Rodrigo Gurgel: “Nossa ideia de intelectual está, desgraçadamente, presa à do acadêmico”

A escrita leve e elegante de Rodrigo Gurgel não esconde opiniões contundentes a respeito – é claro! – daquilo que mais entende: livros. Professor de literatura e escrita criativa, além de crítico literário, Gurgel é autor de Esquecidos & Superestimados, Muita retórica – Pouca literatura e o mais recente Crítica, Literatura e Narratofobia. Sobre a importância dos clássicos para a formação, das escolas como espaço de debate e as redes sociais como ambiente de estímulo à leitura, o escritor conversa com a FAUSTO com exclusividade. Qualquer caminho que leve à boa literatura é válido? Intelectuais no topo dos rankings de venda não é algo a se comemorar? Com a palavra: Rodrigo Gurgel.

Rodrigo Gurgel em entrevista para a FAUSTO.

FAUSTO — Importante é ler, independente de qual gênero seja o livro e de qual autor?
Rodrigo Gurgel: O ideal seria viver numa sociedade em que todos não só fossem alfabetizados, mas também encontrassem na leitura uma forma de divertimento e conhecimento. O mero escape do cotidiano massacrante, por meio da leitura, exercício muito mais sutil e muito mais complexo do que, por exemplo, o comportamento passivo diante da tevê, já representaria uma vitória cultural sem precedentes. Mas essa afirmação não exclui o fato de que há, sim, níveis de leitores: entre o leitor que se dedica exclusivamente a romancinhos medíocres ou livros de autoajuda e o leitor que aprecia Homero, Dante, T. S. Eliot, Hemingway e Henry James há enorme diferença.

Qual a principal diferença entre esses leitores?
Essa diferença não se restringe à qualidade dos leitores ou do próprio ato de ler, mas se reflete na vida do leitor. O segundo leitor, capaz de dedicar-se a autores que exigem apreensão mais trabalhosa, certamente será capaz de distinguir na realidade, na convivência social, matizes que o primeiro leitor não perceberá ou demorará a perceber.

Por que ler os clássicos é tão importante para a formação?
Um clássico é uma obra que demonstra a maturidade do seu autor. Maturidade mental, de costumes, no uso da língua e, portanto, na elaboração do seu estilo. São “virtudes” apontadas por T. S. Eliot. Acrescento a elas também o caráter universal dessas obras, ou seja, a possibilidade de serem lidas e compreendidas por todas as culturas — o que Eliot chama de “ausência de provincianismo”. Ou seja, um clássico é uma obra que ultrapassa seu tempo, não por ser de vanguarda, mas porque seu conteúdo trata de questões que são essenciais para o gênero humano. Podemos, dessas características, depreender a importância de ler os clássicos: esses livros apresentam as paixões humanas sem esquematismos, sem moralismos, de forma intensa e original. São obras abertas à complexidade do homem, do mundo, da história. São obras nas quais o leitor sempre poderá encontrar uma explicação para o sentido da sua própria vida, que sempre ajudarão o leitor a enfrentar o complexo exercício de viver — e também divertem, empolgam, emocionam. Livros assim provocam efeitos singulares na mente dos leitores. Marcam nossa vida. Iluminam nossa vida.

Redes sociais podem ser consideradas bons espaços para a formação de um leitor?
Não. Uma rede social é apenas o que seu próprio nome expõe: um entrelaçado de relações sociais que se formam e se desfazem no contexto de diferentes espaços virtuais. São ótimas redes de comunicação, de troca de ideias. Mas são ótimas também para desviar nossa atenção e impedir que nos tornemos bons leitores, que leiamos o que realmente importa.

É uma batalha inglória a das livrarias contra os sites de download gratuito de livros?
Não creio. O livro assumiu, em nossa cultura, um papel crucial — e mantemos com ele uma relação sensorial e, ao mesmo tempo, de confiança no seu poder de preservar a cultura e abrir, de forma constante, novas perspectivas de estudo, de conhecimento. Eu próprio utilizo diferentes aparelhos para leitura de e-books, mas o contato com o livro permanece insuperável — em termos de prazer, de facilidade de acesso e de indexação do conteúdo estudado. Considero o livro um objeto de riqueza inesgotável.

É bom que intelectuais ocupem os primeiros lugares em vendas de livros?
Precisaríamos, antes de tudo, definir o que é um “intelectual”, tarefa que escapa ao objetivo desta entrevista. Depois, seria indispensável classificar esses intelectuais, buscando discernir quais realmente exercitam seu intelecto na busca da verdade e não se refestelam na segurança dos discursos ideológicos ou dos lugares-comuns das panelinhas. Mas essa tarefa também é impossível neste espaço. Resta-me, portanto, aguardar pelo tempo em que teremos nossos melhores romancistas ocupando os primeiros lugares desses rankings, porque intelectuais e filósofos de autoajuda não chegam aos pés de um grande romancista. Só o grande romancista pode oferecer acesso à vida iluminada, à exploração da nossa própria intimidade, das nossas lutas individuais e coletivas. Só o grande romancista, ao investigar a complexidade da existência humana, torna presente, para o leitor, o homem integral, o homem dividido, o homem que se interroga. Um Proust coloca no bolso do colete cinquenta, cem, duzentos pretensos intelectuais. É o que falta ao Brasil: mais romances, mais ficção, ou seja, mais vida, mais experiências éticas — e menos especulações intrincadas e artificiosas. Precisamos de romancistas que presentifiquem, diante do leitor, a riqueza da vida — e não de pretensos intelectuais que vivem supondo o que deve ser a vida segundo esta ou aquela ideologia.

