Será mesmo que somos capazes, em nosso tempo, de entender o drama de Fausto? Ou já nos rendemos de vez a Mefistófeles e sequer percebemos que não temos lá tantas ambiguidades assim a ponto de senti-las pulsando em nossa consciência? Para Renato Janine Ribeiro, filósofo, cientista político, ex-ministro da Educação e professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, nosso tempo é mefistofélico e não fáustico. Nosso convidado da vez esmiúça um pouco mais o personagem, a trama e o que tudo isso tem a ver comigo e com você em mais um bate-papo parte das comemorações de 1 ano de nossa revista. E então, você é Fausto ou Mefistófeles?
FAUSTO – Em um mundo como o nosso, materialista, pouco dado à contemplação, ainda é possível entender o drama de Fausto? Porque Fausto oscila entre a espiritualidade e a materialidade…
Renato Janine Ribeiro: Fausto é muito atual. A questão que gira em torno dele é a troca da alma para obter poder. No caso de Fausto é triplo poder. Ele quer conhecimento, o que de certa forma ele já tem; e ele quer poder e também amor, paixão, sexo. Há outra grande questão nele – e creio ser uma grande questão – que é justamente por ele ser intelectual: qual é o valor de ser apenas um intelectual? O intelectual deseja mais coisas? Luxo, mulheres, sexo? Fausto não é apenas um intelectual, ele é símbolo de uma época inteira, como a nossa, cujos valores éticos, tradicionais, que exigiriam que você se confinasse no espaço que Deus lhe deu, se tornaram insuficientes.
E quais são as consequências?
Quando os valores se tornam insuficientes, você passa a querer mais coisas. E aí você entrega tudo para tê-las. Há um elemento materialista muito forte em Fausto. Para mim esse elemento é até preponderante. É claro que a mulher que ele ama, Gretchen, traz esse elemento espiritual para ele, o que o faz se questionar. Ela é o elemento antimefistofélico. Mas há em Fausto essa força do desejo, que é muito forte, e está muito presente hoje em dia. Fausto é atualíssimo.
Voltaire diz, no “Tratado de Metafísica”, que sem as paixões, sem o orgulho, a ambição, a vaidade, todo progresso da humanidade, das ciências, das artes, seria impensável. Onde então Fausto errou?
Não creio que ele tenha propriamente errado. Ele é o homem moderno por excelência. Ele é impossível, muito difícil de ter existido na Idade Média. A Idade Média foi um período que, independentemente do que as pessoas de fato faziam, elas aceitavam os lugares onde eram colocadas. Fausto rompeu esses lugares definidos. A demanda de vaidade que alude a Voltaire é o que está presente nele.
Os ganhos estão na esfera coletiva, porque a humanidade avança, mas as perdas na esfera individual?
Os ganhos é que estão na esfera individual. Para Fausto é muito importante ser ele próprio, independentemente da responsabilidade social. As mulheres, os outros em geral, se tornam objeto para ele. É possível dizer, nesse sentido, que ele é anti-Kant. Kant declara que moralmente devemos considerar o outro como fim e jamais como meio. Fausto coisifica. Ele considera que os outros são pessoas que podem ser instrumentalizadas. Agora, ao mesmo tempo, Fausto é dividido. E esse é o ponto interessante. Há uma linha principal entre esse Fausto ambicioso, ganancioso, amante do poder e do desejo, e o Fausto que escuta o amor também. Se Fausto não escutasse o amor, ele seria um personagem banal. Ele seria simplesmente Mefisto. Fausto tem essa ambiguidade que Mefistófeles não tem. O que torna Fausto tão poderoso é essa divisão, que você chamou de espiritualidade e materialidade. Eu diria, talvez, poder e amor. O amor está na figura da mulher amada, que abre esse mundo para Fausto, e que de certa forma abre espaço também para a redenção.
Há niilismo em Fausto?
