Tiago Arrais: “O indivíduo é irrelevante diante do espetáculo assim como escravo dele”

Você também ficou com nojo? Qual decisão, contudo, teria tomado no lugar do Primeiro Ministro? Foi com The National Anthem que Black Mirror começou, em 2011. O primeiro episódio, da primeira temporada, criação do inglês Charlie Brooker, mostrou a que veio deixando todos atônitos – e enojados. Quem comenta o absurdo, continuando a Série Black Mirror – Tecnologia como antiêxtase, é o teólogo Tiago Arrais, também doutor em Filosofia pela Andrews University. Você é capaz de saber o que as pessoas que você diz amar estão sentindo nesse momento mais do que você sabe o que está passando na sua timeline? E insistimos: o que você teria feito no lugar do Primeiro Ministro?

Tiago Arrais
Tiago Arrais, teólogo, doutor em Filosofia, comenta o episódio The National Anthem.

FAUSTO – Quando assistimos a barbaridades – ao vivo, pelas redes sociais ou TV – também nos tornamos bárbaros?
Tiago Arrais: Não necessariamente. Somos seres humanos abertos. Abertos no sentido de que aquilo que ouvimos e assistimos nos afeta de maneira ou outra. Talvez, o maior efeito desse livre acesso às barbaridades do mundo seja a própria capacidade que as imagens têm de distorcer nossa sensibilidade para o absurdo.

Como assim?
Há violência no mundo real, há violência no mundo virtual: jogos, séries, filmes. Essa exposição contínua carrega o risco de tornar o absurdo algo comum.

Ah, sem dúvida.
Não fomos feitos para saber o que acontece do outro lado do mundo. Os problemas ao nosso redor, nível local, assim como problemas pessoais ou existenciais já trazem peso e ansiedade suficientes. Com o avanço da tecnologia, esse peso ficou ainda maior, uma vez que além dos nossos problemas, temos que carregar a frustração de que existe maldade e tragédia em várias outras partes do mundo, e que nunca as resolveremos. Então, a exposição não nos torna necessariamente bárbaros, mas eleva o peso que carregamos enquanto ser humano, e nos torna, até certo nível, dessensibilizados para o absurdo. Os problemas ao nosso redor, que são grandes, se tornam pequenos quando vistos ao lado dos problemas maiores do mundo. A doença de um vizinho é um problema, mas depois de vermos um ser humano ser decapitado no Oriente Médio, o problema do vizinho se torna pequeno. Esses dois níveis, o peso existencial e a falta de sensibilidade, são expostos de uma ou outra maneira em The National Anthem.

Para o público que assistiu à cena devastadora do Primeiro Ministro ficou apenas o espetáculo; depois do ocorrido, a vida de cada um seguiu em frente. Já para o Primeiro Ministro, não; as consequências foram irreversíveis. Quanto mais forte é a imagem que criamos de nós mesmos, mais nos tornamos frágeis?
Acho que essa é uma falsa premissa. Tanto o ministro como o público saíram da experiência carregando sérias consequências. As do ministro são as mais palpáveis: imagem, casamento, carreira. Já as elusivas consequências que o público/sociedade carregou são piores a longo prazo. E essa para mim é a grande ideia do episódio. Se o público não estivesse diante das TVs durante o “ato imoral” do Primeiro Ministro, alguém teria eventualmente encontrado a princesa, já que no fim do episódio somos informados que ela foi liberada tempos antes do deadline dado pelo sequestrador. Em outras palavras, todos os problemas teriam sido evitados — o dilema do Primeiro Ministro, o “ato imoral”, a morte da princesa — se o público não estivesse nas telas.

Essa é a grande crítica?
A grande crítica que The National Anthem faz da sociedade, na minha leitura, é essa: se não estivéssemos diante de nossos “espelhos pretos” constantemente, a ponto de esvaziarmos as ruas da cidade para testemunhar o absurdo, inúmeros problemas, pessoais ou sociais, poderiam ser evitados. O espetáculo só foi espetáculo pela participação ativa da sociedade em se envolver dando opinião e ibope. Portanto, as consequências são marcantes de forma concreta e imediata para o Primeiro Ministro, mas a pergunta que fica é: quantos dilemas seriam evitados, o que poderíamos vivenciar individualmente e em sociedade se vivêssemos conectados com nossa família, nossos vizinhos e nosso bairro mais do que com os inúmeros espetáculos e realidades alternativas que nos rodeiam? As consequências para a sociedade em geral a longo prazo são bem mais drásticas do que foram para o Primeiro Ministro. Ou melhor, a vida do Primeiro Ministro é apenas um microcosmo do que pode acontecer e acontece na sociedade.

