Roberto Rodrigues: “A parceria entre Deus e o agricultor é sublime”

A alquimia que transforma os alimentos num fogão de chama acesa alia-se ao silêncio que cinge a mente daquele que cozinha. Há uma espiritualidade no crepitar do fogo, nos aromas que tomam o coração do lar, nos assuntos que jorram dos corações dos que se reúnem à espera do trivial, porém, indispensável: a refeição. Há espiritualidade — e beleza! Roberto Rodrigues, professor emérito da Fundação Getulio Vargas e ex-ministro da Agricultura conversa com a FAUSTO acerca desse encontro entre o céu e a terra, do retorno às origens mais profundas e dessa inteligência desconhecida que veia o solo de quem planta, colhe e consome. A experiência do sabor é de esplendor e poesia, e dar graças ao prato cheio posto à mesa hoje é que é milagre. À mesa de sua casa, serviu-me de uma conversa de petiscos filosóficos saborosíssimos!

Roberto Rodrigues, professor emérito da FGV e ex-ministro da Agricultura.

FAUSTO – A terra tem alma?
Roberto Rodrigues: Nunca pensei nisso. [Pausa] A terra tem mais do que alma, ela é a geradora da eternidade. Ela garante a existência de tudo que é vivo, de qualquer natureza, de qualquer ramo biológico. Então, ela tem mais do que alma.

O agro é apaixonante por que é alquímico?
O agro é apaixonante por diversas razões. Se você excluir a questão econômica, mesmo sendo a questão central — porque a economia rural permite a alimentação, a energia, permite que a vida flua livremente —, o agro tem uma permanente ligação com temas espirituais.

Por exemplo?
Quando você coloca uma semente no solo, por puro ato de fé, acredita que haverá umidade e calor suficientes para que desperte. Um fator biológico faz com que uma parte dela saia e vá para debaixo da terra a fim de buscar nutrientes e água; outra vai para cima buscar sol e ar, e nesse dinamismo forma-se uma planta. Esse milagre da germinação tem uma vinculação espiritual extraordinária.

Acredito piamente nisso, e me serve como inspiração para a literatura…
Isso se repete todos os anos, há milhares de anos, um dia depois do outro. É de uma solenidade incrível. A agricultura é a mais antiga e vigorosa parceria da história do mundo. Deus nos deu a vida — a nós concedida através de nossos pais –, mas é o agricultor que permite que ela continue, com alimentos, com energia, com roupa. A parceria entre Deus e o agricultor é sublime e é firmada no cartório da natureza, no qual as coisas se processam. Isso tem uma dimensão cósmica que é impossível de definir com palavras temporais ou terrenas.

Tomando a cozinha como símile, por ser o coração do lar, despertar-se para o agro, numa perspectiva poética, seria começar a perceber o movimento orgânico entre trabalho e prazer?
A cozinha é o link entre o rural e o urbano. O rural produz matéria-prima, o urbano consome alimento, e quem transforma a matéria-prima em alimento é a cozinha. Isso é interessante porque nos países em que não há cultura consolidada em relação à história, à vida, as pessoas não percebem essa ligação natural entre o rural, que gera a base, e o urbano, que produz o serviço para o rural gerar a base, porque o agricultor é visto como segunda classe. A ligação entre o urbano e o rural é siamesa e o ponto de conexão é a cozinha.

Foi a cozinha que me levou a olhar para o agro de uma forma mais profunda, diria até sagrada, por isso usei o termo “alquímico” no começo. Goethe cria nisso, Fausto é uma obra que aborda essa questão, e para nós é interessante refletir a respeito das transformações dos alimentos, porque é, de muitas formas, um meio de nos reequilibrar espiritualmente.
Veja quantas coisas extraordinárias: como é que descobriram que o café, uma frutinha vermelha, podia se transformar numa bebida deliciosa depois de uma fusão térmica? Um pastor da Eritréia, pastoreando suas ovelhas, notou que quando elas comiam essa frutinha, ficavam mais agitadas, pulando além do habitual. Então ele foi lá, ferveu algumas delas e descobriu o café. E quem foi que descobriu que o cacau podia gerar um bombom? Isso da transformação da matéria-prima em alimento tem, além dessa função de “hífen” entre os dois cenários, tem arte, tem imaginação, tem inteligência, tem descobrimento e, muitas vezes, é feito por pessoas humílimas, sem a menor formação, mas que descobriram que aquela cevada fermentada podia virar cerveja e dar prazer.

Consegue se lembrar quando foi a primeira vez que sentiu essa centelha divina, desse milagre que descreve?
Eu tinha uma dúvida atroz sobre o sentido da vida, não tinha a formação cristã que tenho hoje. O que estamos fazendo aqui? Estudei muito, li Sócrates, mas é uma pergunta sem resposta. Mas um dia deu um clique: se a vida é uma dádiva divina, não tenho que saber o porquê; ao contrário, tenho que dar um sentido à minha vida. Se ganhei um presente, tenho que usá-lo da melhor maneira possível.

O slogan dessa revista é “a busca infinita por sentido”, que envolve a obra de Fausto, e o próprio enquanto personagem que representa o homem moderno. Qual sugestão o senhor daria como possível “sentido da vida”?
O que qualquer pessoa pode fazer para dar sentido à sua vida é ensinar tudo o que sabe. Tornei-me professor, fui dar aula na Unesp de Jaboticabal, com esse princípio. Esse foi o clique: ensinar tudo o que eu sei. Só que daí surgiu um outro problema — isso na juventude —: o que é felicidade? Jorge Luís Borges, por exemplo, achava que felicidade são apenas bons momentos. Tinha um velhinho que trabalhava na fazenda, morava na beira do rio, ele era meu Sidarta particular. Perguntei, certa vez: “Seu Otávio, o que é felicidade?” Ele respondeu: “Felicidade é um presente que o senhor ganha e guarda numa prateleira em que pode alcançar, ou jamais vai pegá-la”. Por motivo óbvio, acabei acreditando que felicidade não é uma estação de chegada, mas uma viagem num trem sobre dois trilhos: amor e justiça.

