Pai Marcelo de Odé: “O maior “demônio” é a ignorância”

É indiscutível o bom humor, a simpatia e a determinação dos adeptos do candomblé. Inversamente proporcional, talvez, ainda seja o preconceito com a religião brasileira de matriz africana que tem mais seguidores do que é possível constatar oficialmente. Quais são os medos ou precauções? Religião no Contemporâneo, a série promovida pelo Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP, sob direção de Luiz Felipe Pondé, traz nesta edição Marcelo de Odé. FAUSTO entrevista com exclusividade o líder religioso que não tem medo de ocupar o seu lugar à mesa, junto com um padre, um pastor, um sheikh e um rabino. Sobre os ritos, as roupas, a magia e a inspiração estética e artística do candomblé, chegou a vez do pai de santo.

Pai Marcelo de Odé para a Série Religião no Contemporâneo.

FAUSTO – O que sua religião tem a oferecer?
Pai Marcelo de Odé: Um comportamento diferente do convencional. Como se fosse uma nova sociedade, embora de nova não tenha nada.

Em que consiste?
Através desse comportamento, nos voltamos para nós mesmos e revemos nossos próprios conceitos sobre nossa ligação com o planeta, com a ancestralidade; que tem a ver, principalmente, com a gratidão de termos chegado até aqui. Quando colocamos os pés no chão, por exemplo, sentimos de verdade que a vida existe e que deus, com “d” minúsculo, existe. Ou seja, nós. O candomblé propõe que temos que aceitar tudo o que existe, absolutamente tudo, inclusive nós mesmos. Porque de certa forma somos como semideuses, embora tenhamos consciência de que não é bem isso, estamos apenas em contínua tentativa de chegar a ser.

Como é o Deus dos candomblecistas?
Esse nosso Deus é todo divididinho, e chega a nós em cadeia. E é assim que temos acesso ao Deus maior.

Há uma forma peculiar de entender como deuses as coisas do cotidiano, certo?
Sim. A água é Oxum. Oxum serve a todos nós o tempo inteiro, a vida inteira, e dentro de nossa casa. Ela nos dá o banho, nos acalenta, nos dá alívio, permite a limpeza de nossa casa, de nossa comida. E essas são propostas de Deus, de acordo com o candomblé.

Quais seriam outras propostas?
O fogo! Sem ele, o que teria sido da humanidade? Também a cura através das ervas. Tudo isso é representação deste Deus que vai se fragmentando para chegar até nós. Não é o Deus absoluto, apenas fragmentos. O que tentamos fazer, na verdade, é um resgate da natureza – sem desrespeitar o progresso. E aí o que vem junto? A obediência. A obediência com ternura, com respeito. Não é algo que torna alguém submisso de um carrasco. Não! É submissão que tem a ver com saber ouvir. No candomblé, o ouvido é o maior intérprete da consciência.

Bom isso, hein?
No momento em que compreendemos o que entra em nossos ouvidos, nosso intelecto sedimenta e coloca essas ideias “pra valer” em nós. É nesse instante que entramos no estado de transe, quando entendemos que Deus é quem trouxe essa mensagem para nós. Desse ponto em diante não julgamos mais e não tornamos o que ouvimos a verdade absoluta do mundo. Essa experiência é sempre individual, de boca para ouvido, de coração para coração.

O candomblé sempre me pareceu uma religião em que nossa humanidade – ou seja, nossos defeitos – é mais bem aceita. Para o candomblé o bem e o mal não são coisas distintas?
Para entender melhor esse conceito de bem e mal, precisamos trazer a ideia de céu e inferno. E que existe um ser maligno que nos faz acreditar que determinada coisa é ruim e um ser bonzinho que fica do outro lado dizendo que algo é bom. Só que tudo que existe, coexiste. E de forma que possamos escolher. Como todo o tempo pensamos na chave da dualidade – quente-frio, noite-dia – o que o candomblé traz é uma gama maior de escolhas. Não é que não exista o errado, apenas eliminamos o preconceito, o pré-julgamento. Há lugar para todos no candomblé. Por isso é que temos em nossa simbologia a prostituta. Ela é alguém que está em busca da divindade. E como posso dizer que prostitutas não são seres divinos também? Agora, somos a favor da prostituição? Claro que não!