Quando se tem um cargo de grande responsabilidade – como o de Primeiro Ministro, entre tantos outros que tem como dever “cuidar da sociedade” – em situações extremas deve prevalecer a pessoa jurídica ou a física? Em outras palavras, o Primeiro Ministro tinha escolha?
Normalmente, mostro esse episódio para meus alunos de Ética no UNASP-EC. Diante do dilema moral proposto pelo sequestrador, o primeiro ministro se vê diante de inúmeras possibilidades de ação. E essas possibilidades de ação vão além da questão jurídica e física. A escolha utilitarista levaria o ministro a se sacrificar por aquilo que resultasse no melhor para a sociedade em geral, o que faz todo o esquema da opinião publica ser importante, especialmente quando se trata da vida de uma celebridade – se fosse apenas um ser humano comum, de classe minoritária, talvez a história fosse outra. O problema, neste caso, é que a cada novo desdobramento do sequestro, a opinião pública mudava. Logo, qual seria de fato a melhor saída, qual seria a resolução que traria o maior bem para o maior número de pessoas?

A meu ver, ele não tinha escolha.
Existem inúmeras possibilidades de escolha. Tirando a escolha utilitarista, poderíamos considerar também a escolha deontológica ou kantiana, que também apresentaria outro dilema. É errado ter relações com animais independentemente das circunstâncias. Entretanto, também é errado deixar de lado a oportunidade de salvar a vida de outro ser humano. Logo, o episódio mostra a fraqueza do modelo deontológico, uma vez que nem Kant conseguiu articular um método para determinar qual imperativo categórico é mais importante do que outro diante de uma decisão como a que o Primeiro Ministro precisava tomar.

O que é deontológico?
O modelo deontológico de ética é baseado em regras e não em consequências; em Kant, são os imperativos categóricos. O modelo utilitarista visa tomar uma decisão com base no efeito posterior. Como já mencionado, o bem estar da sociedade em geral. O modelo deontológico foca no que precede a decisão, no dever, no que é correto, independentemente das circunstâncias ou consequências.

Então havia inúmeras possibilidades de escolha para o Primeiro Ministro?
Sem dúvida. Para ele e para todos nós. Para complicar mais, poderíamos adicionar a opção da ética de situação – que enfatiza a ação no contexto do amor diante de um dilema ético – e esse caminho também apresenta problemas para o Primeiro Ministro já que amor poderia ser demonstrado tanto para com sua esposa, que pede para ele não realizar esse o ato imoral, assim como para com a princesa. Em suma, o Primeiro Ministro tem inúmeras escolhas, mas nenhuma delas é clara e simples. Isso revela de alguma maneira como modelos éticos, na realidade, só podem ir até certo ponto. Existe um espaço para algo que transcende método em cada decisão moral. Métodos podem esclarecer, mas nunca poderão determinar o que é correto e verdadeiro diante de um dilema moral. A vida não se reduz a métodos.

Não é justamente o caráter absurdo da barbaridade – que remete ao cinematográfico – que torna irresistível assisti-la, porque nos sentimos parte de um filme?
Acho que esse é um dos argumentos de Debord no livro A Sociedade do Espetáculo. O que antes era vivido agora se tornou uma representação. Imersos num mundo de consumo e constante representação, a sociedade praticamente não tem escolha. Experienciamos nossa vida como um filme, temos nossas respectivas playlists que funcionam como trilha sonora para a nossa narrativa individual.

Verdade. Nem as playlists passam incólume…
O cinematográfico não reside apenas no absurdo, mas em nossas projeções de vida, nossas relações amorosas românticas, e parte da ansiedade e frustração que há nessa geração está no fato de esbarrarmos de vez em quando com a realidade avassaladora de que a vida não é um filme, o mundo não gira ao nosso redor, e ao contrário do que papai e mamãe falaram, não somos os melhores, não somos príncipes e princesas.

