Manuel da Costa Pinto: “Renunciar ao erotismo é renunciar à arte”

A experiência do prazer erótico também passa pela palavra. A literatura que a proporciona pode ou não ser erótica; embora sendo, cause, ainda, certo mal-estar. Por repressão, incompreensão, perturbação ou subversão, quem sabe? A seguir, algumas reflexões sobre o tema com o renomado crítico literário Manuel da Costa Pinto, que abre a Série Obsceno – Erotismo e Literatura, exclusividade FAUSTO. Ele que é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, apresentador do Arte1 ComTexto, do canal Arte 1, e tem em sua trajetória passagem pela curadoria da Festa Literária Internacional de Paraty, além de inúmeras críticas nos cadernos de cultura da Folha de S.Paulo. Coragem é preciso, porque promessa de felicidade pode ser que nenhuma.

Manuel da Costa Pinto.
Manuel da Costa Pinto.

FAUSTO – Existe um mal-estar com a literatura erótica?
Manuel da Costa Pinto: Do ponto de vista dos conservadores, que tem mal-estar com qualquer coisa que diz respeito ao erotismo, acho que sim. Contudo, creio que quem compreende literatura não faz distinção entre literatura erótica e literatura que não tem erotismo. A relação é mais tranquila, até porque o erotismo está na origem da própria expressão artística, na ideia de que o desejo é uma falta, que o ser humano é faltante. Aliás, essa é uma ideia que está na origem do erotismo e da literatura. Há esse ponto em comum. O ser humano nasce com um vazio que precisa ser preenchido, seja pelo desejo ou pela expressão artística – literária ou não. Quem compreende a forte dimensão da literatura como forma de conhecimento pela imaginação, e ao mesmo tempo de organização do mundo, não tem problema com o erotismo.

Creio nisso também.
Umberto Eco tem uma expressão que gosto muito: a literatura põe ordem e finalidade na desordem da experiência.

Que bonito isso.
Pois é. E de fato a literatura organiza, torna inteligível aquilo que sentimos como opaco e ininteligível. E não falo de uma inteligibilidade do campo do conceito, da filosofia, mas de uma inteligibilidade sensível. E isso é extremamente erótico. Ao abordar o erotismo, a literatura acaba juntando a essa sua característica – que é dar ordem à desordem da experiência – a própria gênese do desejo.

O erotismo é apenas um elemento estético em um romance?
Não. O erotismo é, em alguma medida, uma projeção do autor, projeção de alguns de seus desejos, fantasias ou fantasmas. Obedece a certas pulsões do autor – assim como do leitor. Por isso há essa convergência de pontos de vista. Creio, contudo, que a literatura é a expressão do ser desejante, e esse ser desejante está no autor tanto quanto está no leitor. Agora, se isso é uma estética? Com certeza existe a estetização do erotismo, mas a literatura pode ser pornográfica também.

Como Sade.
Sim. Sade não é nem obsceno e nem erótico, ele é pornográfico. Agora, em um dos livros mais eróticos que já li não tem nenhuma cena de sexo, que é A Princesa de Clèves, um clássico da literatura francesa. De certa forma, esse livro foi um precursor de Madame Bovary, de um lado; e de Anna Kariênina, do outro. E foi um livro escrito por uma mulher! Trata-se de um adultério que não acontece.

É um livro magnífico.
A Princesa de Clèves é um livro sobre abstinência. Sobre aquilo que Roger Shattuck chama de “os prazeres da abstinência”, em seu livro Conhecimento proibido, um livro maravilhoso, inclusive.

Por que os prazeres da abstinência?
Narrado em terceira pessoa, A Princesa de Clèves trata-se da história da própria princesa, que é casada com um homem adorável e ela é feliz no casamento, embora acabe presa por um arrebatamento por outro homem – que não é um sedutor! Ele é um homem digno.

Não é sedutor como Vronsky…
Todos eles têm grande dignidade no desejo. Não utilizam o desejo de forma destrutiva, como acontece, por exemplo, em Sade. A função do desejo em Sade é destrutiva – que é metafísica. Ou seja, rivalizar com Deus. Há um ensaio do Octavio Paz que é a melhor coisa que já li sobre erotismo – melhor do que Bataille – que se chama Mais do que erótico: Sade.

Essa entrevista será um bom guia sobre erotismo na literatura…
Então, mas contrário ao Sade, em A Princesa de Clèves as personagens estão envolvidas erótica, amorosa e passionalmente dentro de um conceito de amor em que o amor é uma entrega e uma destituição de si. Enquanto o potencial amante da princesa não tem nada a perder – e ele quer se entregar a esse amor –, ela também deseja intensamente, mas não comete adultério.