Sim, muito bom.
O mesmo acontece com o ladrão. O maior “demônio” é a ignorância. Assim como a mais magnífica invenção é a sabedoria. O que precisamos entender é que tudo isso é natural em nós. E é por causa dessa visão que conseguimos trazer para o candomblé essas pessoas que têm esses tantos defeitos. Juntos, comungando, conseguimos descobrir qual é o melhor caminho. Sem esses erros, esses defeitos, como conseguiríamos avançar? Sem tudo isso, como teria conseguido Carl Jung fazer tantas descobertas? Descobertas, aliás, que já sabíamos, embora com outra roupagem.

Por exemplo?
Que o estado de alteração da consciência é capaz de transformar alguém. Por isso que se acredita por aí que gostamos do mal. O que acontece é que recebemos o mal a fim de descobrir o que podemos fazer com ele, para que se transforme em bem.

Agora, por que uma religião que combate os preconceitos e acolhe as diferentes sofre tanto preconceito?
Porque é o diferente. O que acontece na maior parte das instituições religiosas é que as pessoas se apresentam, em comunidade, no melhor delas. Entretanto, é fora do templo que elas lidam com os próprios demônios, com os próprios defeitos, além de seus egos. Da porta do templo para dentro todo mundo vira santinho, fala baixo. Isso é o considerado normal.

Pior que é mesmo…
Imagina chegar ao templo com todo o seu desequilíbrio interno exteriorizado? Deixar ser visto como você é de verdade? Só que é o nosso currículo oculto que precisamos trabalhar, juntos, e não as mentiras que contamos sobre quem somos. Ou seja, precisamos ser dentro do templo o que somos fora do templo. E não deixaremos de ser divinos por isso.

No universo das artes, o candomblé é bastante celebrado: as novelas, a dança, a moda, os símbolos todos. Agora, fora desse universo, há muito candomblecista que não se assume enquanto tal. Sabe dizer o motivo?
No candomblé, a arte é fator preponderante. É fácil notar quando criamos, por exemplo, uma escultura, a fim de definir aquele ser que, intuitivamente, acreditamos que nos acompanha. Gostamos também do brilho, de dar o melhor para os nossos deuses; gostamos da dança, do cântico, gostamos do batuque, de ficar descalços e ouvir o barulho dos pés. Gostamos do barulho do sino, o adjá; e gostamos do agogô, que faz aquele estampido latente e nos eleva, porque é arte pura, é o som do universo ecoando dentro de nós. Só que não tem como levar tudo isso para o dia a dia. Então, se as pessoas não aceitam, nenhum candomblecista deve “enfiar goela abaixo”. Quando eu ia a hospitais e perguntavam minha religião, eu respondia: “candomblé”. As atendentes diziam que não constava, e daí perguntavam se poderia ser a espírita. Eu dizia que não e pedia para imprimirem o papel para eu escrever à mão: “candomblecista”. Fiz isso muito tempo! Hoje, já tem. Contudo, ainda que eu fizesse isso, nunca era para agredir ou provar qualquer coisa. Essa falta de aceitação, na verdade, é falta de luz sobre o que é a religião verdadeiramente – e não da forma vulgar e rasa que muitas vezes é mostrada. E isso só acontecerá pela educação absoluta do ser humano. Então, o que acontece é que, hoje, muitas pessoas não assumem porque, com certeza, serão questionadas. E ouvirão: “Ah, você conseguiu aquilo porque fez macumba!”

[Dá risada] É justamente minha próxima pergunta…
[Dá risada] Não há benefício extra por sermos candomblecistas. Somos iguais a todos. Agora, que os milagres acontecem, acontecem. Como em outras religiões, evidentemente, a diferença é que não se atribui ao candomblé.

Eis uma verdade…
Pois é. Atribui-se a outros nomes maravilhosos, seres fantásticos que passaram por aqui e deixaram ensinamentos magníficos, mas os nossos nomes ainda pesam. Porque é do negro, do chão, da África, está no trabalho menor, no comportamento menor, porque a própria religião preza pelo pé no chão e pela roupa simples. Só ficamos deslumbrantes e endeusados nas cerimônias. Ou seja, tudo ainda está ligado à pobreza, à inferioridade, à falta de conhecimento, de esclarecimento. Nossa roupa ainda fala por nós.