Nossa, que bonito…
Se você conseguir se equilibrar entre o amor e a justiça, que são trilhos frágeis e instáveis, a viagem será feliz. O combustível para a viagem é a esperança. Sabe que, para uma pessoa dar certo na vida, três coisas são fundamentais: primeiro, fazer o que você gosta, levantar de manhã contente e ir trabalhar; segundo, fazer o que você sabe; e, terceiro, tem que ter sorte. E sorte é ajudar o destino, é enxergar que o trem vai passar a qualquer hora e você quer estar lá. Sou apaixonado pela agricultura, então nela coloquei todas as minhas pedras.

Por que não contemplamos mais os fenômenos naturais, como o cair da chuva, o nascer do sol, o ciclo das pequenas vidas, as nuances de cores ao longo do dia? Tem a ver com o excesso de tecnologias?
Há uns dez anos, fui a Provence. É de uma beleza emocionante, não sem razão os principais pintores impressionistas viveram lá. Eu almoçava num bistrô, e traziam um prato tão arrumadinho, tudo tinha beleza. Quando voltei, tomei uma decisão: “vou cultivar a beleza em tudo”. Tudo o que tem aqui em casa são objetos cuja beleza me atrai. Então, a necessidade de viver, de disputar espaço, garantir a comida, comprar carro, tirou a perspectiva da beleza. A beleza está na sua frente, mas não tem o seu foco. A beleza entra na alma, como a música. Você ouve uma música bonita e a alma se enleva. Tenho o compromisso de olhar a beleza em tudo. A beleza é um elixir.

Se crianças aprendessem jardinagem, o que mudaria na formação do imaginário?
A terra é a magia da jardinagem. Ao mexer com a terra, vendo espécies nascerem, damos romantismo à vida. Eu planto roça todo ano. A cada quarenta dias passo um fim de semana lá, para conferir o que plantei. Têm árvores de 70 anos! Levo meus netos para passear e sugiro que abracem árvores, que vivam essa coisa lúdica da natureza.

As críticas ao agro são de alguma forma um sintoma da perda do vínculo com esse cotidiano sobre o qual estamos falando?
Sou produtor rural. Quando ponho uma semente no chão, estou tendo um gesto de fé. É uma planta selecionada por um cientista, biólogo, geneticista, agrônomo, alguém que estudou e criou aquela variedade para aquele tipo de solo, para aquele tipo de clima. Quem formou esse profissional? A universidade, que fica na cidade. É na cidade que tem fábrica de trator, de máquinas agrícolas, de cano para irrigação, fertilizantes, defensivos. A cidade tem banco que dá o crédito, a construtora que constrói o armazém, a ferrovia, o porto. Não existo sem a cidade, que me oferece serviços e insumos fundamentais para eu poder plantar aquela semente num gesto de fé. A cidade morre de fome e nua sem mim. Urbano e rural são duas metades do mesmo corpo, a sociedade. Há pessoas na cidade que não sabem que a comida é produzida no campo, elas perderam essa noção.

Há muitas pessoas mesmo, e quando ouço determinadas críticas fico realmente impressionada.
Há uns doze anos, uma empresa francesa fez uma pesquisa em Paris querendo saber a opinião dos parisienses acerca do produtor francês. Num teste de múltipla escolha, 78% escolheram “herói”. Por quê? Porque a comida faz parte da cultura francesa, o queijo, o vinho colhido no terroir; aqui não temos essa vertente ainda.

Isso se deve a algo em específico?
Acho que o aperfeiçoamento do conhecimento, da especialização exagerada, leva a pessoa a saber cada vez mais sobre menos, não se tem mais a visão holística dos processos.

Como a literatura contemporânea poderia contribuir na ampliação da compreensão do que significa o agro, enquanto uma paisagem que nos pertence e que não é alheia a nós?
Todas as artes, na verdade. A literatura é apenas uma delas. Tenho dois livros aqui, não por acaso: A Geografia da Pele, de Evaristo Miranda, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Grande Sertão está comigo há 50 anos, toda noite leio algumas páginas e sou invadido por um deleite.

Sou suspeitíssima… Em minha literatura essa ambiência é prerrogativa. Também tenho um trato de nunca deixar de perceber a beleza em tudo, e fazer de tudo para que ela faça parte de minha casa, de meus relacionamentos, de minhas palavras, quase como se minha própria vida fosse um romance.
A literatura é a transcrição da vida real, então sua função é transcrever aquilo que evoca emoções verdadeiras, que não são aquelas que a modernidade impinge. Há três características humanas que são indispensáveis: ambição, vaidade e orgulho. Mas existe uma graduação, e se elas passam do grau que a ética determina, elas nos engolem. O mundo contemporâneo dispõe de uma bombinha de encher a ambição, a vaidade e o orgulho o tempo inteiro. Entramos em competição com quem tem uma bombinha melhor do que a nossa. Então, temos que ter equilíbrio, sabedoria, humildade, e ter claro que não somos absolutamente nada. Mas em nosso momento, somos uma ponte entre o passado e o futuro, e, portanto, há de ser sólida, senão destruímos essa passagem entre o passado e o futuro. Falta no mundo emoção, e a beleza é a maior das emoções.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.