Para Zygmunt Bauman, as relações amorosas, hoje, podem se resumir a uma das máximas do mercado: satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta. Pedro de Santi, exclusivo para a FAUSTO, inaugura a Série Tempos Líquidos e pondera as perdas e os ganhos dessa era estranha, que nos torna livres e ao mesmo tempo escravos. Se por um lado não estamos mais presos a destinos amargos, por outro passamos a nos cobrar, insuportavelmente, a amar e sermos amados. Psicanalista, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo e doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Pedro de Santi é professor na ESPM, autor do livro A construção do eu na Modernidade, entre outros. Se você também evita as garras do amor, garras que ardentemente também deseja — parafraseando Bauman em Amor Líquido —, seja muito bem-vindo.
FAUSTO – O que é isso a que chamamos de “líquido”?
Pedro de Santi: Essa ideia do Bauman está enraizada em muitos autores que estudam a modernidade. Bauman entende bastante de Freud e pensa psicanaliticamente. O processo que significa o sujeito moderno, de 500 anos para cá, sofre uma aceleração nos últimos 30, 20 anos. Isso é o que chamamos de líquido.
Qual o significado do homem moderno?
Entre inúmeros: a ruptura com as tradições. A identidade de uma pessoa na Idade Média, por exemplo, era por sua origem. Leonardo da Vinci: Leonardo, da cidade de Vinci. Ou era pela classe social. Ou seja, você nascia e sua identidade estava dada. Um dos aspectos do Renascimento foi a ruptura dessas tradições. A Igreja, a família e o próprio Estado passaram a perder poder e começou a emergir a ideia de um indivíduo. Ocorreu um desenraizamento progressivo. Não sou mais minha origem, sou o que farei de mim.
Vemos isso em alguma obra?
Romeu e Julieta. Eles não são mais Montéquio e Capuleto, são Romeu e Julieta. Preferem morrer a dobrarem-se às tradições. O sujeito moderno é alguém que nasce rompendo referências. Isso vem desde o século XVII até o século XX. Ou seja, desde o início é um homem desenraizado, angustiado, perdido, com depressão, solitário. Nada disso é novidade do século XXI. Basta acompanhar o pensamento romântico ou a própria história da psicanálise.
Mas algo fez com que tudo isso se acentuasse…
Há quem acredite que dos anos 1970 para cá houve uma aceleração desse processo de desenraizamento. Por exemplo, pensou-se que o mundo moderno tinha acabado e inventaram então a expressão “pós-modernidade”. Essa expressão ainda vende muito porque é sonora, mas usa-se mais “alta modernidade”, pelo próprio Bauman; ou hipermodernidade, como usa o Lipovetsky. Ou seja, o mundo de 30, 20 anos para cá não acabou, mas acelerou. Então, quando se fala de um mundo líquido, se fala de um mundo de absoluta fluidez, onde nada mais se detém ou se retém. Nada mais é absoluto.
É por isso que o “até que a morte nos separe” – ou seja, estar preso a um destino – causa tanta agonia?
Os católicos, até pelo menos 40 anos atrás, tinham certo temor de se desfazerem do casamento. Poucas pessoas tinham coragem de enfrentar um divórcio. Alguns casais nem eram mais casais, mas permaneciam juntos também pelo temor da exposição social. Mas, devagar foi aparecendo, por exemplo, o desquite, o divórcio – mas sempre um escândalo! Kramer vs. Kramer é um ótimo filme que mostra isso. A Meryl Streep chegou a apanhar na rua por ter representado a Joanna, uma esposa que saiu de casa, deixando o filho. Aquilo foi compreendido como monstruosidade. Isso em 1979. Hoje, o indivíduo é mais livre. Se ele não se sente mais feliz, consideramos legítimo que não fique no casamento. Que fique sozinho, em outro casamento, em outro gênero, em outra espécie, não importa.
Essa mudança é positiva?
