que até hoje rende estudos, livros, filmes e sermões sem-fim sobre o que ela foi ou deixou de ser? FAUSTO convidou para uma entrevista exclusiva Margaret George, autora do romance histórico Maria Madalena. A escritora americana é conhecida pelo rigor na pesquisa sobre seus personagens, que são sempre épicos. George já escreveu sobre Mary Stuart, Elizabeth I, Cleópatra e o próximo livro será sobre Nero, o imperador. Mas sobre Maria… Ah, Maria! Não haveria melhor momento para voltar às pautas do que hoje, quando se discute tantas questões sobre a mulher. Ou não! Maria Madalena não cabe nas agendas políticas, por isso mesmo sempre resistiu a elas. Qual é a sua opinião? Confira só que fascinante!
FAUSTO – Por que a imagem de Maria Madalena foi tão deturpada ao longo da História?
Margaret George: O problema começou no final do século VI quando o papa Gregório Magno declarou que Maria Madalena, de quem Jesus havia expulsado sete demônios (Lucas 8:2), a mulher pecadora sem nome que ungiu Jesus na casa de Simão, o fariseu (Lucas 7:35-50), e a mulher sem nome tomada em adultério (João 8:1-11) eram a mesma pessoa. Naquela época, os demônios eram os pecados sexuais. Desde então, ela ganhou reputação de “mulher caída” que se arrependeu e foi salva por Jesus. Foi assim até 1969, quando o Vaticano renunciou a esse dogma e limpou o nome dela, embora ainda não tenha “pegado” o grande público. As pessoas parecem preferir a imagem da pecadora arrependida à de uma apóstola, por ser alguém com quem podem se identificar melhor.
O que Maria Madalena entendeu sobre os ensinamentos de Jesus que até hoje não entendemos muito bem?
A ideia de que Maria Madalena tinha percepções especiais sobre os ensinamentos de Jesus vem dos evangelhos gnósticos como O Evangelho de Maria, O Evangelho de Filipe e O Evangelho de Tomé, nos quais Jesus diz que Maria tem mais sabedoria e capacidade de compreensão do que Pedro. Esses evangelhos gnósticos, escritos depois dos evangelhos originais, que a Igreja tentou suprimir, ressurgiram nos últimos tempos e suscitaram muitos estudos, incluindo a ideia de que havia rivalidade entre Maria e Pedro pela liderança da igreja primitiva. Os evangelhos nunca explicam exatamente o que Maria entendia dos ensinamentos de Jesus, apenas que ela tinha uma sabedoria misteriosa e conexão com Jesus.
Por que você decidiu escrever sobre Maria Madalena?
Quando estou escrevendo sobre meus personagens, sinto que realmente faço parte deles e estou vivendo suas vidas. Eu queria muito saber como era ser um discípulo – como era a vida cotidiana. Como alguém se tornava parte do círculo íntimo de Jesus – essa escolha era da pessoa ou era dele? Maria Madalena era uma discípula óbvia para eu “viver com” – ela era uma mulher, não uma pescadora; e eu fiquei intrigada com os demônios que a haviam atormentado e arruinado sua vida até conhecer Jesus. Todos nós temos nossos demônios e como nos livramos deles? Ou aprendemos a viver com eles?
Onde você procurou informações históricas para apoiar o romance?
Nos últimos anos tem havido uma grande melhora na capacidade dos estudiosos de ler nas entrelinhas da literatura bíblica. Manuscritos quase contemporâneos, como os Manuscritos do Mar Morto e os manuscritos da biblioteca de Nag Hammadi encontrados no Egito, mais os evangelhos gnósticos, deram-nos diferentes perspectivas para comparar com o material bíblico tradicional. Então, para referência, usei os livros escritos por estudiosos que examinavam a época. Além disso, havia uma literatura em expansão examinando especificamente o papel das mulheres no tempo de Jesus.
Quais eram esses materiais?
Os mais influentes desses livros são: Para os livros extra-canônicos: The Nag Hammadi Library in English, de James M. Robinson; e Os Evangelhos Gnósticos, de Elaine Pagels. Para escrever Maria Madalena: Mary Magdalen: Myth and Metaphor, de Susan Haskins; Mary of Magdala, Apostle and Leader, de Mary R. Thompson; Mary Magdalene and Many Others: Women Who Followed Jesus, por Carla Ricci. Sobre a reinterpretação feminista de Maria Madalena e das demais mulheres no ministério de Jesus: In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins, de Elisabeth Schussler Fiorenza; Women and Christian Origins de Rose Shepard Kraemer e Mary Rose D’Angelo; The Women Around Jesus, de Elisabeth Moltmann-Wendel. Também li muitos outros livros relacionados à história e costumes da época. E passei algum tempo em Israel encontrando os lugares onde Maria e os outros discípulos passaram tempo, especialmente sua cidade natal, Magdala, no Mar da Galiléia. Acredito que é importante ver os lugares onde alguém viveu para entender seu mundo.
Acredita que Maria Madalena se apaixonou por Jesus?