Sim…
O ponto mais interessante é que o marido dela morre, deixando-a numa condição propícia para ficar com o homem que ama, mas ainda assim ela não fica. É daí que vêm “os prazeres da abstinência”. E por quê? Camus escreve sobre isso. Para ele, o grande problema da princesa é o temor de sucumbir ao enlouquecimento, à perda da autonomia de si. Ou seja, tudo aquilo que a paixão representa. Ela resiste porque achou que aquela paixão era desmedida. E que aquela paixão faria com que ela se aniquilasse. Ao contrário do que se pensa, ela não comete adultério porque cede às convenções sociais; ela usa as convenções sociais para não sucumbir. A questão não é moral. Lembremos que os valores da época em que o livro foi escrito eram razão e domínio de si. Esse livro é altamente erótico e não tem uma única cena de sexo. Neste caso, o erotismo é altamente estético, embora não seja uma glamourização do erótico; como em Sade também não. Agora, você pode ter um erotismo estetizado, como em Henry Miller e em Oscar Wilde. Em Anaïs Nin há uma estetização do sexo – embora não de forma ingênua ou pura.

Uma tessitura erótica mais sutil tem mais efeito?
Não necessariamente. E não vejo nada de negativo numa obra pornográfica, embora não seja frequente, tirando Sade e alguns libertinos como Pietro Aretino, de Sonetos luxuriosos. Esse livro é uma obra-prima. É sexo explícito mesmo. Inclusive, foi editado na época com algumas gravuras eróticas, feitas clandestinamente, e circulou como obra de sacanagem. Então, sobre essa sutileza, não acho que aguce mais. Existe essa visão, mas acho idealizadora e pudica. Sinceramente, para mim não é verdade. Quanto mais explícito, mais instigador. Claro, muito disso depende da época. Hoje mesmo vivemos a saturação do erotismo.

Sim, e o desejo é retratado de forma diferente por isso…
Recentemente, surgiu como fenômeno a pornografia dentro do cinema autoral. Basta lembrar que em 1976, um filme do Nagisa Ōshima ficou muito famoso, O império dos sentidos. Um filme maravilhoso sobre desejo! É uma obra-prima, apesar de absolutamente pornográfico. Até esse filme, não era comum a pornografia no cinema. Havia, no máximo, O último tango em Paris. Hoje, há vários filmes em que o sexo explícito entrou dentro de uma linguagem estética, e sem causar grande comoção. Lars Von Trier é um grande exemplo. Ou seja, até pouquíssimo tempo atrás havia ainda essa ideia de que a pornografia era vulgar, grosseira, direta, literal demais, que saturava, e que ela quase cancelava o desejo, enquanto que o erotismo sutil era mais delicado e deixava por dizer; portanto, tornava o desejo mais intenso. Que é mais ou menos como dizer o seguinte: é muito mais bonito uma mulher que se cobre do que uma que se expõe.

Isso é uma visão romântica, não?
É uma visão romântica, machista, pudica. Uma visão um pouco vetusta de sexualidade. O cinema contemporâneo quebrou totalmente essa dicotomia entre o pornográfico e o erótico. Às vezes, uma crueza maior é melhor do que uma perífrase que evita falar certas coisas e acaba caindo nos clichês.

Ah, com certeza.
Isso acontece mesmo. De tanto não querer falar o nome dos órgãos sexuais, por exemplo, começa-se a usar imagens que são um pouco nefelibatas, e fica um pouco cafona, kitsch. O que não impede, por exemplo, que uma escritora como Cíntia Moscovich – em um livro que considero uma obra-prima da literatura brasileira, chamado Arquitetura do arco-íris – descreva uma trepada de maneira absolutamente maravilhosa, encontrando imagens sem utilizar, em nenhum momento, nenhum clichê, nenhuma perífrase. Ela descreve a interação dos corpos de maneira magnífica!

Tolstói é um autor que tentou controlar o desejo?
Integralmente. É algo impressionante! Ele é um desses casos de escritor a contragosto.

O que isso significa?
Aquele livro O que é arte? é um libelo contra a arte, contra a estética, contra tudo aquilo que a arte encarna de apetite pelo existente. Tolstói quer uma espécie de transcendência e renúncia do existente, dentro de sua concepção de um cristianismo primitivo e extremamente austero, no limite da miséria. Nesse sentido, ele tanto renuncia ao erotismo como renuncia à arte. Na verdade, podemos dizer que renunciar ao erotismo é renunciar à arte. E renunciar à arte é renunciar ao erotismo. Só que ele era tão erótico e tão artista que foi escritor a contragosto. Ele criou um dos romances mais eróticos – que é Anna Kariênina – a contragosto. Ou seja, ele poderia condenar o que ele quisesse, mas ele era mais artista do que puritano. Ao ser mais artista do que puritano, ele forçosamente criou, em alguns momentos de sua obra, cenas carregadas de um erotismo que talvez ele não quisesse ter feito, mas fez. A obra foi mais forte do que ele.

