O pai, à mesa, pergunta à esposa e às duas filhas: “Será que toda família é assim?” Eis que a resposta — óbvia — é sim!
Outono, Inverno – ou O que Sonhamos Ontem, espetáculo que acaba de encerrar mais uma temporada, desta vez no Teatro Aliança Francesa, aborda assuntos familiares bastante familiares.
O texto original é do dramaturgo sueco Lars Norén. A adaptação para nossa rica língua portuguesa ficou a cargo de Leon Rabelo. Ah, nossa rica língua portuguesa!
Ela que, à mesa, junto à família, parece fornecer mais palavras para alimentar com sustância as feridas e as elucidações que, como dita a boa educação, nunca deveriam ser postas à mesa.
No elenco de Outono, Inverno, brilham de igual modo Riba Carlovich, que vive o pai, Henrique; Noemi Marinho, a mãe, Margarida; Nicole Cordery uma das filhas, Eva; e Dinah Feldman, Ana, a filha do vento.
A direção da elogiadíssima peça é de Denise Weinberg e o dramaturgismo, de Kiko Marques.
Outono, Inverno é isso: um jantar rotineiro de uma família que saboreia a contragosto medos, rancores, ressentimentos e, claro, segredos. “Será que toda família é assim?”
Sim.
A mesa acolhedora, cheia de frutas e flores, esconde o gosto amargo de uma estrutura que falhou. Fingem todos, até que Ana, uma das filhas, cansada das dissimulações, e nitidamente a que mais foi afetada pela negação, é quem primeiro levanta a faca.
Eu, espectadora, enxerguei-me em Eva, com uma mãe semelhante à Margarida. Usando o termo da moda, o espetáculo é um constante “gatilhar”, porque é família.
E porque é família, como não se lembrar da célebre frase que abre Anna Kariênina, de Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Frase que jamais será um clichê, embora seja um recurso rápido — e óbvio.
Não fui a única a sair indigesta. Afinal, o pai supôs de maneira correta: todas as famílias são assim. Vivem na brida do silêncio, principalmente os episódios mais estafadores.
Se o problema não é o pai, é a mãe; ou um dos filhos, que ninguém sabe “por que ficou assim”. Em qualquer família, a interferência da família é avassaladora. Com muita sorte, é mágica, capaz de tornar o jantar rotineiro um refúgio.
Outono, Inverno não é, portanto, original, embora, nem por isso, deixe de ser impactante — e brilhante —, porque cada ator desempenha com fealdade seu tipo humano “que só muda o endereço”.
São tantos os ditados que caberiam para descrever a peça, tantas as semelhanças, tanta originalidade inútil quando não estamos mais falando de um espetáculo, mas da vida real.
As obscuridades do caráter de todos nós, membros de uma família, se revelam em cômodos diversos: banheiros nos quais choramos ao som do chuveiro ligado, quartos cujas camas acolhem as lágrimas que caem sem testemunha.
Quem nunca jogou um prato ou um copo na parede, movido pela raiva de pertencer justamente àquela família “que atire a primeira pedra”. Cabe sempre mais um chavão quando o assunto é família.
Família é a maior intermediária de nossa angústia. Quase sempre é melhor manter um pé dentro e outro fora. O que tentaram as filhas, Eva e Ana, mais Eva do que Ana.
Apesar de minha identificação imediata com Eva, Ana deu-me o gosto da desforra. Minha mãe tinha um quê de Margarida colhida de uma terra seca. Como Ana, encontrei na doçura do pai, o aroma de alfazema que me fazia dormir com um triz a menos de medo.
O belo cenário posto em Outono, Inverno vai se desmontando no decorrer da peça. Mesas são viradas de maneira mais eficaz do que as páginas de nossas histórias. Talheres são jogados ao chão como gostaríamos de fazer ante as negações.
Algumas cenas são magistrais, como quando Eva pisa firme subindo na cadeira, depois na mesa e cai retinha como morta de cansaço de sua própria autoimagem. Ou quando usa frutas como bolinhas de tênis e lança, uma a uma, na parede, como afetos estourados.
Outono, Inverno – ou O que Sonhamos Ontem é um grito de “alguém não vai fazer nada?” É um encontro prolongado, uma obrigação de rigor moral, uma denúncia de exasperações mesquinhas, é a vontade de confissões inconfessáveis a laços de sangue.
O espetáculo, sobretudo, trata-se de decepções profundas, canseiras poupadas, mulheres sem ternura, almas que se apagam a cada visita, pormenores que formam o cerne paradoxal: o amor — escondido, inventado, imposto, ressignificado.
Tudo isso posto à mesa, deixa qualquer um com ainda mais fome.
Impossível encerrar sem a sobremesa, o belo cenário assinado por Chris Aizner — que, aliás, concorre ao Prêmio Shell —, a trilha sonora de Gregory Silvar e ao time da iluminação: Wagner Pinto e Gabriel Greghi.
Até o próximo Outono, Inverno.
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Obrigada, Marcela Horta.
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