Não apenas corpos entrelaçados ocupam camas quentes, tampouco corpos entediados dividem camas mornas. Ao menos não é isso que apresenta Molly-Bloom, espetáculo encenado por Bete Coelho e Roberto Audio, no Teatro Unimed, em São Paulo.
Além do desejo e do tédio, invariavelmente, ocupam com esses corpos nossas projeções, nossas fantasias, e, quem dera não fosse assim, nossas ilusões.
Molly Bloom, personagem de James Joyce, eternizada em Ulysses, é vivida com voluptuosidade pela consagrada atriz, que revela em sua interpretação algumas das facetas — diria, inevitáveis — do desejo.
Escreveu o homem do erotismo, o francês Georges Bataille, que o desejo desfalece e anseia prodigar as reservas disponíveis em nosso corpo até o limite de perdermos o pé. Contudo, Bataille não se esquece da desordem e do tormento que assalta.
Por sua vez, Roland Barthes cria que o desejo é mais forte do que a sua interpretação. Então, ali, como espectadora, minha mente corria, ainda que sem querer, rumo às minhas próprias versões de tudo o que Joyce teceu no monólogo a punhos fortes.
A opinião mais importante, evidentemente, não é a minha, mas a do próprio Joyce, que com tanta cumplicidade constrói um texto para adultos morais. E o sentido que dou é o de saber que só é emancipado quando se é capaz de compreender tudo o que é dito ali, em cena.
Inebriada pela estética soturna — e a primeira projeção de Bete assombra-me pela beleza de seus olhos marcados de preto — os aros dos cenários em ferro e os tons de chumbo, exceção das ligas cor de vinho, somam aos espreguiçamentos e às manifestações de sensualidade de Bete, e formam o convite prefeito para entrar no mundo das altas letras.
Só o mundo das altas letras dignifica o homem e o permite alcançar as palavras certas, palavras que possam se equiparar, na imaginação, à consumação do desejo. Lembro-me agora de uma provocaçãozinha de Italo Calvino, o crítico italiano, dizendo ser isso impossível.
Pois será mesmo que quem é amigo do sexo na literatura é inimigo do sexo na vida real?
As frases bem construídas — ousaria a pobreza de nosso tempo dizer “difíceis de acompanhar” — são alquímicas e elevam a alma e provam o lugar onde os inquietos de alma — e do desejo — devem estar: ao lado dos clássicos.
Em cena, Molly e Leopold Bloom repassam, separadamente, a insaciedade do desejo, masculino e feminino — será que há distinção? —, mas, ao mesmo tempo, suas inseguranças, quando pensam que seus pares podem proporcionar o mesmo prazer a outros.
Tecitura tão frágil que reveste a cama, desde Ulysses.
Apesar de desejar a liberdade dos homens, Molly Bloom vive o desejo. Questiona como seria ser mulher com a liberdade de escolha de um homem.
Em 2023, como é ser uma mulher com liberdade de escolha, apenas, porque nem faz sentido ser de um homem, pois não seria do dinheiro? Aborda ainda o “sonho” da maternidade e — contrassenso — do casamento.
Pelo direito de uma associação livre, como Molly Bloom vi-me ali, a devanear, livre das pressões, ou pressionada pelos meus próprios desejos. O que a personagem me provocou foi uma atração maior pela mente de Joyce, que se mostra, no texto, desordenada, ligeira e deliciosamente caótica.
Bete Coelho se move sensualíssima! A peça é dirigida por ela mesma e por Daniela Thomas.
Ao narrar as aventuras e desventuras de Molly e Leopold — ou com o amante Boylan, entre outros nomes, surgindo até os de padres —, Molly-Bloom narra também um desejo que ousei pensar, guardando-me em Georges Didi-Huberman: “Quando algo se apresenta como impensável, é aí que deve trabalhar o pensamento.”
Pode ser uma unanimidade entre nós, mulheres, em secreto, querer ser uma adúltera?
Não por baixeza, menos ainda por afronta; nem por castigo, ou, delirariam alguns, por privilégio. O ímpeto é por competência. Competência em saber separar os “compartimentos afetivos”.
Se fosse fácil assim… Ainda que houvesse um repertório imenso de palavras que se abrisse oferecendo caminhos de escapatória para se deitar com outros que não o seu, escolha do amor. Provou-se, ali, em cena, nem para Leopold.
Amor.
Molly é da capital da Irlanda, quando moça foi desejada e de vida social agitada. Poderia ter sido uma “prima dona”, como menciona com vontade. Então, o que vemos no palco, em Molly-Bloom, é uma mulher moderna.
Estritamente como uma mulher moderna, é a forma como Bete Coelho se move na cama, a esticar-se, insinuar-se, devanear-se numa linguagem corporal tão caótica como a de seus pensamentos, que não deixa esconder o fio de desejo de um romance eterno.
Molly Bloom gosta da voracidade do homem, mas também, de Leopold, das cartas e das flores, e de algo de mais abstrato que ele mantinha há dezesseis anos, quando se casaram: carinho e atenção. Algo que se perdeu.
Uma mulher moderna.
Em meu envolvimento tradicional com o amor, arquetípico até o último detalhe, o sumo das ilusões mais literárias acerca desse sentimento impossível de conceituar encontrou no texto de Joyce, nos movimentos de Bete e no desejo de Molly, a precisão de minha vida em constante.
Quem sabe a medida exata do desejo?
Se há praticidade no desejo de Molly: quer o sexo e quer ser desejada e pouco importa por quem, é assim que alcança a plenitude como mulher e guarda em algum lugar de seu corpo, em suas peças íntimas, a esperança de que um dia ela volte a ser vista por Leopold como uma flor da montanha, o que a fez dizer sim, e se casar.
Por fim, lembrei-me também de Nelson Rodrigues e um dizer polêmico, o que é redundante, tratando-se de Nelson: “Nada frustra mais a mulher do que aquela liberdade que ela não pediu, que não quer e que não a realiza.”
Molly Bloom, diferentemente das demais adúlteras da literatura, ainda que com esperança, aceita a realidade. Nesta realidade, realiza nosso desejo inconfessável: ser adúltera para se livrar das idealizações.