Qual seria a sua definição de intelectual? Ainda que uma definição breve…
Nossa ideia de intelectual está, desgraçadamente, presa à do acadêmico — quase sempre um sociólogo — que, figura carimbada dos programas jornalísticos, aparenta ter uma opinião formada sobre os mais variados assuntos. Contudo, nada pode estar mais distante da vida intelectual do que esse esse falso expert que tem soluções mágicas para todos os problemas. Um intelectual é alguém que, ao mesmo tempo, se interroga e interroga o seu tempo; questiona-se e questiona a sua cultura, os valores da sua época, as escolhas e o modo de viver dos seus contemporâneos; investiga o que o passado nos legou e realiza o diálogo crítico entre essa tradição e o presente. Ou seja, ele transcende a ordem imediata das coisas e busca a verdade que nasce desse diálogo com o conhecimento universal, com a inteligência. O comentarista da tevê ou do rádio é, quase sempre, o servidor de um partido ou de uma ideologia — ele se traveste de intelectual, mas, por ser quem é, só consegue repetir fórmulas prontas, tem o desempenho de um ilusionista das palavras. O verdadeiro intelectual está em busca de respostas que independem da ideologia dominante ou dos modismos acadêmicos. O que ele busca é um encontro pessoal com a verdade.

Não é possível levar em conta que tais livros, os do topo dos rankings, sejam considerados uma porta de entrada ao universo dos clássicos, por exemplo, ou de obras mais densas?
Tudo é possível. Alguém que hoje lê o repetitivo e pegajoso autor de vinte manuais de autoajuda pode, amanhã, motivado pelas mais diversas influências, ler Platão ou Cecília Meireles. Mas, perceba: estamos no campo do que é possível, do que pode ou não ocorrer, daquilo que é eventual. Um acaso feliz é sempre bem-vindo, mas continua sendo um acaso.

Acredita que há uma demanda para boas discussões literárias e filosóficas?
Sempre haverá. É assim desde que o homem é homem.

A pergunta de 1 milhão de dólares é então como torná-las viáveis para quem fala, ou seja, os escritores e comentadores; assim como para quem ouve, leitores, público em geral?
Mas as boas discussões — e também as inúteis — já são exequíveis e permanentes. Hoje, a Web antecipa e realiza as discussões, predispondo seus participantes ao encontro real, físico. Todas as condições estão dadas. Talvez o que falte, como sempre faltou em muitos projetos, é uma vontade de concretização, uma predisposição ao ato de consumar, em termos concretos, o que se realiza via internet. Falta o que sempre faltou aos sonhos que não se realizaram: vontade e coragem. Mas falta a alguns. A outros, sobra.

O politicamente correto em sala de aula pode causar danos irreparáveis a curto, médio ou longo prazos no leitor?
O politicamente correto já causa danos irreparáveis. Neste exato momento, em milhares de salas de aula, no mundo inteiro, crianças são condicionadas a acreditar, por exemplo, que o sexo das pessoas é uma escolha meramente cultural e não uma imposição biológica. Milhões de crianças aprendem que Che Guevara foi um herói e não um criminoso. Ou seja, milhões de crianças são treinadas para desconhecer a realidade e acreditar numa fantasia ideológica. Este já é um “admirável mundo novo”. E nós, que ainda enxergamos a realidade, somos considerados “selvagens”.

Se a sala de aula não abrir espaço para a discussão de ideias, quem abraçará essa demanda ou ela tende a deixar de existir?
Tenho sérias dúvidas em relação ao papel e à importância da escola. Um mero sistema de alfabetização jamais assegurou, como pretendiam os revolucionários de 1789, a criação da verdadeira cidadania, do verdadeiro senso crítico. O que vemos são milhões de alfabetizados ignorantes sendo pastoreados por demagogos e populistas. Na verdade, a escola, em todos os níveis, oferece muito pouco. A escola sempre ofereceu e sempre oferecerá apenas o suficiente para, na maioria dos casos, formar cidadãos submissos ao Estado e à ideologia dominante. Olho para minha própria formação e vejo uma evidência muito clara: se não fosse o impulso constante da minha família, principalmente as intermináveis discussões que mantive com meu pai, e meu desejo de conhecimento, minha voracidade de leitor, eu seria apenas mais um idiota útil — bem alfabetizado, mas idiota. Da mesma forma, quando olho o passado e revejo meus professores, quantos permanecem, quantos realmente me marcaram? Dois ou três, no máximo.

 

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.