Sim, porque a pessoa não é mais escravizada. Construímos, ao longo da modernidade e da hipermodernidade, condições para que os laços não aprisionem o indivíduo definitivamente. Isso também vale para o trabalho. Todo mundo é terceirizado, coach, freela. Não conseguimos imaginar, hoje, uma pessoa que presta vestibular em uma área e vá trabalhar nessa área a vida inteira. Então, a ideia do eterno soa mal. Quando falo que dou aulas na ESPM há 28 anos pega mal. Parece que estou acomodado.
E isso se aplica ao casamento também…
O que antes era conquista, hoje não é mais. O que me parece positivo é a possibilidade de corrigir um rumo. Para qualquer pessoa que não seja muito católica, é positivo. Papa Francisco também concorda. Já o Ratzinger, não. [Sorri]
Mas quais são as contrapartidas?
Se posso me desfazer do vínculo do casamento, que não é mais eterno, que não é mais destino, não há destino. Ou seja, estou no mundo totalmente em aberto. Só que conseguimos transformar essa liberdade em algo absolutamente insuportável. Se o que sustenta o casamento não é mais a palavra de Deus, a decisão do juiz, o vínculo dos filhos e a pressão social, o que sustenta o casamento?
O que sustenta o casamento?
O amor. [Pausa] Se eu parasse aqui, venderia o meu livro.
Pois é…
A liberdade virou opressão de amar e ser amado a cada instante. Isso é insuportável. No período da paixão – isso se a paixão for correspondida – dura apenas semanas ou meses. [Sorri]
E se não for correspondida?
Se não for, dura a vida inteira. É o amor romântico. [Sorri]
[Ri alto] Faz total sentido…
É o amor do Werther. O amor vivido não é romântico. Dura semanas, até que se apresente o cunhado, os amigos, a mala. [Sorri] A pessoa ronca… Só que nós cobramos o imperativo do amor mútuo e constante.
O que significa?
Que não suportamos mais qualquer forma de crise. O momento da paixão é absoluta fusão, não queremos saber de amigos, de trabalho, apenas nos trancar com a pessoa. Só que a passagem da paixão para o amor significa transformação. Aí vem a família, a realidade, os filhos, os projetos de vida, o dia a dia. E vem a presença do outro, a alteridade… Só que vêm junto frustrações, crises. No regime líquido, se não gozo a cada instante e ainda houver crise, acabou. O regime da paixão é muito exigente. Na primeira falta de assunto, depois de uma semana de crise… “Vou aguentar uma semana de crise? Tem Happn, Tinder, balada, está todo mundo feliz lá fora e estou aqui aguentando crise?”
Atrás desse pensamento…
Somos cada vez mais tentados pela ilusão de que há satisfação e felicidade em todos os lugares. “Ciência da Felicidade” vende muito. Neurociência de quinta categoria, autoajuda. Tem que ser feliz o tempo todo.
O que fazer para libertar o sexo da soberania da racionalidade? Ou seja, voltar a ligá-lo à emoção, ao êxtase e até à metafísica?
Certa parte da vida sexual das pessoas – não sei dizer qual parte – não é propriamente sexualidade. Sexualidade no campo da psicanálise, por exemplo, é o campo da fantasia, da busca do prazer dentro de fantasias, que podem ser solitárias ou mutuamente compartilhadas. O regime que temos vivido, nesse mundo de gozo constante, obviamente deixou de ser assim. O sexo, hoje, é muito marcado pelo desempenho. Mas, se tenho acesso o tempo todo – voltamos a Platão: desejamos aquilo que não temos – , minha vida sexual vai se deserotizando. Agora, algumas pessoas podem preferir esse tipo de sexo e tudo bem. Algo importantíssimo sobre sexualidade, na perspectiva da psicanálise, é que não há duas pessoas que queiram da sexualidade a mesma coisa. Uma ideia que é mais pesada sobre o desempenho é a pilulazinha azul, o Viagra.
Por que mais pesada?
A princípio, o Viagra foi inventado para pessoas com disfunções circulatórias. O que foi uma benção, devolveu vida sexual a muitas pessoas. Mas para surpresa e alegria do mercado, quem começou a consumir foram jovens de 20, 25 anos. Quando realizaram pesquisas para descobrir o motivo, os jovens diziam que tinham medo de falhar, que queriam desempenhar melhor depois do abuso de álcool e drogas. Ou seja, não tem desejo sexual, o que tem é imposição do desempenho.
