Stephen Greenblatt: “A literatura realmente molda nossa concepção de nós mesmos”

Em 2012, Stephen Greenblatt ganhou o Prêmio Pulitzer pela sensacional obra A Virada. Autor também de Como Shakespeare se tornou Shakespeare, é um dos mais importantes teóricos e críticos literários do mundo, um dos fundadores do Novo Historicismo. Professor em Harvard, entre outras muitas universidades mundo afora como convidado, Greenblatt volta aos cadernos de cultura devido ao seu novo livro, já traduzido no Brasil: Ascensão e queda de Adão e Eva. Com exclusividade para a FAUSTO, o americano explica o motivo de, em 2018, trazer a história do casal edênico às pautas e conversa também sobre literatura, Milton e Santo Agostinho, a subjugação de Eva e a angústia da morte. Claro, imperdível.

Stephen Greenblatt.

FAUSTO – Por que, em 2018, falar sobre Adão e Eva?
Stephen Greenblatt:
Sempre fui fascinado pelo poder das histórias, histórias que permitem viajar através de vastas extensões de tempo e de espaço. Aliás, o próprio Shakespeare raramente inventou qualquer um de seus enredos e, em vez disso, usou como material o que já estava em circulação. Sabido o seu lugar nas culturas judaica, cristã e muçulmana, a história de Adão e Eva é uma das narrativas mais bem-sucedidas e influentes do mundo.

E qual seria o elo com a atualidade?
Se há um elo particular com o momento presente, ele tem a ver com uma intensificação de nossa fascinação coletiva com as origens humanas, alimentada em parte pelas notáveis descobertas de Svante Pääbo, diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, e sua equipe de pesquisa.

Quais são, especificamente, essas notáveis descobertas de Svante Pääbo?
Seu trabalho está no sequenciamento do genoma do Neandertal, que parece mostrar extensos cruzamentos entre neandertais e humanos eurasianos.

Por que Eva foi subjugada ao longo da História?
A misoginia, a opressão e a subjugação das mulheres certamente não são características únicas das culturas que abraçaram a história de Adão e Eva. Tudo isso é característica de muitas sociedades em todo o mundo e estavam totalmente em evidência, por exemplo, no mundo grego da antiguidade clássica, como na história de Pandora. Não obstante, a história da queda e, especificamente, o papel que Eva desempenhou na primeira transgressão, fez com que esse papel fosse crucial também na justificação do domínio masculino. Da mesma forma, aqueles que saíram em sua defesa desempenharam um papel importante de tentativa de resistir à subjugação.

Como assim?
Há algumas mulheres surpreendentes que se recusam a ficar em silêncio, apesar de todos os obstáculos em seu caminho.

Por exemplo, quem?
Arcangela Tarabotti* foi uma delas. Ela, apaixonadamente e com profunda inteligência, levantou-se em defesa e refutou os argumentos misóginos viciosos que devem ter sido tarifa diária.

Milton desempenhou papel importante na dessacralização do mito de Adão e Eva?
Milton foi um cristão profundamente religioso, certamente ele não teve a intenção de minar o mito, ele pensava nisso como um evento histórico, que estava na origem da condição humana e que levou Cristo ao sacrifício. Contudo, argumento que ele, de fato, dessacralizou a história da origem, dando aos primeiros humanos uma realidade vívida, quase alucinatória, que fez a crueldade do castigo do casal parecer quase insuportável. O Paraíso Perdido finalmente celebra a libertação das restrições da vida no Jardim do Éden.

A literatura interfere drasticamente na concepção da ideia de quem somos ou quem deixamos de ser?
A literatura – mais amplamente, a imaginação humana e tudo o que ela produz – realmente molda nossa concepção de nós mesmos. De que outra forma nos tornamos conscientes de nossa liberdade e nossa mortalidade?

E qual foi o papel de Santo Agostinho?
Sondando as profundezas de sua própria experiência de vida para reinterpretar a história de Adão e Eva, Agostinho surgiu com a poderosa noção de “pecado original”. Nenhum episódio na vida de Agostinho, ou de qualquer outra pessoa, por mais influente que seja, é suficiente para explicar a história. É um sistema inteiro e complexo de ética sexual judaico-cristã. Entretanto, na vida real, as coisas se desdobram de uma maneira particular, e Agostinho nos deixou um registro precioso de como se desdobrava na vida dele. Se o “pecado original” tinha parecido escandaloso ou incompreensível para os contemporâneos de Agostinho, eles teriam rejeitado ou ignorado, apesar de todo o seu poder institucional e intelectual. Essa doutrina, por mais horrível que possa parecer a muitos de nossos contemporâneos, ajudou a explicar questões que há muito incomodavam os cristãos. E depois de tudo – eu ouço Santo Agostinho ainda nos dizendo, mesmo agora: “Olhe em volta para o seu próprio mundo. Veja como você se comporta. Você acha que sua espécie é fundamentalmente saudável?”

O que deseja verdadeiramente provocar nos leitores com este novo livro?
Quero que o leitor compreenda o imenso poder desta minúscula história e entenda por que ela continua conosco, mesmo em nossa era pós-darwiniana.

Sempre tivemos e sempre teremos dificuldade em lidar com nossa mortalidade, ainda que vivamos mais de 100 anos?
Na verdade, a longevidade pode tornar mais difícil, para muitos de nós, lidar com nossa mortalidade. Afinal, durante muitos séculos, a história de Adão e Eva nos atormentou com a ideia de que não estávamos destinados a morrer, que a mortalidade é de alguma forma nossa culpa ou culpa de nossos ancestrais distantes.

 

*Arcangela Tarabotti foi uma freira italiana vivida no século XVII. Forte influência que pensava à frente de seu tempo, Tarabotti se correspondeu com figuras culturais e políticas de sua época e travou importantes discussões sobre o patriarcado e a misoginia. Ela é considerada uma escritora “protofeminista”. Ou seja, defendia valores que hoje consideramos feministas, mas como o termo feminista – ou feminismo – não pode ser usado, por razões claras de anacronismo, usa-se o “protofeminista”, embora também não seja um termo muito bem aceito. Explicamos apenas para situar minimamente o leitor.

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.