“O novo fica tão mais bonito quando emoldurado do velho; o moderno tão mais profundo quando enraigado numa tradição; a erudição tão mais elegante quando de mãos dadas com a simplicidade”.
Essas são algumas percepções sensíveis de Leonardo Gonçalves contidas no encarte do seu quarto álbum princípio e fim.
Nascido em Palmares, Pernambuco, de refinado repertório cultural, o artista é articulado, inteligente e dono de uma capacidade ímpar de se expressar.
“Minha vida gera minha arte, minha maneira de pensar. Quanto mais me conhecerem, mais entenderão quão pessoal é tudo o que eu apresento musicalmente.”
Início do século XX. Em uma igreja qualquer, de uma comunidade formada por negros americanos cristãos, pessoas comuns se reúnem ao redor de um órgão e entoam louvores a Deus.
O ato livre de expressar seus reais sentimentos ao “Todo-Poderoso” reinventa, mesmo que inconscientemente, a música religiosa praticada nos cultos até então.
Conhecida como “gospel”, esse estilo musical popularizou-se de tal forma que ultrapassou os limites da igreja afro-americana e um século depois movimenta um mercado de bilhões de dólares em todo o mundo.
No Brasil, e neste mercado tão desfragmentado devido aos diversos estilos que abraça, há esse artista blindado dos principais rótulos negativos que ainda envolvem o segmento.
Com o álbum princípio e fim, Leonardo Gonçalves tornou-se o primeiro de sua categoria a conquistar o primeiro lugar no iTunes — e na classificação geral deixou para trás cantores como Roberto Carlos e Adele.
O início da trajetória do rapaz tem total ligação com o que houve há um século: a mudança de uma prática que envolve a música, mas antes da própria música uma atitude, uma cadeia de valores e pensamentos que, hoje, não é mais ignorada.
Em maio de 2010, Leonardo Gonçalves foi um dos primeiros contratados da gravadora Sony Music Brasil, quando a empresa decidiu abrir-se para o mercado gospel.
Inserido em um universo que abriga mais de 38 milhões de pessoas, segundo o Centro de Pesquisas Sociais da Fundação Getulio Vargas, o cantor está entre os nomes que renderam ao país, em 2011, cerca de R$ 1,5 bilhão, segundo a Associação Brasileira dos Produtores de Discos.
Inusitado, Leonardo Gonçalves tem também apresentado possibilidades de expressão artística alternativas no segmento.
Exemplo é o álbum Avinu Malkenu, gravado todo em hebraico e lançado em 2010, feito encarado pela própria Sony Music como divisor de águas em sua história.
Nascido numa família atuante na Igreja Adventista do Sétimo Dia, Leonardo Gonçalves é filho de pais separados e morou parte de sua vida com a mãe, Telma, e o padrasto, Wolfgang, em países como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha.
Sua complexa e profunda maneira de pensar é tão característica quanto sua habilidade vocal, que impressiona até quem não faz parte do meio, como o cantor Ed Motta. Em outubro de 2010, Leonardo Gonçalves deu uma “canja” em um de seus shows.
“O Ed Motta conheceu meu trabalho através do YouTube e me convidou via Twitter, publicamente. A princípio não levei muito a sério, achei que fosse mais empolgação da parte dele, mas a produção do Ed procurou minha assessoria. O próprio Ed Motta me ligou e a conversa foi muito boa, muito agradável. Ele sugeriu de cantarmos juntos a música Isn’t She Lovely do Stevie Wonder. Gostei da escolha, é um clássico do Stevie que ele compôs quando sua filha nasceu. É uma música que fala de Deus, inclusive, e da gratidão do próprio Stevie Wonder a Deus.”
O ano é 1994. Leonardo Gonçalves está com quinze anos e estudando em regime de internato — costume comum e até desejado entre os jovens adventistas — no, então, Instituto Adventista de São Paulo (IASP), localizado em Campinas, interior de São Paulo.
O adolescente entra para o Coral Jovem do IASP e para o conjunto vocal Tom de Vida, momento em que começa a chamar a atenção dos já consagrados músicos religiosos e do público adventista.
Aqui, vale mencionar que a música adventista, entre os cristãos, é uma das mais respeitadas por sua qualidade vocal, de produção e orquestração. A técnica vocal chamada “melisma”, que nada mais é que variar as notas musicais em uma única sílaba cantada, foi como um vírus propagado por Leonardo Gonçalves e outro cantor, Sergio Saas, também expoente da música gospel contemporânea.
Como uma febre, jovens cristãos do final dos anos 1990 e de toda a década seguinte foram capturados e hipnotizados pelo estilo tão próprio do “negro spiritual”.
O primeiro álbum solo de sua carreira, intitulado Poemas e Canções, teve um estrondoso sucesso, principalmente pela canção Getsêmani, cuja versão mais vista no YouTube, de 2013, apresenta imagens do filme Paixão de Cristo, de Mel Gibson, e na época foi vista por mais de 1,5 milhão de pessoas.
Sobre suas influências: “Um livro que mudou a minha vida, no sentido de sintetizar minhas influências musicais, foi o de Igor Stravinsky “Poética Musical”, que nada mais é que uma série de aulas que ele ministrou em Harvard. Definir-me musicalmente é muito difícil porque ouço de tudo, de instrumentos barrocos renascentistas, viola da gamba, à música contemporânea como Emicida, que acho muito interessante. Minha banda predileta, por exemplo, é Radiohead.”
Em um segmento que tem como principal característica no Brasil certa alienação — tanto comportamental como de conhecimento intelectual —, Leonardo Gonçalves sai na frente, mesmo que isso não seja para ele uma “vantagem competitiva”, pois seu trabalho não é apresentado como produto que disputa lugar por seu valor mercadológico.
Respeitado pelo trabalho de qualidade em arranjos, produção, vocais e pelo conteúdo das letras, seus álbuns são prova de engenhosidade estética. Alguns discos contam com a participação das cordas da Orquestra Filarmônica de Praga e Orquestra Sinfônica da República Tcheca.
Para ateus ou agnósticos, Leonardo Gonçalves é, no mínimo, aquela agradabilíssima companhia com quem se pode passar horas a fio falando sobre qualquer assunto.
Para músicos e apreciadores de música que não ouvem gospel, ele é um desafio. Aceite e tire suas próprias conclusões.