Mariana Beluco: “A liberdade gera um vazio”

Escrevi o prefácio de Livre Partida – Causos e contos de uma viagem pelo mundo, livro de Mariana Beluco. Em 2015, ela e seu companheiro, Plácido Salles, largaram “tudo” e partiram de carro numa viagem por 57 países, aventura relatada nesta publicação comovente, engraçada, humana e inspiradora. Acompanhei de perto todo o sonho, desde o desejo da Mari, ainda em 2009, de viver algo de muito incrível – embora, na época, quase tudo o que sonhávamos soava como disparate. A busca infinita por sentido pulsa mais em uns do que em outros e não há certo e errado. As belezas, as dores, o propósito, o sentido, tudo isso é tão particular quanto intransferível. Com exclusividade para a FAUSTO, uma prova de que experiências mil estão ao dispor sempre que houver coragem de visitar o mais íntimo em nós.

Livre Partida
Mariana Beluco, autora do livro Livre Partida – Causos e contos de uma viagem pelo mundo. Foto: Plácido Salles.

FAUSTO – Depois de viajar 57 países, descobriu se existe um lugar para o qual podemos fugir de nós mesmos?
Mariana Beluco: De forma alguma! [Ri]. Pelo contrário, descobri que qualquer lugar, por mais esplêndido que seja, reflete apenas o que há dentro de nós. Um dia, quando estava no Deserto do Atacama, um dos lugares mais lindos do planeta, tive uma crise de pânico. Isso nunca tinha me acontecido. Dirigindo pelo Valle de la Luna, um cenário árido, com rochas a perder de vista – que remetem à paisagem lunar, daí o seu nome -, comecei a chorar compulsivamente. O cenário refletia um enorme vazio que existia em mim naquele momento, já que era, justamente, a fase em que eu mais sentia saudade de casa, de ter pessoas por perto. Aquelas rochas, secas, não permitem nenhum tipo de vida e, enquanto a maioria dos que estavam por ali enxergavam uma beleza de outro mundo, eu enxergava a aridez de uma vida solitária.

Por que então largar tudo e viajar o mundo?
Justamente para entender o que é esse “tudo” a ser largado. O que temos, afinal?

O que é?
Eu sentia uma necessidade de romper com o que estava consolidado na minha vida. A rotina, o trabalho, as pessoas… aquela coisa de sair da zona de conforto, sabe? Pode ser clichê, mas acredito que essa seja a única maneira de ganharmos perspectiva sobre o que é a nossa vida, de fato. Ter a chance de olhar para ela de um outro lugar, mais distante. Até para valorizar e querer de volta algumas daquelas coisas que foram deixadas para trás.

Qual foi o lugar onde mais sentiu a presença de Deus?
Creio que tenho duas respostas. A primeira, onde senti a presença de Deus para mim. Como cética, não costumo encarar as coisas como obra divina, mas, diante de algumas maravilhas da natureza, de estar na presença do sublime, me vi enxergando na perfeição da natureza a presença de Deus. A outra, onde senti a presença de Deus na vida das pessoas e aí foram vários lugares. Na verdade, percebi o quanto a fé ainda é um elemento fundamental para a humanidade. Na maioria dos lugares por onde passei, a presença da religiosidade é marcante. Desde o cristianismo da América Latina, passando pelo budismo na Ásia, até o islamismo no Oriente Médio, pude travar contato com sociedades que tinham hábitos pautados na sua fé.

Viu algo muito impressionante em termos de fé?
Sim. Na Índia, toda a estrutura da sociedade é baseada nas inúmeras religiões existentes. Tudo por ali é relacionado à fé: desde as roupas e acessórios que as pessoas usam, até a arquitetura e rituais diários. Se tirar a fé daquele povo, ele deixa de existir. Outra experiência a qual tive a honra de assistir foi uma cerimônia dos Wirling Dervishes, praticantes do sufismo, uma vertente do islamismo. Durante a solenidade pude observar a introspecção e profundidade do que aqueles homens estavam vivenciando. Em seu ritual, pautado por música e preces, eles estavam imersos em um transe que não poderia ser outra coisa a não ser um encontro com Deus. Enquanto executavam o passo-a-passo de uma formalidade criada pelo homem, uniam-se à divindade de seu criador. E, claro, tem Jerusalém, em Israel. Pisar naquele lugar foi como ser transportada para dentro da Bíblia. Além de toda a parte histórica, é impossível estar ali e não se impressionar com tantas diferentes formas de manifestação de fé. Berço de três das maiores religiões humanas, por ali o que não falta são devotos expressando, com a mais sincera emoção, suas crenças. Ao mesmo tempo, o lugar é palco de conflitos em nome, justamente, da fé, o que torna tudo muito mais impressionante.