O espetáculo é uma visão de mundo?
Sem dúvida. A visão cinematográfica do mundo. A visão explorada no livro do Pondé intitulado Marketing Existencial. A visão de mundo onde bens são adquiridos para expandir a projeção da nossa imagem e narrativa individual, quer seja de ostentação ou minimalismo. O mar de “coaches”, de exposições incontáveis nas redes sociais hoje em dia também são sintomas disso. Precisamos nos vestir, falar, nos apresentar de tal forma que “o melhor eu” possa ser percebido pelos outros. A visão de mundo do espetáculo é tão abrangente que o episódio revela isso ao mostrar diante das inúmeras telas pessoas de todas as idades e classes sociais. Bares, apartamentos, hospitais; ricos, pobres, trabalhadores e crianças brincando. Todos estavam rendidos ao espetáculo. 

Verdade, isso. Não percebi esse detalhe.
Não existem milhares de diferentes canais de YouTube e de televisão no episódio, todos estão rendidos à transmissão de um único evento. E ninguém se encontra nas ruas. É a profecia de Orwell mostrando suas implicações mais drásticas. Quem cuidava dos doentes nos hospitais durante a transmissão? Quem trabalhava para o avanço da sociedade? Nessa visão de mundo, os valores e a ética comum são invertidos. Prioridades são redefinidas. E o sequestrador, como um artista, mostra aos líderes do país a loucura de uma sociedade sustentada por tal visão de mundo. Mostra o poder da “pseudo Divindade” do espetáculo, que como Debord argumenta, serve para “preservar a inconsciência dentro da mudança prática das condições da existência.” O público em geral ficou com o espetáculo, os líderes políticos abafaram a verdade comunicada pelo sequestrador no fim do episódio. Era forte demais. Real demais. Subversiva demais.

Essa visão de mundo é irreversível?
No passado, eu achava que tudo isso era reversível. Às vezes, porém, me parece impossível escapar à representação, pois até o desejo de quebrar com a ordem estabelecida carrega certo tipo de vaidade e de projeção individual. No fim do dia, todos estamos como o público nesse episódio. Estamos assistindo outras pessoas assistindo ao Primeiro Ministro fazendo sexo com um porco.

Qual mensagem o sequestrador quis passar? Por que acha que ele se suicidou?
O sequestrador era um artista, um profeta que encarnou a sua mensagem, a sua arte. Agrada-me essa ideia. O artista é o responsável, como em todos os tempos e séculos, a abrir uma janela para dentro de uma realidade ignorada, é responsável pela provocação, pela criação do incômodo. O sequestrador entendeu de alguma forma o rumo da sociedade do espetáculo. Diante dos “espelhos negros” ao nosso redor, não estamos mais sensibilizados para o que ocorre ao nosso redor e criamos os problemas que tentamos desesperadamente resolver. Debord conclui seu tratado dizendo que “numa sociedade onde ninguém é reconhecido por outros, cada individuo se torna incapaz de reconhecer sua própria realidade.”

Por isso ele se matou?
De alguma forma o sequestrador incorporou essa verdade ao se matar. O indivíduo é irrelevante diante do espetáculo assim como escravo dele. E se de fato nossas mãos e dedos nos fazem pecar ao acessar inúmeros sites e vídeos que abastecem nossa condição, o artista estava pronto para arrancá-los fora.

Há alternativa em sua visão de mundo cristã?
A alternativa bíblica para mim, mesmo antiga, apresenta a possibilidade da subversão de tal visão de mundo. Se de acordo com Jesus encontramos a vida ao perdê-la, isso significa que talvez exista uma forma de vida marcada por pequenas mortes. Talvez, ao nos apequenarmos, ao assumirmos a posição de servo, ao entendermos que a verdadeira grandeza se encontra no ato de se doar repetidamente, passaremos a levar em conta a realidade acima da representação. O ser acima do ter. O outro acima do eu. Debord, Buber, Fromm, e tantos outros pensadores tocam nessa possibilidade, ecoando algo que estava na voz dos profetas antigos, nas ações do Deus do Antigo Testamento, e na sensibilidade de Jesus. Se a representação da sociedade do consumo e do ter resulta na morte do individuo e das relações, a morte/serviço como forma de vida pode resultar no fim da representação, num modo de vida voltado para o ser, para o real, para a sensibilidade perdida. E é por isso que a palavra “religião” na Bíblia é articulada como “cuidar das viúvas e dos órfãos” – as classes minoritárias da época – e “se manter distante da corrupção do mundo.” Imagina se religião de fato fosse assim?

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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