Acontece que Nina Simone foi uma mulher muito, muito à frente de seu tempo. O primor com o qual a cineasta Liz Garbus conduz sua história em What Happened, Miss Simone? permite que se chegue a essa conclusão. O documentário repassa a vida da cantora com conteúdo inédito: muitos vídeos, imagens de seus diários e cartas, além de trechos de shows aos vivo.
Sobre sua maneira de ser: “É apenas um sentimento. Como se explica a alguém o que é estar apaixonado? Como você vai explicar para quem nunca se apaixonou o que é amar? Não tem como. Nem para salvar sua vida. Vivi momentos no palco em que me senti livre de verdade e é algo fantástico.”
A cantora norte-americana, lenda do jazz e multifacetada artista brilhou principalmente nos anos 1950 e 1960 pelo talento único e pela performance originalíssima.
Com 1h42 de duração, o registro conta com depoimentos da filha, Lisa Simone Kelly, de músicos que a acompanharam e do ex-marido, Andrew Stroud, com quem a cantora manteve um casamento bastante controverso.
Nina Simone teve uma carreira marcada por altos e baixos causados principalmente pela forte depressão que surgiu com o acúmulo de compromissos. Sua personalidade irascível contribuiu bastante para o agravamento do quadro que afetou drasticamente também o seu casamento. É chocante assistir as declarações da artista sobre as surras que levava do marido – que, aliás, lhe davam prazer.
Selvagemente sexual – além de muito estilosa e vaidosa – Nina viveu uma relação de dependência sexual do marido, embora ambos mantivessem relações com outras pessoas.
O filme explora todas essas facetas, inclusive a da importante ativista dos direitos dos negros. Parte interessantíssima, aliás, que conta como a canção Mississippi Goddam selou uma época e marcou, paradoxalmente, um ponto de declínio em sua carreira.
É que tamanho engajamento prejudicou a venda de seus shows, levando-a a perder quase tudo e ir parar em bares pequenos de Paris. Nina Simone mergulhou tão fundo em suas origens que chegou a abandonar carreira, casa e família para ir morar na Libéria, pequeno país africano. Ela queria viver com seus iguais. Essa passagem no documentário é bastante instigante.
Nina Simone foi contemporânea de Martin Luther King, que liderava centenas de milhares pelas mesmas causas. Foi uma época muito importante, não apenas para os negros americanos como para os do mundo inteiro. Nina Simone chegou a cantar no enterro de King, assassinado em 1968.
Outra parte interessante de What Happened, Miss Simone? trata-se da infância e adolescência de Eunice Kathleen Waymon, nome de batismo de Nina Simone. As cenas repassam com detalhes o tempo em que viveu em Tryon, na Carolina do Norte, quando ainda morava com seus pais e tinha aulas de piano com uma professora branca, a senhora Mazzanovich.
Nina Simone começou a ter aulas aos três anos e realizou o primeiro concerto aos doze. A cena em que Nina relembra o primeiro concerto traz à luz as primeiras memórias de preconceito racial, quando seus pais tiveram que sentar ao fundo da igreja por serem negros.
Sim, a artista lembra ter se recusado a começar a apresentação enquanto seus pais não estivessem sentados na primeira fileira. O temperamento forte da cantora se revelaria cedo e, curiosamente, já depois de ser famosa, encontraria exatamente nesta causa um preenchimento existencial nunca sentido antes.
Filha da empregada doméstica, Mary Kate Waymon, além de ministra metodista, a cantora teve as aulas de piano custeadas pela patroa de sua mãe. Eunice virou Nina Simone aos 20 anos. A troca dos nomes foi para esconder de seus pais que cantava à noite em bares. O nome Nina vem de “menina”, do espanhol, e Simone da bela atriz francesa Simone Signoret.
Nina Simone morreu dormindo em sua casa em 2003, aos 69 anos, depois de lutar três anos contra um câncer de mama. Pelo ícone que Nina Simone foi e pelo belo filme que Garbus produziu, vale cada segundo.