Em qual país as pessoas são mais felizes?
Difícil esse conceito de felicidade, né? Não colocaria um rótulo de “mais feliz” em nenhum povo que vi. O que vi foram traços de maior ou menor propensão à alegria. Pessoas mais sorridentes, mais rudes, menos amigáveis ou receptivas. Mas, julgar que pessoas que sorriem são felizes poderia ser um erro brutal. Talvez pela minha carga cultural latina, tendo a encarar como felizes os povos mais abertos ao contato humano, mais festeiros. No entanto, em 2019, a Finlândia foi eleita pelo World Hapiness Report como o país mais feliz do mundo e por lá o que menos vi foi contato humano [Dá risada].

O que é felicidade, hoje, para você?
Estar consciente do que cada momento tem a oferecer. Saber que não existe uma felicidade ideal a ser alcançada e sim buscar extrair alegria do que me é apresentado no agora. Fácil? Nem um pouco! Por muitos meses, enquanto viajava, questionava o que estava fazendo, mesmo tendo lutado muito para estar vivendo aquela experiência. Achava que estava perdendo oportunidades, que poderia estar decepcionando pessoas que eu amava, pelo fato de estar longe. Balela! A vida segue seu curso e felizes são os que sabem aproveitar o que têm nas mãos, ao invés de ficar olhando para o que está lá longe.

Uma atração tão intensa pela liberdade não torna o cotidiano mais difícil? Nietzsche tem uma descrição ótima: “sensação de liberdade de pássaro, de horizonte e altivez de pássaro”.
Muito! Vira e mexe me pego pensando que seria muito mais fácil ser alguém que se contenta com o comum; que seria mais tranquilo ter uma família, lutar pela casa própria e almejar uma aposentadoria sem dificuldades…

“Altivez” é uma palavra que gosto muito. Parece-me que, quem consegue mudar a vida tão drasticamente como você fez, acaba desenvolvendo um tipo de coragem rara, que por sua vez é uma coragem triste; porque nada dura, nada é suficientemente forte para prender.
Exato! Aí você chegou no cerne da questão. Quando você tem uma experiência de mudança drástica como essa, seja por escolha própria ou pelos desígnios da vida, acaba chegando à conclusão do quanto tudo está fora do seu controle. E isso, de certa forma, é libertador; por que vou me apegar a alguma coisa, se ela não depende de mim? No entanto, a liberdade gera um vazio. Temos, de certa forma, uma carência de ilusões.

De alguma forma, ser um espírito livre é ir na contramão do mundo no que diz respeito ao sucesso e à construção de um patrimônio?
Acredito que hoje essa ordem está mudando. As novas gerações já têm uma outra ideia de sucesso e parecem não estar muito interessadas em construir patrimônio. Talvez por isso sejam chamadas de geração do vazio [Ri]. A falta de um objetivo concreto dificulta o viver. Antes, existia uma estrutura bem construída e todos tinham uma ideia do que deveriam fazer: estudar para ter uma boa profissão, casar, constituir uma família, garantir o bem estar financeiro dela e se aposentar. Hoje, esse modelo é visto como ultrapassado, mas me parece que ainda não foi substituído. Em alguns casos, vem sendo substituído pela ideia da liberdade, de viver como nômade, de poder trocar de parceiros quando bem entender. No fundo, sempre precisamos de um padrão para seguir.

Qual é a principal necessidade do homem?
Uma vez, assisti a um vídeo em que o Luiz Felipe Pondé diz “quase o tempo inteiro, a gente está preocupado se vai conseguir pagar as contas, se vai viver mais, se vai conseguir transar, se vai conseguir comer…” Para mim, ele resumiu com perfeição o que vi durante dois anos de viagens pelo mundo. Com diferenças relativas às culturas, geografia, climas, etc, o que ficou nítido para mim ao observar, de longe, a vida humana, foi que, no fundo, todos têm as mesmas necessidades: comer, estar protegido, ser aceito socialmente, sexo. O resto é supérfluo. Do pastor de ovelhas, que vive como se vivia 2000 atrás, ao milionário do Vale do Silício, na essência, são apenas essas necessidades que precisam ser supridas. E me parece que é justamente aí que vive a tal da felicidade.

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.