Sim, e isso é tão maravilhoso!  E o erotismo em Camus?
A ideia do absurdo parte de uma relação erótica com o mundo. O primeiro livro de Camus chama-se Núpcias. É um livro lindo, de pequenos textos que são retratos das praias argelinas. Ele descreve os corpos nas praias, o gozo sensorial desses cenários, o que inclui o gozo do corpo físico. Essa relação erótica com o mundo vai aparecer também em O estrangeiro.

O absurdo nasce daí?
O absurdo nasce justamente do que esse gozo tem de tentativa de fusão com o mundo, que, no entanto, é refratário ao corpo humano, porque indica sua dissolução. O absurdo nasce da ideia de um divórcio com o mundo, embora o desejo seja o de continuar casado, o que por sua vez significa integrar-se, perdurar-se. Só que tudo nessa relação erótica aponta para um casamento fadado ao fracasso. Divórcio do homem e seu mundo. Do ator e seu cenário, nas palavras do próprio Camus, quando define o absurdo em O mito de Sísifo. Agora, o texto mais erótico de Camus, sem dúvida alguma, chama-se A mulher adúltera, um conto que está no livro O exílio e o Reino. Esse conto é uma espécie de epifania erótica, comparável às epifanias das personagens da Clarice Lispector. Esse conto é bastante erótico.

Como vê o erotismo na literatura contemporânea? Existe um grande nome? Falamos o tempo todo de livros clássicos…
Citei a Cíntia Moscovich, mas não sei mais, sinceramente. E possivelmente porque em nenhum momento foi uma preocupação minha. Vou dar uma opinião superficial, porque nunca pensei sobre nisso antes. A preocupação com o erotismo nos romances não se alterou, principalmente porque o erotismo é um elemento fundamental da intersubjetividade. O que acho que mudou muito foi que nenhum escritor, hoje, acha que porque vai escrever uma cena de sexo, isso vai ser considerado transgressor.

Sim…
O sexo foi transgressor por muito tempo. Sade foi o maior deles. E não apenas no sentido moral, mas muito mais no sentido teológico. A partir, e ao longo, dos séculos XVIII, XIX e XX, já não era mais uma transgressão teológica e, sim, moral, dos costumes, um desafio à sociedade burguesa. Isso, hoje, não existe mais porque ninguém se choca mais. O sexo foi apropriado pelo capital. Vou construir um raciocínio que é, aparentemente, um desvio.

Por favor.
A sociedade burguesa, que era uma sociedade da economia, da retenção, da concentração de renda, era uma sociedade em que o consumo desenfreado era visto como uma ameaça ao capital. Lembrando que estamos falando de outra geração do capitalismo, não a nossa, que é a geração do capitalismo do cartão de crédito. Se todo mundo tirar o dinheiro do banco, a economia do mundo quebra, porque ela gira na função do crédito, ou seja, de um dinheiro virtual. Esse virtual existe porque alimenta o consumo desenfreado. A burguesia, que antes era acumuladora e retentora, passou a ser dissipadora. E isso também acontece com os costumes. Antes era a preservação da família para preservar o dinheiro. Hoje, a burguesia entrou na putaria. Na putaria econômica e na putaria dos costumes. A burguesia consome tudo, inclusive putaria, e, sobretudo, putaria. A burguesia moderna não é contra as drogas, o álcool e o sexo. Ela promove isso porque é fruto da nova forma de movimentação do capital. Nessa era de dissipação, não lança nenhum veto moral contra a sexualidade. Nenhum burguês se choca com o sexo. Então, o erotismo na literatura contemporânea é um erotismo que pode estar presente numa situação específica e dolorosa de um adultério, por exemplo.

Sim, era meio isso que eu ia dizer. Ele ainda está na complexidade dos afetos…
No adultério pode ser, embora o adultério não seja mais chocante. Há um livro do Ian McEwan, A balada de Adam Henry, e no cerne desse livro está uma mulher em processo de separação porque o marido deseja ter uma relação aberta. Esse livro trabalha a questão do erotismo e do adultério de maneira muito forte como um drama pessoal, uma dor, mas o erotismo não tem efeito social como tinha no passado. Madame Bovary foi um livro proibido na França porque era transgressor. Hoje, o erotismo está presente porque faz parte do homem. A vivência erótica é incontornável. O erotismo pode ser bom, prazeroso, mórbido, doloroso, mas porque faz parte das relações intersubjetivas.

Em Invisível, do Paul Auster, há uma questão perturbadora, principalmente porque não faz parte do enredo central, ficando ali, como pano de fundo… Ou melhor, acho que é exatamente a questão central, só que não se espera e é difícil tomar uma posição depois, sendo mais fácil deixar de lado…

 

Siga a FAUSTO no Instagram!

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.