Búzios, ebó, despacho, oferenda. Usar da magia não é roubar no jogo?
[Dá risada] Vamos dizer que seja. Olha que coisa bacana! Para mim, nunca foi colocado dessa forma, para que eu pudesse pensar sobre isso por essa perspectiva. Então, vamos lá! Por que estamos roubando no jogo? Porque estamos colocando todas as nossas potencialidades naquilo que queremos conquistar. Não estou simplesmente pedindo, estou realizando, naquele exato momento, o que eu quero. Então, é como se fosse terapêutico. Não é “eu quero ter saúde”. É, “eu tenho saúde!” Daí eu faço o ebó.

O que é o ebó?
O ebó não é nada mais do que uma oferenda que você faz aos deuses acreditando que você já conquistou. Ou seja, você move toda a sua energia para conquistar aquilo que deseja. Se observar bem, a sua psique expande. Porque você está agindo, está vendo, está falando. Se você quer dinheiro, você fala sobre dinheiro. Não fica com hipocrisia: “Se Deus quiser, eu quero aquele pouquinho.” Ou: “Ai, se Deus me ajudar, eu quero aquilo mais ou menos.” Não, você quer tudo! Você quer a saúde integral. Seu espaço, seu emprego, seu conhecimento, o topo, tudo integral. Você não pensa no médio. O médio você já tem, que é existir. Então, sim, nós roubamos no jogo.

[Dá risada]
Nunca ouvi isso, mas amei! Porque nós damos mesmo murros e tapas na cara para que haja uma forma de alguém se esclarecer, de abrir os olhos para aquilo que deseja, e não ficar de picuinhas…

Sempre me pareceu que os candomblecistas têm mais autoestima.
Vamos tomar como exemplo uma mulher gorda ou um homem feio. Normalmente, essa mulher esconde a barriga, fica acanhada; assim como o homem tenta esconder a feiura. No candomblé, se a mulher é gorda, aí é que ela coloca uma saia rodada mesmo, deixa os seios fartos em destaque. O homem age da mesma forma, valoriza sua feiura. E eles se mostram lindos, porque os deuses gostam que se sintam poderosos. Ambos sabem que podem ser tudo na religião deles, podem brincar com os próprios deuses. Eles são lindos por natureza e pouco importa a aparência deles. Então, essa autoestima que temos, é verdade, fomos criados para a beleza. A natureza toda é torta! E mesmo assim sempre ganha.

[Dá risada] Sensacional! Aproveitando a deixa, como o candomblé vê a mulher? Tenho a impressão de que a mulher é praticamente reverenciada!
A mulher é a representação absoluta da verdade e da beleza humana. Para nós, é o ser que está num estado de evolução acima de qualquer outro. Mesmo que ela não saiba disso e mesmo que ela diga que não, porque a presença do homem ainda é muito forte. No candomblé, valorizamos extremamente a mulher. O candomblé, na verdade, é a religião da mulher. É quase uma religião feminina. Uma religião na qual os homens estão presentes para enfeitá-las, para adorná-las, para melhorar as saias delas, melhorar o que incomoda. Os homens é que são submissos. É mulher a grande deusa, que domina todo o universo, nossa mãe Oxum, responsável pelas águas, pela fertilidade. O oráculo, jogo de búzios, é extremamente feminino. E a ialorixá tem uma magnitude que raramente se vê no babalorixá.

O candomblé valoriza a sensualidade da mulher?
Gostamos de ver a mulher se expressando, porque é sempre esse encanto. A mulher não deve explorar a própria sensualidade como forma de submissão ao outro ou de domínio. Mas, sim, valorizamos a sensualidade da mulher. Queremos que sua forma apareça, mas sem mostrar nada. E elas conseguem fazer isso com maestria! Quando remexem, com aquele tanto de saias, entramos em um imaginário coletivo – principalmente os homens – de uma deidade.

E como o candomblé vê o dinheiro?
O candomblé ama o dinheiro! [Dá risada] Não somos hipócritas. Não há nada de graça, nem água, nem luz. Feliz ou infelizmente é assim. Precisamos de dinheiro para manter nossos espaços, nossas roupas bonitas. Precisamos do dinheiro para alimentar o povo, para fazer trabalhos sociais. Sou totalmente contra àquela ideia de que o que a mão direita dá, a esquerda não pode saber. Ajudou? Fala para todo mundo. Por que o bem tem que ser tão acanhado? Tem um pouco de ego? Tem. Contudo, imagina que competição bacana aconteceria para o bem. Adoramos dinheiro, adoramos fazer reverência à prosperidade, pedimos dinheiro com a maior naturalidade. Essa palavra é mágica!

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.