Isso é difícil de dizer. Apesar de nossa imagem dela ser a de uma mulher jovem, ela pode não ter sido. Ela pode ter sido uma viúva idosa, e dessa forma se relacionaria com Jesus de maneira bem diferente do que se fosse mais jovem. Jesus era uma personalidade atraente – todos queriam tê-lo como convidado para o jantar – e se as idades estiverem certas, Maria pode ter se apaixonado por Jesus. Mas Jesus se apaixonou por ela ou ele a viu como a fiel ajudadora e nada mais? Minha tia-avó, que conhecia bem a Bíblia, sempre achou que era Maria de Betânia por quem Jesus esteve apaixonado. Mas então ela se apressou a dizer: “Claro que é apenas a minha opinião”.
É superficial demais para pensar que todo amor erótico precisa ser consumado para ser legítimo?
Ah, amor erótico… ao contrário do amor companheiro em geral… Bom, eu diria que é possível ter amor erótico apenas de um lado, e isso é tão legítimo como se fosse recíproco. Em outras palavras, o amor erótico é autogerado e dirigido para outra pessoa que não precisa retornar os sentimentos – mas eles são válidos para quem ama mesmo assim. Neste caso, não seria consumado, mas ainda queimaria tão quente na pessoa que está apaixonada. O fato de não ter sido consumado pode causar queimaduras ainda mais quentes e durar mais tempo. Portanto, a resposta é não, não precisa ser consumado para ser legítimo, mas querer tê-lo consumado é apenas humano e não superficial.
O filme de Garth Davis chegou em boa hora? Porque estamos discutindo importantes questões feministas.
Os filmes baseados na fé, como eles agora os chamam, tornaram-se filmes de nicho, vistos apenas por um pequeno segmento da população. O último filme religioso comercialmente bem-sucedido e amplamente visto foi A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, de 2004. E foi uma interpretação muito conservadora da história e vista principalmente por plateias devotas. O revisionista, e para alguns blasfemos, A Última Tentação de Cristo, de 1988, trouxe grandes audiências, mas a religião era mais central na vida das pessoas naquela época. É uma pena que os filmes religiosos agora sejam vistos como filmes de nicho porque têm havido muitos bons recentemente, como Ressuscitado, de 2016; Paulo Apóstolo de Cristo e Maria Madalena, ambos recentes. Eles merecem um reconhecimento mais amplo porque fazem perguntas importantes e nos fazem pensar.
Por exemplo?
Ressuscitado mostrou como a história da ressurreição apareceria da perspectiva romana, e este novo filme mostra Maria Madalena como uma companheira digna e inteligente de Jesus, não a adorável Maria de Jesus Cristo Superstar, lamentando “Eu não sei como amá-lo!” e admitindo: “Já tive muitos homens antes”.
Seu próximo livro será sobre o Nero. Por que o Nero?
Nero é um personagem fascinante, tão mal compreendido quanto Maria Madalena. Ele é retratado comumente como “brincando enquanto Roma queimava” e visto como um monstro, ou louco. Ele teve a má sorte de que as histórias favoráveis a ele foram perdidas, enquanto as críticas sobreviveram. Na verdade, ele era um artista visionário, amado pelas pessoas comuns, e deu a Roma seu primeiro planejamento urbano, além de presidir um império pacífico e próspero.
E o que mais?
Ele faz parte da história contínua do cristianismo. Foi ao imperador Nero que São Paulo apelou e foi enviado a Roma para vê-lo. Não sabemos se ele já tinha tido o encontro, mas sabemos que ele esteve em Roma por uns dois anos esperando por ele. Foi também durante o reinado de Nero que a primeira perseguição registrada dos cristãos ocorreu, mas eles não foram perseguidos por serem cristãos em si, mas por serem incendiários – ou assim foi acreditado. É fascinante ver o surgimento do cristianismo como uma entidade política reconhecível e do ponto de vista dos romanos. Na época, os cristãos eram vistos como um culto estranho e anti-social, cidadãos ruins e possíveis inimigos do Estado. É revelador que o historiador antigo Suetônio, que não foi amante de Nero, lista a perseguição dos cristãos como uma das coisas boas que Nero fez em seu reinado.
O que deste período histórico é tão fascinante para você?
Os romanos são como nós e ao contrário de nós – imaginamos que poderíamos desfrutar de um jantar com eles, mas, na verdade, ficaríamos confusos com suas maneiras de comer – em sofás e com os dedos. Adoraríamos as corridas de bigas, mas ficaríamos chocados com os shows de gladiadores. Aplaudiríamos suas estradas e engenharia, mas ficaríamos chocados com o baixo valor que colocaram em vidas individuais. A constante consciência e presença da morte em todas as idades, por causas naturais, nos causaria uma ansiedade aguda. É tão familiar e tão estrangeiro; e ainda a língua, os nomes famosos de então e os nomes familiares de agora, tornam um lugar intrigante para tentar visitar, mesmo que apenas na imaginação. Eles são um espelho no qual vemos nossa própria reflexão vacilante.