Uma de minhas entrevistadas, Kika Gama Lobo, usou uma frase interessante: “O Viagra empoderou o homem”. Achei interessante porque o verbo é sempre aplicado à mulher…
Hoje, o homem está acuado. Seja pelo discurso feminista, seja pelo discurso LGBT, a figura do homem está emparedada. Aliás, a figura do homem emparedada diz respeito ao mundo líquido, porque a referência no mundo ocidental é o masculino: o rei, o líder, Deus, o provedor, o viril, a força desse homem, que é uma força opressora. Um dos elementos que compõem o mundo líquido é a dissolução do poder paterno, a dissolução das autoridades. É uma crise mundial. Quem tem autoridade? Quem são as figuras que olhamos e respeitamos? Cada vez há menos figuras de homens adultos. Hoje, temos influenciadores de 13 anos. É uma crise poderosíssima, gravíssima. Não temos referências políticas, não temos referências morais, religiosas – as que existem são pouquíssimas – e esse é um grande problema para o funcionamento da lei, por exemplo. Estamos com sérios problemas de convívio, uma vez que a função paterna está em crise. Em termos imaginários, a figura do homem está enfraquecida e precisa, hoje, de empoderamento.
O sexo acessível prenuncia a morte do desejo?
Não prenuncia, “pós-nuncia”. [Sorri] Ainda temos um imaginário do adolescente muito equivocado. Pensamos no adolescente dos anos 1960, o revolucionário que queria transgredir. Qualquer pesquisa sobre adolescente, dos últimos 15 anos, fala que ele sofre de falta de tesão. Sofre de tédio, de falta de tesão, de entorpecimento das mídias sociais e aí precisa do Viagra. Como pode um adolescente ter falta de tesão? É simples. É só a sexualidade estar acessível e ser oferecida. Voltamos a Platão: desejamos aquilo que não temos.
Segundo Bauman, para termos amor próprio, precisamos ser amados. Ou seja, a lógica é contrária ao que é propagado por aí, que precisamos nos amar primeiro para, aí sim, conseguirmos viver um amor pleno. Concorda com Bauman?
Essa é uma estupidez da autoajuda. Se eu passar o dia dizendo que sou lindo, isso vai fazer de mim um psicótico, não um lindo. Sou lindo se pessoas – fora a senhora minha mãe – me reconhecem enquanto lindo. Isso é o Estágio do Espelho, de Lacan, psicanálise pura. Conceito clássico que Lacan esticou de Freud: eu vim de fora. Os olhos não se veem, não sei de mim. Sei de mim através do que os outros espelham a meu respeito. A estima que tenho me é dada pelo reconhecimento do olhar do outro. Sou quem me convida para a festa, sou quem curte o meu post no Facebook. Sou quem compartilha esse post.
E, obviamente, a pessoa vai ser muito infeliz no amor se olhar apenas para si…
Se quem você idolatra acha que você é um lixo, você se sentirá um lixo. Porque ela é a referência. Se ela não te deseja, você não se sentirá desejável. Se quem você ama também o ama – primeiro você estranha, “como assim, ela é legal e me ama, tem algo errado nisso?” [Sorri] – isso te enche de estima. Autoestima não é autoengendrada. Existe um eu, mas esse eu é construído de fora para dentro.
Em resumo: amor líquido é amor narcísico?
Sim. Na medida em que não existe amor, não existe relação com o outro, existo para mim e para minha satisfação instantânea. Uso o outro como objeto do meu gozo. Não existe alteridade.
Estamos condenados ao amor líquido ou há como escapar?
No mundo líquido, ninguém está condenado a nada. Não tem condenação. E vou mais longe. Não estamos mais no mundo líquido. Para mim, o mundo líquido descreve os anos 2000. Em 2017, há uma enorme onda de conservadorismo, que, aliás, é uma reação ao mundo líquido. Quando tudo perde a raiz, tento voltar à raiz para me referenciar outra vez.