Não diria isso. Há duas definições básicas de niilismo, que são muito bem desenvolvidas por Heidegger em sua análise de Nietzsche: o niilismo passivo, que é a negação dos valores; e o niilismo ativo, que é quando você procura afirmar os próprios valores. Ou seja, você é autor dos valores. Essa é uma grande questão do Nietzsche, que diz que não basta que conheçamos os valores, nós somos responsáveis pela criação deles, pela função deles. Não creio que Fausto se encaixe em nenhum dos dois sentidos. Ele não cria valores e também não é alguém que desdenha os valores existentes.
Quem é o Mefistófeles de nosso tempo?
São as tentações. Nosso tempo é um tempo que – como poucos no passado – sente atração pelo sucesso e por tudo que é material. A materialidade para o tempo atual é extremamente importante. As pessoas querem ganhar mais e mais. Por isso a ideia de restrição ficou muito difícil. Você não quer restringir o que você tem, você quer ser “mais você”, ser mais forte. Então, nesse sentido, Mefistófeles não é uma pessoa específica, Mefistófeles é nome de uma tendência fortíssima da sociedade atual e uma tendência quase irresistível. Contra isso, você tem a sabedoria, a prudência, o equilíbrio, valores que não são muito populares.
Qual é o lugar do amor na vida de Fausto?
Fausto é um cientista, alguém que se dedicou ao conhecimento, mas que em certo momento se sente frustrado, porque esse conhecimento não lhe deu os prazeres que ele queria ter. Para ele, os prazeres são uma grande mistura: desde o sexo à exploração do corpo alheio, a objetificação, até o amor, que vai se revelar para ele em Gretchen. Para nós, hoje, essa é uma questão muito limitada porque o tema do cientista, do pensador, do intelectual é tema fraco em nossa sociedade. Nós que frequentamos as áreas do conhecimento, não somos os personagens principais da nossa sociedade. Então, nesse sentido, nossa sociedade é mais Mefisto do que Fausto. Mas, ao mesmo tempo, a questão do amor é muito difícil. Nossa sociedade valoriza muito a paixão e pouco o amor. Tanto que a definição do amor – costumo sempre dizer isso – é uma definição que começa pela negação. O amor não é tão forte, tão intenso quanto à paixão, mas é seguro, duradouro, estável. A publicidade não vende amor, vende paixão. A paixão é muito mais vendável em nosso tempo do que o amor. Mefistófeles é o rei da paixão. Ele sabe lidar com a paixão muito bem.
O amor torna-se sem graça…
Citando outra obra que gosto muito: O vermelho e o negro. A senhora de Renal é o amor e Mathilde de la Mole a paixão. Mathilde é mais interessante em uma primeira leitura, enquanto a senhora de Renal é quase sem graça. No entanto, a personagem que ama, que é forte, que lida com os próprios sentimentos, que os conhece e que se sacrifica por eles é a senhora de Renal. Mathilde está o tempo todo encenando. O nosso tempo é o tempo desse teatro gigantesco em torno do amor. O amor não é o grande tema do nosso tempo, o grande tema do nosso tempo é a paixão.
Qual é a questão crucial entre paixão e amor?
A questão crucial é: eu confio nessa pessoa para estar comigo nos momentos de festa e de dor? Quem deseja um amor que implica carregar o outro também na hora da dor? Que implica gostar do outro com todos os seus defeitos? É algo muito difícil em nosso tempo. Por isso mesmo nosso tempo é mefistofélico e não fáustico. Fausto é dividido, Mefistófeles não é, nem Gretchen. Fausto representa exatamente essa cisão do homem moderno, alguém que quer gozar ao máximo e alguém que deseja a paz, a tranquilidade, a felicidade, a troca de sentimentos com uma pessoa confiável, algo que perdeu o charme hoje. Nossa época tem uma dificuldade muito grande de perceber o amor. Por isso em Fausto, muito provavelmente os personagens que vão chamar mais a atenção do público serão Fausto e Mefistófeles. A pobre Gretchen ficará sempre em segundo plano. Ela não fascina. A descoberta do amor é difícil, a valorização do amor é difícil.